No primeiro ano de seu mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva faz indicações para dois nomes ao Supremo Tribunal Federal (STF) e um ao cargo de procurador-geral da República (PGR), além de uma série de outros nomes para tribunais superiores.
A primeira indicação de Lula para o STF, Cristiano Zanin, foi recebida com críticas de várias partes do espectro político-ideológico em razão de aspectos pessoais e da falta de conhecimento público de suas interpretações jurídicas. Posteriormente, algumas decisões do novo ministro foram criticadas até mesmo por aliados próximos de Lula.
Agora, o presidente tem a chance de indicar um novo nome para o STF, em razão da aposentadoria da ministra Rosa Weber, e outro para a PGR, com o fim do mandato de Augusto Aras. Lula deu sinais de que suas indicações para o tribunal e o parquet serão de pessoas de sua confiança, que têm compreensões adequadas às suas em relação a temas relevantes.
Enquanto Lula decide quem serão seus indicados, iniciativas defendem tanto a indicação de uma ministra negra para o STF, em uma defesa da representatividade, quanto um dos nomes da lista tríplice na PGR —como o petista fez em seus primeiros mandatos — citando a defesa da independência institucional e da transparência.
Na coluna de hoje, convidamos Fabio de Sá e Silva, professor de estudos internacionais e estudos brasileiros da University of Oklahoma, para discutir a relação entre o Estado democrático de Direito e as indicações para os cargos mais importantes do sistema judicial brasileiro. Além de ter atuado por mais de 15 anos com políticas públicas e questões relacionadas ao direito e justiça no Brasil, o professor tem pesquisado questões relacionadas ao tema, a atores judiciais e à democracia, tendo publicado recentemente um estudo sobre a relação entre a Operação Lava Jato e a evolução do bolsonarismo no país. Fábio também é um dos coordenadores do Projeto sobre Legalismo Autocrático (PAL), no âmbito do qual entrevista especialistas renomados para o PAL Cast — podcast que discute os temas centrais da pesquisa.
O que está em jogo nas indicações ao STF e à PGR em 2023
Se, desde o trágico suicídio de Getúlio Vargas, meses de agosto são tidos como período de alerta na política brasileira, em 2023 é a virada de setembro para outubro que promete algumas das mais fortes emoções. Nem mesmo durante o período de maior estabilidade institucional da Nova República (de 1994 a 2013), a substituição de uma juíza da Suprema Corte e a do chefe do Ministério Público Federal foram expedientes banais.
Ao contrário, tais eventos sempre geraram intensas movimentações na comunidade jurídica e na opinião pública. No caso do STF, os embates envolviam desde interesses corporativos (diferentes carreiras ou segmentos das profissões jurídicas visando emplacar seus “representantes” na corte) até a “filosofia constitucional” de cada indicado(a). No caso da PGR, a preocupação central era com a “independência” do(a) indicado em relação ao(à) presidente(a) autor(a) da indicação.
Embora por vezes acusados de tentar aparelhar o STF, como, por exemplo, nas indicações de Dias Toffoli e Edson Fachin, parece mais correto dizer que Lula e Dilma Rousseff se destacaram por seu desinteresse pelo tribunal. Nem mesmo no contexto de sua indicação Toffoli podia ser visto como um “cão de guarda” que atuaria em defesa do partido e dos próprios Lula e Dilma – para isso havia nomes bem melhores. Fachin, por sua vez, embora atacado à época pela oposição em função de um discurso pró-Dilma nas eleições de 2010, era um reconhecido jurista no campo do direito privado.
Com pouca heterogeneidade, as indicações de presidentes petistas levaram a nomeações de ministros com posições punitivistas em matéria penal, pró-empregador em matéria trabalhista e conservadoras em matérias de costumes. Políticos da antiga direita democrática não teriam feito melhor.
Em relação à PGR, tamanho foi o desinteresse que os petistas optaram por “terceirizar” a escolha, outorgando a uma das carreiras do Ministério Público da União (MPU) — o Ministério Público Federal (MPF), representada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) — a tarefa de consolidar uma lista tríplice, da qual invariavelmente escolhiam os primeiros.
Nem um passo atrás, nem um passo à frente
A eleição de Lula para um terceiro mandato em 2022 foi cercada de questionamentos sobre quais critérios ele utilizaria no preenchimento de vagas do STF e da chefia da PGR. Alguns talvez esperassem que ele desse “um passo atrás”, retomando os padrões que utilizou durante suas duas presidências anteriores, notadamente no que toca à PGR.
Outros tentaram instá-lo a dar “passos à frente”, utilizando essas indicações (especialmente as do STF) em uma perspectiva “afirmativa”, de modo a trazer para a corte os grupos subrepresentados no sistema de justiça (mulheres, negros[as], indígenas) com os quais ele, simbolicamente, havia escolhido subir a rampa do Palácio do Planalto durante sua cerimônia de posse.
A esta altura, tudo indica que Lula não vai dar os tais “passos à frente”. Na primeira vaga que teve a oportunidade de preencher no STF, o presidente indicou Cristiano Zanin, seu advogado nos processos da Lava Jato — registrando publicamente que o fazia também por um critério de confiança pessoal. Para a segunda vaga, a mídia especializada registra que despontam entre os favoritos o atual ministro da Justiça, Flavio Dino; o advogado-geral da União, Jorge Messias; e o presidente do Tribunal de Contas da União, ministro Bruno Dantas.
Lula parece pretender invocar um argumento de representatividade regional para justificar sua escolha, já que os três candidatos à vaga são do Nordeste. Promover esse tipo de representatividade é importante, especialmente em razão da hegemonia do Sul-Sudeste na corte. Mas, dado o perfil dos candidatos, fica evidente que isso se trata de artifício retórico. Muito mais do que a região de origem, o fator determinante aqui é o tino político dos três concorrentes.
Na PGR, por outro lado, parecem ter passado os ventos que tentavam convencer o presidente a reconduzir Augusto Aras ao cargo — por mais surreal que parecesse a hipótese. Entretanto, parece difícil vislumbrar um cenário no qual Lula dê “passos atrás”, fiando-se na lista da ANPR e, ainda mais, nomeando de forma inquestionável a primeira da lista, a procuradora Luiza Frischeisen — apesar do prestígio que esta goza entre seus pares.
Se hoje a hipótese de “passos à frente” parece remota, a hipótese de “passos atrás” – de, no linguajar dos bacharéis, restabelecer o status quo ante – jamais deveria ter animado quem quer que fosse. E isso por duas razões.
Primeiro, Lula conhece melhor do que ninguém os resultados de seu desinteresse pelo STF e pela PGR. O arrivismo de setores do MPF respaldado pelo Supremo na Lava Jato (aqui merecendo especial destaque os ministros indicados por Lula e Dilma) contribuiu para a desorganização da política e da economia, que pavimentou o caminho para a ascensão de Bolsonaro. Membros do MPF sugerem que Lula deixe a Lava Jato para trás e volte a abraçar a lista tríplice, cobrando-lhe que aja por princípios e em favor do “interesse público”. Sem que assumam coletiva e institucionalmente o compromisso de policiar melhor seus próprios excessos, pedem um cheque em branco. Ao que parece, não vão levar.
Governança política e um novo normal(?)
A memória da Lava Jato, entretanto, está longe de ser o único fator balizando as escolhas de Lula para o STF e a PGR. Qualquer análise sobre esse tema deve levar em conta que, se as instituições da justiça deram inegável contribuição para a crise e quase derrocada da Nova República, nelas também residiu um dos principais fatores de nossa resiliência democrática. Especialmente o STF, já que a PGR segue sendo um reduto bolsonarista, ainda que um pouco acanhado.
Esse reposicionamento da justiça em relação à democracia, entretanto, não foi simples. O processo começou quando a corte resolveu, finalmente, acertar as contas com o tema da prisão em segunda instância – o que a “colegialidade” de Rosa Weber e a manobra da pauta por Cármen Lúcia não permitiram ocorrer em 2018 –, possibilitando a saída de Lula da prisão. Passou pela garantia do federalismo em relação à saúde no auge da pandemia da Covid-19, em 2020.
Ganhou fôlego com o julgamento da suspeição de Sergio Moro, em 2021. Enfrentou seus testes mais agudos nos inquéritos e ações eleitorais conduzidos por Alexandre de Moraes, que – com todos os seus problemas – colocaram freio ao bolsonarismo e garantiram eleições minimamente justas, em 2022. E, ao contrário do que muitos podem pensar, está longe de acabar: até que se restabeleça algum senso de normalidade nas relações entre Executivo e Legislativo, nas relações civis-militares, no debate público envenenado por desinformação e radicalismos, nem Lula, nem o Brasil podem abrir mão de um STF e da possibilidade de uma PGR comprometidos com a estabilidade institucional e a defesa da Nova República.
Tudo isso implica numa mudança de chave nada trivial sobre indicações a esses cargos. Ao invés de encará-las como parte de uma política menor, afeita a carreiras ou facções das profissões jurídicas, como fez no passado, Lula agora as enxerga como parte essencial da grande política. Ministros(as) do STF e o(a) titular da PGR se tornaram, definitivamente, agentes da governança política. Vão decidir processos. Mas vão ser chamados a atuar (queiram ou não) como mediadores no difícil processo de restabelecimento de regras do jogo.
É possível que o Brasil encontre aí um ponto de equilíbrio pelos próximos dez ou 20 anos. Mas esse equilíbrio será precário. STF e PGR não foram feitos para carregar nos ombros o fardo da grande política e, na medida em que assumem tarefas dessa natureza, tendem a ficar ainda mais expostos e vulneráveis. Seria mais importante se essas instituições se voltassem mais para cumprir a missão que lhes foi atribuída pelo constituinte: a efetivação de direitos. Mas, basta olhar para o outro lado da Praça dos Três Poderes, onde se discute até mesmo um projeto de lei para acabar com o casamento homoafetivo, para se perceber o quão ingênuo será esperar, aqui também, por tais “passos à frente”. No atual contexto, se andarmos de lado já estará mais do que bom.