
Assim como as palavras têm sentidos diversos no uso cotidiano, assumem significados distintos quando plasmadas em conceitos jurídicos. Um exemplo notabilizado recentemente foi o de crime político.
A Constituição menciona “crimes políticos” por duas vezes: uma para vedar a extradição de estrangeiro por referidos delitos (art. 5o, LII), outra para fixar como competência do Supremo Tribunal Federal, em grau de recurso ordinário, julgar crimes políticos.
O ministro Maurício Corrêa, na Extradição 794, requerida pelo Paraguai, afirma que a Constituição não cuidou de defini-los, missão que não é simples, como dito por Nelson Hungria, que também fora ministro do STF, porém que admitiria a seguinte locução: “Aqueles dirigidos, subjetiva e objetivamente, de modo imediato, contra o Estado como unidade orgânica das instituições políticas e sociais”. Pedro Nunes, igualmente citado por Corrêa, adicionava o seguinte elemento: “Ação subversiva inspirada em propósito político elevado e nobre, que visem o bem comum ou da pátria”.
Há, assim, um vetor comum à compreensão do quanto sejam crimes políticos, nos termos do texto constitucional: um atentado, subjetivo e objetivo, ao Estado, assim entendido como uma unidade orgânica das instituições políticas e sociais.
Pode-se, porém, bipartir o crime político à luz dos valores constitucionais entre aqueles cometidos “em propósito elevado e nobre, que visem o bem comum ou da pátria” e aqueles cometidos seja para fazer instaurar um regime autoritário, seja para sabotar a ordem constitucional vigente, sem articulação com uma mudança posterior.
No primeiro grupo, cuida-se fundamentalmente de não submeter o súdito estrangeiro a governo que não lhe conferirá as garantias fundamentais a um julgamento justo e imparcial, como se discutiu na Extradição 794.
Já o segundo grupo, despido, como dito, de valores de resistência ao autoritarismo e busca de normalidade democrática, vem sendo definido como propunha Hungria, e enquadrados até recentemente na Lei de Segurança Nacional “presentes as disposições gerais estabelecidas nos artigos 1º e 2º do mesmo diploma legal” (RC 1473, Rel. Min. Fux, DJe 18/12/2017). Recentemente, deu-se reforma à Lei de Segurança Nacional, transformada na Lei 14.197/21, adicionando o Título XII ao Código Penal – Dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Retomo a pergunta: o crime de Foz do Iguaçu foi crime político? Nos termos do texto constitucional, não.
Essa conclusão parcial, porém, está longe de responder à questão de forma definitiva.
O sentido jurídico de crime político não se restringe às hipóteses constitucionais e comporta perfeitamente a compreensão daquele crime que foi motivado politicamente, ainda que sem conexão com a ameaça (legítima ou não) à ordem constitucional (legítima ou não). Para conferir algum foco a uma análise possivelmente infindável, empregarei político aqui como sinônimo de político-partidário.
Ainda sem me posicionar sobre o caso concreto, vejamos como a motivação político-partidária de um homicídio pode ter particular relevo penal.
O motivo de um homicídio pode torná-lo qualificado (aumentando a pena abstratamente cominada para 12 a 30 anos), ou minorado (reduzindo a pena de ⅙ a ⅓). Qualificam o homicídio, conforme o parágrafo 2o do art. 121 os motivos:
- (i) torpe (inciso I);
- (ii) fútil (inciso II);
- (iii) para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime (inciso V);
- (iv) contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino (inciso VI);
- (v) contra autoridades descritas nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, desde que motivados por ostentarem tal condição. Minoram a pena os motivos de relevante valor social ou moral (parágrafo 1o).
Os artigos dedicados às agravantes (arts. 61 a 65 do Código Penal) não trazem outros motivos que já não tenham sido empregados como qualificadoras ou minorantes. Como se vê, não há um vetor próprio dedicado aos crimes políticos.
Toca, então, ao intérprete enquadrar a motivação política a um dos motivos penalmente relevantes.
Novamente, a ambiguidade dos crimes políticos em sentido constitucional podem qualificar ou minorar um homicídio: quem matasse em nome de restaurar a democracia em um Estado autoritário o faria em nome de relevante valor social, fazendo jus à forma minorada, sem prejuízo de outras causas de exclusão de antijuridicidade ou culpabilidade, ao passo que quem o fizesse para fazer instaurar um regime autoritário certamente cometeria um homicídio qualificado, quando não outro crime propriamente político.
E quem mata adversário político-partidário, fora do contexto de crime contra o Estado?
Em uma democracia, não há dúvida que tal motivação é vil, abjeta e, assim, torpe, fazendo incidir o inciso I, do parágrafo 2o, do art. 121 do Código Penal.
Chego, assim, à parte final: faz sentido chamar o homicídio de Foz do Iguaçu como crime político?
A resposta é positiva. Ele não é político, nos termos constitucionais; ele é qualificado, por motivo torpe, segundo a dicção técnico-penal; e ele é político no sentido comum empregado pelos falantes.
A disputa discursiva pública em torno do termo “crime político” é absolutamente legítima e, ainda que divergente do sentido jurídico-constitucional, em nada esvazia o que se contenda na arena pública: um cidadão foi morto, em sua festa de aniversário, diante de sua família, simplesmente por abraçar um candidato à Presidência diferente de seu assassino.
Em tempos em que a democracia está a um pequeno passo do abismo, sob os olhares comprados e impávidos dos órgãos que deveriam defendê-la, faria todo sentido adicionar novo inciso a alguns tipos penais, sem nenhum aumento de pena: o de motivação político-partidária.