Executivo

Governar por decreto: quatro paradoxos e um presidente

O novo autoritarismo carece de autoridade e não quer impor o medo; prefere monopolizar o amor ao governante e o ódio aos descontentes

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Manifestação contra quarentena na avenida Paulista em São Paulo / Crédito: Allan White/FotosPublicas

Thomas Hobbes (Leviatã, capítulo 26) definia a soberania como “o poder integral de prescrever regras” e considerava um paradoxo exigir que o soberano-legislador se submetesse às mesmas leis que outorgasse. O soberano não se sujeita às leis; os súditos, sim – sendo componentes do corpo artificial que é o soberano.

Carl Schmitt pretendeu-se um sucessor teórico de Hobbes e ofereceu-se ao nazismo como jurista oficial do regime. Sonhava com uma conciliação entre o decisionismo arbitrário do chefe de Estado e o ordenamento concreto do espírito popular e de suas tradições profundas[1].

Desdenhava da visão liberal do direito como norma abstrata, capaz de se impor sobre o próprio órgão que a põe. Para rejeitar os contrangimentos da legalidade formal e material – do protagonismo congressual e das normas gerais e abstratas –, o soberano havia de exercer seu misto de judicatura, legislação e execução supremas, alinhando o povo em seu favor e colocando-o em movimento.

Durante a república parlamentar (ou semipresidencial) de Weimar, o artigo 48 da constituição foi invocado reiteradas vezes. O dispositivo autorizava, de um lado, a intervenção federal; de outro, os “poderes emergenciais” do presidente para chefiar as Forças Armadas e suspender direitos fundamentais.

A crise econômica radical favoreceu a propaganda das ideias radicais de Hitler e lhe concedeu as bases de apoio popular necessárias para desfazer-se dos bloqueios parlamentares[2]. Mas muito de Hobbes e Schmitt chegou até nós e penetrou o constitucionalismo liberal e democrático. O ideal constitucional de uma ordem jurídica plenamente autorregulada chegou assim a alguns paradoxos: para fugir ao absolutismo decisionista, ou para contê-lo em alguma medida.

A combinação de soberania popular, separação de poderes e Estado de Direito cria aquele tipo de legalidade liberal que se funda precisamente no paradoxo que Hobbes queria evitar: decidimos sobre quem vai decidir por nós – nossos representantes – e as decisões destes são tomadas em nosso nome, portanto imponíveis a nós e a eles.

A sede desse paradoxo é o legislativo, embora na república também o executivo tenha um caráter de representação e responsabilidade política. A federação expande essa autovinculação pelos vários níveis de governo.

Ao lado de um Kelsen deturpado, e ignorado em sua defesa do pluralismo democrático, Schmitt foi notável influência sobre governos autoritários ao redor do mundo, inclusive para a ditadura militar brasileira, a começar do primeiro Ato Institucional, atribuído a Francisco Campos[3].

Mas Schmitt adentrou também, com atenuantes e ponderações, a tradição constitucional democrática e liberal. Na verdade, Schmitt construiu um pensamento constitucional ambivalente: de um lado, enrijecendo a constituição com certas “garantias institucionais” (como a propriedade, no direito privado; e o autogoverno das unidades federativas, no direito público) que permaneceriam intocáveis.

O constitucionalismo liberal e democrático desde a segunda metade do século passado adaptou a ideia de Schmitt, como no caso de nossas “cláusulas pétreas”. Aceitou os limites materiais à reforma constitucional, porém valorizando os textos constitucionais e colocando-os sob a guarda não de um soberano absoluto, mas da jurisdição constitucional.

De outro lado, Schmitt aceitava o estado de exceção como puro exercício de poder, razão de Estado não constrangida pelo direito, soberania em estado bruto. Um equivalente funcional a tal estado de exceção foi incorporado nas constituições democráticas na forma do estado de sítio, do estado de defesa e da intervenção federal.

Durante a vigência dessas situações excepcionais, a constituição não pode ser emendada, é certo; mas a legalidade normal é amainada em favor de uma legalidade excepcional. A constituição procura normatizar a exceção – outro paradoxo.

Entretanto, há as “exceções excepcionais” – infrequentes, como calamidades, guerras, grave compromentimento da ordem pública – e as exceções rotineiras: terceiro paradoxo. Essa exceção rotineira se corporifica nos casos de “relevância e urgência”, quando “o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional” (artigo 62, caput, da Constituição Federal). Aloja-se também sob a competência do presidente para expedir decretos para a “fiel execução” de leis (artigo 84, IV).

Mais do que em princípios abstratos e insuperáveis, nossa ordem constitucional parece fundar-se em paradoxos intrincados, como os três elencados. Eles consagram a supremacia da lei e do parlamento na formação da vontade pública e na definição do interesse público. Definem hipóteses estritas para que o executivo possa intervir na ordem jurídica, subordinando-o sempre ao legislativo.

Na medida em que essas hipóteses são flexibilizadas ou invocadas abusivamente, a pretensão e a prática de “governar por decreto” (ou por medidas provisórias, ou mesmo dentro de um estado de defesa) torna-se perigosa.

Como informou o JOTA, Bolsonaro já baixou dez medidas provisórias durante entre fevereiro e março, na ambiência da crise do coronavírus. A literatura comparada sobre “governo por decreto” dentro do presidencialismo destaca o caso brasileiro pelo protagonismo do executivo no controle do processo legislativo, em contraste com o modelo presidencial dos Estados Unidos, no qual o controle da agenda depende mais enfaticamente das bases congressuais (e de seu alinhamento ao executivo).

Entretanto, os presidentes brasileiros historicamente desfrutavam de um poder de veto relativamente menor e de uma dependência do parlamento relativamente maior em comparação, por exemplo, com a Argentina.

Com isso, o sucesso costumava ser menor na transformação de decretos de urgência em legislação permanente. O legislativo ou obstruía tal transformação ou alterava consideravelmente o conteúdo das medidas, atenuando as intenções presidenciais originais[4]. Se isto mudou no atual governo é uma hipótese que só poderá ser constatada com o tempo.

Evidente é que, com sua habitual rudeza, nosso atual chefe de Estado e de governo tem tratado de colocar o dedo nas feridas constitucionais que institucionalizam a precedência do Congresso na definição das políticas públicas ou, ao menos, de sua moldura institucional.

Não só por palavras, mas também por atos (paralegislativos), o Presidente ataca a autoimposição das leis e medidas de política pública aos próprios governantes, abusa das medidas provisórias e ameaça governar por decreto ou impor um estado de defesa ou de sítio; por vezes, volta atrás em suas ameaças de se sobrepor aos demais poderes – mas sempre no espírito de que sua única consistência é a incongruência. Ou, como observou José Eduardo Faria, invocando Shakespeare: é uma loucura com método.

O Presidente diz-se liberal e democrata (embora recém-convertido), mas sabemos desde Fuller[5] que um estado de direito verdadeiramente compenetrado das virtudes da legalidade liberal deveria garantir a não contradição entre suas prescrições, a constância e a congruência entre as proclamações e as condutas das autoridades.

Até Hobbes já dizia que o soberano é necessário para definir o sentido das palavras e formular as devidas distinções em lei, evitando que seus súditos caíssem em um conflito perene, cada qual julgando segundo suas próprias convicções e arbítrios.

Entretanto, o novo autoritarismo carece de autoridade e não quer impor o medo; prefere monopolizar o amor ao governante e o ódio aos descontentes. Como já registrei em artigo aqui no JOTA, trata-se de uma estratégia de comunicação que reproduz o manual mundial do populismo autoritário, última edição (atualizada para as tecnologias digitais).

O chefe de Estado, que deveria simbolizar a unidade nacional, desorienta e confunde; o chefe de governo, por sua vez, assume sua ignorância completa sobre o conteúdo das políticas públicas, da economia à saúde pública.

Nosso paradoxo final é de que se trata da mesma pessoa: o presidente da república. O protagonismo legislativo, federativo e judiciário de contenção dessa incongruência tem seus limites – até porque tal ignorância do nosso “soberano” por vezes deixa de ser um fator de autocontenção e se transforma em uma autoexaltação de seu poder: no limite, para inflamar manifestações autoritárias contra os poderes constituídos ou mesmo cogitar da decretação de um estado de sítio; corriqueiramente, para intervir em preços, conceder benefícios econômicos casuísticos a setores favorecidos ou contradizer (por atos e discursos) as prescrições sanitárias de seu próprio governo (bem como da ciência mundial, das organizações internacionais e dos governos estaduais e municipais).

Irá o constitucionalismo liberal-democrático – com a supremacia da lei, o federalismo e o controle judicial – conseguir conter os adeptos cientes ou inconscientes de Hobbes e Schmitt? Esperamos que o direito coloque em ação sua função antiviral.

 


[1] Ver especialmente SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos do pensamento jurídico. Tradução de Peter Naumann. In: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do direito. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

[2] Ver LEPSIUS, Mario Rainer. Max Weber and Institutional Theory. Bern: Springer, 2017.

[3] Ver SILVA, Márica Pereira da. História e culturas políticas: as concepções jurídicas evocadas pelos governos militares enquanto instrumento de obtenção de legitimidade. História, Franca, vo. 28, n. 2, 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742009000200002 Acesso em 9 abr. 2020.

[4] Ver NEGRETTO, Gabriel. Government Capacities and Policy Making by Decree in Latin America: The Cases of Brazil and Argentina. Comparative Political Studies, vol. 37, n. 5, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0010414004263663 Acesso em 9 abr. 2020.

[5] FULLER, Lon L. The morality of law. 2 ed. New Haven; London: Yale University Press, 1969.