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Aulas suspensas, alunos em casa. Tenho que pagar a escola?

Em uma época onde se prega a solidariedade e a empatia, deve haver um esforço conjunto entre escolas e alunos/pais

Imagem: Pixabay

Em tempos de pandemia da COVID-19, de isolamento social, escolas fechadas e crianças em casa, uma pergunta tem dominado o grupo de mães no WhatsApp: Eu sou obrigada a pagar a mensalidade escolar? A escola não teria que dar um desconto, uma vez que está fechada? Se não está tendo aula, por que eu tenho que pagar?

A situação é extremamente delicada, uma vez que muitos pais são autônomos, profissionais liberais, e viram sua renda mensal se esvaziar completamente, e não terão como honrar seus compromissos. Por outro lado, no Rio de Janeiro, as escolas foram obrigadas, através de decreto estadual, a suspenderem as aulas e mandarem os alunos para casa. Contudo, continuam tendo que pagar os professores, que correspondem, sem a menor sombra de dúvida, a maior parte dos custos de uma instituição de ensino. Como resolver este impasse?

A questão ganhou uma notoriedade ainda maior, quando, de um lado, o deputado estadual André Ceciliano (PT-RJ) apresentou um Projeto de Lei obrigando as escolas a darem, pelo menos, 30% de descontos na mensalidade, a partir do 31º dia de suspensão de aulas1, e, do outro lado, em 26 de março de 2020, a Secretaria Nacional do Consumidor, divulgou a nota técnica 14/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ, informando que as escolas não são obrigadas a reduzir os valores dos pagamentos mensais ou a aceitarem a postergação desses pagamentos2.

Além disso, algumas escolas, por conta própria, comunicaram aos pais que haveria uma redução de 15% a 50% no valor das mensalidades devido a suspensão das aulas. Outras disseram que não haveria mudanças.

De forma a tentar equacionar a questão, temos que ter em mente as regras que regem a presente relação contratual, o momento atual inédito que estamos vivendo e, principalmente, tentar encontrar uma solução onde nenhuma das partes seja prejudicada, principalmente o aluno. Vejamos.

Os princípios fundamentais que regem todo e qualquer contrato são encontrados na nossa Constituição Federal. São eles: A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV), solidariedade social (art. 3º, I) e a igualdade substancial (art. 3º, III).

É pacífico na jurisprudência e na doutrina que a relação entre a instituição de ensino e o contratante (responsável financeiro) é regida pelo Código de Defesa do Consumidor, o que garante ao consumidor uma posição de vulnerabilidade3 diante da relação contratual, tendo em vista o seu desconhecimento jurídico, técnico e econômico. Assim, aos contratos de consumo, além dos princípios constitucionais supracitados e da vulnerabilidade do consumidor, outros dois princípios, que também se encontram no CDC, devem reger as relações contratuais consumeristas, quais sejam: o princípio da boa-fé objetiva (art. 4º, III e art. 51, IV) e o princípio do equilíbrio das prestações (art. 4º, III, 51, IV, e 51, § 1o, III).

Assim, os contratos consumeristas não são analisados apenas quantitativamente, mas também qualitativamente. É verificada a qualidade da vontade exarada, de forma que o consumidor esteja habilitado a exercer escolhas conscientes, e não apenas a vontade em si. Somente a vontade racional, livre, informada, legítima, é que se é levada em conta no contrato consumerista. Com base nestes princípios é que devemos analisar a questão trazida à baila.

A doutrina vem debatendo se a questão da pandemia da COVID-19, poderia ser utilizada como força maior ou caso fortuito nas relações de consumo. Não parece que este seja o melhor entendimento para as relações consumeristas.

Comungamos do entendimento que só se aplica o artigo 144 do Código de Defesa do Consumidor para a exclusão da Responsabilidade Civil, em decorrência da quebra do nexo causal, e não para resolução ou revisão do contrato5. Logo, e lembrando que se trata de um contrato de adesão, fora os casos onde se venha a discutir uma eventual responsabilidade civil, não se deve aplicar o referido artigo para que se haja a discussão das cláusulas do presente contrato educacional, ao contrário do que alguns têm defendido. Muito menos para sua resolução ou como justificativa para o seu inadimplemento.

Não custa lembrar que em relação aos contratos educacionais, trata-se de uma anuidade, cujo valor pode ser a vista ou parcelados em até 12 parcelas mensais e iguais – o que, costumeiramente chamamos de mensalidade – a depender da vontade de cada responsável financeiro. Assim a instituição de ensino pode conceder descontos maiores àqueles que fizerem o pagamento à vista, e menores àqueles que fizerem o pagamento parcelado, a variar com os números de parcelas a serem pagas. Fácil verificar que se trata de um contrato sucessivo, uma vez que suas prestações, as aulas, se darão mês a mês.

Nos últimos anos, uma prática foi disseminada pelas instituições de ensino: a do “desconto de pontualidade”, para o pagamento em uma determinada data, anterior ao vencimento. Explica-se: algumas instituições, dividem a anuidade em doze parcelas, mas se o aluno fizer o pagamento da parcela até uma determinada data – por exemplo, cinco dias antes do vencimento – ainda tem direito a um “desconto de pontualidade” que pode chegar até a 20% do valor da parcela.

Em duas ocasiões6 o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que não há qualquer abusividade na supracitada prática. Segundo estas decisões, não se trata de uma multa camuflada de desconto, e sim de um estímulo ao adimplemento, uma prática promocional, por assim dizer. Para o Ministro da Terceira Turma do STJ, Marco Aurélio Bellizze, relator do REsp 1.424.814/SP: “o desconto pontualidade tem por finalidade premiar o adimplemento, o que, por si só, afasta qualquer possibilidade de bis in idem, seja em relação à vantagem, seja em relação à punição daí advinda”7. Logo, trata-se de uma liberalidade da instituição de ensino, para garantir um inadimplemento menor por parte dos alunos.

E é neste cenário que se encontram muitos alunos/pais, os consumidores da relação ora debatida, sem saber como irão fazer para pagarem as mensalidades, para não perderem o benefício do desconto, e se perguntam, por que têm que continuar a pagar as mensalidade se a contraprestação, aula, não está sendo realizada.

Todavia, não fora por vontade das instituições de ensino, que neste caso ocupa a posição de fornecedor, que as aulas foram canceladas. Foi por uma determinação estatal, através de um decreto, que as instituições de ensino tiveram que interromper seu funcionamento, um fato do príncipe, expressão advinda do Direito Administrativo.

A manutenção de uma instituição de ensino envolve gastos que vão além do pagamento dos funcionários: água, luz, gás, aluguel, limpeza, dentre outros, são apenas alguns dos gastos fixos que podemos enumerar aqui. E devido ao fechamento das escolas, estes gastos poderão cair vertiginosamente. Todavia, a folha de pagamento, de professores e de outros funcionários, que muitas vezes não são terceirizados, permaneceram inalteradas. E, certamente, consome mais da metade de todo o orçamento.

É louvável o esforço que muitas escolas têm realizado: aulas on-line, envio de exercícios aos alunos, lives, etc. de forma que o aluno não perca o ano letivo, o foco, sem que haja necessidade de prorrogação das aulas, protegendo a todos da contaminação da COVID-19, evitando as aglomerações e respeitando o isolamento social.

Mas, o que se vê é uma insatisfação dos dois lados: alunos, principalmente as crianças sem aula presencial, e escolas prevendo um inadimplemento em massa.

Uma vez que a pandemia da COVID-19, é um fato novo e imprevisível, a solução mais simplista poderia ser a resolução do contrato por onerosidade excessiva ou pela teoria da imprevisão, baseado nos artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil. Mas seria realmente interessante, para ambas as partes, o término do contrato? Sem sombra de dúvida, ainda mais por se tratar de um contrato que envolve diretamente direitos existenciais, o direito a educação, vale a pena pensar em soluções mais atrativas.

Palavras como empatia, solidariedade, boa-fé, negociação, neste difícil momento que estamos atravessando, se encontram em voga8. Mas, chegou a hora de tirá-las do campo da abstração e colocá-las em prática. Nunca isto se fez tão necessário!

A melhor solução sem sombra de dúvida deve ser a negociação9. Diante do quadro atual, o melhor a se fazer é que se proponha à direção da escola uma dilatação no prazo para o pagamento, parcelamento ou alteração da data de vencimento. Nas escolas que praticam o tal desconto, que o mesmo seja mantido, independente da data de pagamento, bem como a retirada de multas, juros e correção. Mantém-se o aluno na instituição de ensino e a escola garante a continuidade do contrato, assim como o seu adimplemento.

Um diálogo entre representantes dos alunos e da instituição de ensino, com a apresentação da tabela de custos da escola, verificando-se juntos, onde houve a diminuição de gastos, repassando esta diminuição aos alunos, principalmente nas instituições sem fins lucrativos, pode ser uma melhor solução para todas as partes envolvidas.

É pacífico o entendimento que a escola não poderá impedir o aluno de frequentar as aulas ou de enviar seu histórico em caso de transferência, mas não pode ser obrigada a renovar a matrícula daquele aluno que se encontra inadimplente. Então, de forma a se evitar uma evasão de alunos que não conseguirem pagar suas mensalidades, o que se mostra bastante temeroso, neste momento, urge a necessidade de se utilizar as práticas colaborativas, tão festejadas com a introdução do novo Código de Processo Civil.

Todos os esforços devem ser no sentido da renegociação, para preservação do negócio jurídico fundamentado na ideia de sua função social, em sua eficácia interna, nos termos do artigo 421 do Código Civil, baseados nos princípios constitucionais da solidariedade e do valor social da livre iniciativa, tendo como norte, sempre, a boa-fé objetiva. Há a necessidade de se conceber o contrato do ponto de vista da sua função social.

Nesse sentido é o Enunciado n° 22, do Conselho da Justiça Federal: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas.

Com efeito, o que se pede tanto dos alunos quanto das escolas é um enfoque mais humanista, mais solidário, uma postura mais focada no social, nos interesses da coletividade, no bem comum, na ordem moral e econômica social, onde a função social do contrato exerce a sua eficácia externa.

O direito possui todas as ferramentas de forma a evitar processos longos, custosos, para ambas as partes envolvidas no negócio jurídico, devendo estas utilizarem essas ferramenta negociais de forma a equilibrar os interesses em jogo, evitando o prejuízo do outro, lançando mão do dever de renegociação, de forma a garantir a manutenção do contrato.

Cada caso poderá, e deverá, ser analisado individualmente; pois cada família será impactada economicamente de forma diferente pela pandemia, mas todos serão afetados. Contudo, nada impede que algumas ações, que promovam o bem estar de toda a comunidade, alunos e instituições de ensino, sejam tomadas. Soluções consensuais pautadas na transparência, no dever de informação, de cooperação e de lealdade entre as partes (art.422 do Código Civil), bem como na boa-fé objetiva podem ser benéficas a todos os envolvidos.

O princípio da boa-fé-objetiva tem como uma de suas reconhecidas funções a criação de deveres outros que não aqueles normal ou tipicamente previstos na relação contratual. Para que tal princípio seja observado, não basta que o contratante se comporte de forma a não prejudicar o outro (boa-fé subjetiva), mas deve ir além, procurando se comportar com lealdade contratual, colaborando com a outra parte para que o serviço seja efetivamente prestado e utilizado. Assim, conforme os ensinamentos acima, um dos paradigmas do princípio da boa-fé objetiva é o dever de lealdade contratual. A boa-fé não é só um princípio, é um dever implícito.

Diante da presunção de desigualdade informacional entre fornecedor e consumidor, o dever de informação tem relevante papel como mecanismo de restabelecimento do (re)equilíbrio da relação. Ele decorre do princípio da boa-fé objetiva e deve ser cumprido em todas as fases contratuais, inclusive durante as tratativas do negócio, sua duração e após a execução do contrato.

A boa-fé, a confiança e a lealdade, devem estar sempre presentes em qualquer relação contratual. O que a sociedade deseja é um comportamento de lealdade e confiança entre as partes, um agir honesto antes, durante e após a relação. Agir se aproveitando da condição de inferioridade do outro, omitindo informações que influenciam na vontade da outra parte, não é uma atitude que expresse os valores sociais aceitos na sociedade que vivemos.

As opções para a preservação do contrato, a qual se dá preferência no ordenamento jurídico, são inúmeras: descontos nas mensalidades enquanto durar a suspensão das aulas; diluição das mensalidades; manutenção de eventuais descontos de pontualidade, bolsas ou afins; a não incidência de multas, juros moratórios e correção monetária; pagamento das mensalidades faltantes ao final do ano letivo, sem penalidades; enfim, uma série de medidas que podem e devem ser tomadas pelas instituições de ensino, seja coletivamente, seja caso a caso, analisando a situação econômica de cada aluno e dos prejuízos causados pela pandemia per si.

Em uma época onde se prega a solidariedade e a empatia, deve haver um esforço conjunto, entre escolas e alunos/pais, onde devem procurar uma solução que atenda a todos, baseados nos princípios da dignidade da pessoa humana, do valor social da livre iniciativa, da solidariedade social, da igualdade substancial, da vulnerabilidade do consumidor, da boa-fé objetiva e do princípio do equilíbrio das prestações, de forma a evitar a todo o custo a resolução do contrato por onerosidade excessiva a uma das partes.

Como dizia um velho provérbio chinês: “Seja como o bambu, incline-se diante do vento, mas nunca se quebre. Não há que se forte. Há que ser flexível.”. Talvez seja isso que precisemos neste momento: para suportar este tempo difícil, todos teremos que nos curvar de alguma forma, mas quando tudo isso passar, vamos nos erguer, alunos e escolas juntos, dia a dia, minuto a minuto. Mas, sem nunca se quebrar. Algumas cicatrizes, arranhões, sofrimento, sacrifícios serão necessários, de ambas as partes, pela experiência que iremos viver. Mas retornaremos renascidos. E fortalecidos.

 

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3 Art. 4o, I, do CDC:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

4 Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I – o modo de seu fornecimento;

II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III – a época em que foi fornecido.

§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.

§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.

5 Neste sentido e por todos, v. SOUZA, Eduardo Nunes de e SILVA, Rodrigo da Guia em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322574/resolucao-contratual-nos-tempos-do-novo-coronavirus Migalhas, 25/03/2020

6 REsp 832.293/PR e REsp 1.424.814/SP.

7 “3.1 São distintas as hipóteses de incidência da multa, que tem por propósito punir o

inadimplemento, e a do desconto de pontualidade, que, ao contrário, tem por finalidade premiar o adimplemento, o que, por si só, afasta qualquer possibilidade de bis in idem, seja em relação à vantagem, seja em relação à punição daí advinda.“ (STJ, REsp 1.424.814/SP, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Terceira Turma, j. 04/10/2016, DJe 10/10/2016).