
Quando o programa Mais Médicos foi criado em 2013, com o objetivo de suprir a carência de profissionais nos interiores do Brasil no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), ele previa uma atualização curricular nos cursos de Medicina, com uma reforma focada em competências. O programa previa um período de cinco anos — de 2014 a 2018 — para que as instituições de ensino aplicassem essa reforma. No entanto, José Eduardo Dolci, diretor científico da Associação Médica Brasileira (AMB), além de reitor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, lamenta que a maioria delas foi “empurrando com a barriga” a atualização.
“Uma minoria de escolas está fazendo isso de forma real e concreta. Em especial para federais e demais instituições públicas, é um processo complexo, pois a reestruturação envolve mais custos e mais professores em mais ambientes para os alunos”, explica. A base dessa mudança são as chamadas EPAs, sigla em inglês que se traduz como atividades profissionais confiáveis, tarefas práticas que os alunos devem cumprir em cada ano de aprendizado.
Dolci explica como funciona: “No primeiro ano de formação, por exemplo, esse universitário deve aprender a aplicar uma injeção. Não adianta apenas ele saber prescrever qual substância intramuscular deve ser aplicada num paciente. Ou seja, ao mesmo tempo em que aprende a teoria, deve saber como usá-la na prática”.
Para ele, o Ministério da Educação (MEC) “não tem pernas” para fiscalizar e cobrar. “Se o Brasil tivesse 120 faculdades de Medicina, talvez fosse possível, mas hoje são mais de 390”, acrescenta o reitor da Santa Casa, onde a nova matriz curricular começou em 2019 e está implementada até o terceiro ano do curso de Medicina.
O JOTA entrou em contato com o Ministério da Educação, por meio do seu Conselho Nacional de Educação (CNE) e da Secretaria da Educação Superior (SERES), mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. Em nota publicada em março, com o anúncio da retomada do programa Mais Médicos, o MEC informou que “o foco da medida estará na formação desses profissionais”, com ampliação do número de vagas de residência nas áreas prioritárias para o SUS, além de incentivo a mestrado e pós-graduação em Atenção Primária à Saúde e Medicina da Família e Comunidade.
“O profissional terá repertório teórico aliado às experiências práticas para potencialização de sua atuação. A iniciativa deverá aumentar o número de pós-graduados stricto sensu com mestrado no Brasil, ampliando os conhecimentos científicos dos participantes”, afirma o Ministério.
A Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) é uma das que vêm aplicando a reforma curricular, num processo que começou em 2021. A última atualização havia sido feita 20 anos antes.
Para Fabio Husemann Menezes, coordenador da graduação de Medicina da Unicamp, o essencial é que “o entendimento dos processos de adoecer em todos os seus aspectos, biológicos, emocionais, sociais, incluindo aspectos culturais e espirituais” esteja aliado ao conhecimento sobre novas tecnologias, uma necessidade que ficou ainda mais escancarada durante a pandemia de Covid-19. “Isso é, de fato, o aprendizado do ponto de vista de competências adquiridas e da capacidade do futuro médico realizar as atividades a eles propostas de maneira confiável”, afirma.
João Luiz de Souza Lima, diretor acadêmico do Instituto Superior da Associação Paulista de Medicina (IESAPM), concorda que a formação tecnológica deve ser prioridade, sobretudo frente à renovação dos conceitos diagnósticos através de aparelhos de ponta e à probabilidade de outras pandemias globais no futuro. “Mas também há uma grande carência na formação para gestão de áreas de saúde. Por isso, cursos como o de Tecnologia em Gestão Hospitalar ou MBA em marketing e saúde são estratégicos”, ressalta.
Lima considera que as reformas curriculares na área devem abarcar um conhecimento macro e eclético de áreas que dão suporte à Medicina, como Economia, Estatística e Matemática, além de uma formação psicológica para os profissionais, tanto para oferecer uma atenção mais humana ao paciente quanto para enfrentar os dilemas do próprio ofício. “Não sabemos, afinal, se no futuro a Medicina será cada vez mais especializada ou multifuncional”, diz.
Avaliações
José Eduardo Dolci considera que a principal defasagem nos cursos de Medicina é a falta de campo de prática e de professores nas faculdades. “Há escolas médicas no Brasil que não têm sequer um hospital com 20 leitos para a prática dos alunos”, lamenta.
Dados da Radiografia das Escolas Médicas Brasileiras 2020, divulgada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), confirmam essa avaliação: de acordo com o levantamento, 92% das instituições de ensino superior com cursos de Medicina estão em municípios com déficit em pelo menos um dos três parâmetros considerados ideais para seu funcionamento.
O CFM estabelece que os critérios mínimos para que o processo de ensino-aprendizagem transcorra sem problemas são: 1) oferta de cinco leitos públicos de internação hospitalar para cada aluno no município sede de curso; 2) acompanhamento de cada equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF) por no máximo três alunos de graduação; e 3) presença de hospital com mais de cem leitos exclusivos para o curso.
Os dados também revelam que das 163 escolas médicas abertas entre 2011 até o primeiro semestre de 2020, 65 (39,9%) estão em 50 municípios que não cumprem nenhum dos requisitos mínimos considerados ideais para uma boa formação médica.
A discussão sobre a abertura de novos cursos ou de autorização para ampliação de vagas foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Duas ações sobre o tema foram propostas no ano passado, mas com pedidos em direção opostas. De um lado, a Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup) pede a declaração da constitucionalidade de um artigo da Lei do Programa Mais Médicos, que trata justamente da formação de médicos no país. A ação é uma tentativa de neutralizar um movimento que ganhou corpo nos últimos dois anos, de instituições de ensino tentando na Justiça o direito de abrir ou ampliar vagas de cursos de Medicina.
Já a outra ação, interposta pelo Conselho de Reitores das Universidades, busca declarar a inconstitucionalidade da lei sob o argumento de que as regras criadas pelo Mais Médicos privilegiam certos grupos e impedem que até instituições tradicionais aumentem o número de vagas para cursos de Medicina. As duas ações foram distribuídas para o ministro Gilmar Mendes, que considera ideal analisar a questão em conjunto com o governo federal, segundo a apuração do JOTA no ano passado.
Dolci tem participado de reuniões na SERES, do MEC, sobre a abertura de novas faculdades de Medicina, onde insiste que, antes de serem ofertadas mais vagas na área, é preciso garantir a existência da estrutura essencial mencionada. “Cada faculdade deveria ter um hospital com pelo menos 100 leitos e 60% da carga horária do curso ensinada por profissionais médicos que tenham pelo menos um mestrado”, opina.
O diretor científico da AMB também defende que seria fundamental haver uma avaliação do estudante quando se forma para saber se ele está, de fato, apto a exercer o ofício.
“Com certeza, os sistemas de avaliação da formação médica são o maior desafio para os novos currículos”, concorda Fabio Menezes, da Unicamp. “O desafio de avaliar não somente o conhecimento, mas também as competências do futuro médico exige maior empenho do ponto de vista dos corpos docentes e do engajamento estudantil em formas de avaliação variadas e que não somente sejam usadas para atribuir notas, mas para reforçar e estimular a aprendizagem”, acrescenta.
Ele também cita a necessidade de aliar o uso de novas tecnologias ao foco no cuidado humanizado. “A tecnologia, quando não utilizada de forma adequada, pode afastar o futuro médico do relacionamento médico-paciente, que é a base da boa prática da Medicina”, afirma.
João Luiz de Souza Lima, da IESAPM, ressalta que a sociedade está carente de médicos que ofereçam mais suporte. “A tendência é a volta de um médico mais do passado, mais presente na vida dos seus pacientes, com conhecimento tecnológico que aponta para o futuro. O desafio é usar a tecnologia para diagnosticar mais rápido, mas sem afastar esse aspecto humano, que é a essência da profissão.”