“A Justiça do Trabalho dribla jurisprudência do STF”. Assim começa uma das recentes reportagens sobre a alegada resistência de juízes trabalhistas em seguir as orientações do Supremo. O mesmo ponto aparece em votos de ministros no julgamento de diferentes Reclamações levadas ao tribunal, com críticas a um suposto desrespeito à autoridade da própria corte. Mais recentemente, Reclamações frequentes sobre o tema de vínculo empregatício no STF levaram a PGR a pedir a instauração de um incidente de assunção de competência para que seja uniformizada a jurisprudência do tribunal sobre o tema.
Mas a Justiça do Trabalho vem desempenhando, de fato, algum papel de protagonismo no universo das Reclamações que chegam ao Supremo?
Para além da Justiça do Trabalho, conhecer a realidade das Reclamações no STF é explorar como os precedentes do Supremo são encarados pelo Judiciário brasileiro. Se é questionável a existência de vinculação a precedentes na própria Corte, é preciso apurar se resultado semelhante pode ser igualmente observável para a vinculação do restante do Judiciário às decisões do tribunal, estando a magistratura do trabalho no centro desse cenário de descompasso entre normatividade e realidade.
Dados sobre o universo de reclamações no Supremo comprovam essa percepção. Para realizar esse diagnóstico, coletamos as informações do painel de Reclamações do próprio tribunal referentes a processos, partes e decisões. Limitamos a análise apenas aos processos autuados entre 1988 e 2022, totalizando 56.216 processos, dos quais havia informações sobre as partes em 48.364. Para calcular a taxa de sucesso utilizamos a primeira decisão final ocorrida em cada um dos 55.307 processos com decisão informada.
De início, cumpre destacar que o número de Reclamações recebidas tem aumentado no tempo, como o revela o gráfico abaixo. É certo que reformas legislativas e a própria compreensão da Corte, no tempo, sobre as hipóteses de cabimento de Reclamações podem explicar parte desse movimento. Sem embargo, outra possível explicação para essa constatação é simples: ministros do STF e autoridades judiciárias de outras instâncias não compartilham as mesmas visões sobre diversos temas. Isso não é necessariamente um problema. Convergência plena de entendimentos não deveria ser algo esperado em um Judiciário plural e independente. Contudo, um desafio se impõe quando esse descolamento produz algum tipo de “insubordinação” recorrente.
No universo analisado, os 7 “ramos do direito” (na classificação do STF/CNJ), mais associados às Reclamações são:
Tabela 1 – 7 Ramos com maior frequência de reclamações
Ramo |
Número de reclamações |
% de reclamações |
DIREITO PENAL |
1.107 |
1,81% |
DIREITO TRIBUTÁRIO |
1.459 |
2,38% |
DIREITO CIVIL |
1.477 |
2,41% |
DIREITO PROCESSUAL PENAL |
8.307 |
13,57% |
DIREITO DO TRABALHO |
11.602 |
18,96% |
DIREITO ADMINISTRATIVO E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO |
12.614 |
20,61% |
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO TRABALHO |
20.116 |
32,87% |
Como se nota, “direito do trabalho” e “direito processual [civil e] do trabalho” aparecem com posição de destaque no universo das Reclamações levadas ao Supremo. Mas o protagonismo da Justiça do Trabalho se verifica definitivamente quando classificamos os “Reclamados” segundo a esfera do Judiciário ou do Estado que integram. Como expõem a próxima tabela e o próximo gráfico, diferentes instâncias da Justiça do Trabalho lideram com folga o universo dos alvos das Reclamações, em movimento ascendente no tempo (Tabela 2). Em paralelo, órgãos da Administração pouco desafiam os entendimentos do tribunal:
Tabela 2: Percentual de reclamações em que reclamado foi classificado em cada categoria
Trabalhista |
Tribunal Superior |
TST |
Juizados |
Eleitoral |
Administração |
MP |
Justiça Federal |
|
% de Reclamações |
28,65% |
5,59% |
12,14% |
9,43% |
1,06% |
2,73% |
2,37% |
11,6% |
# de reclamações |
22.419 |
3.132 |
6.804 |
5.287 |
593 |
1.529% |
1.327 |
6.501 |
Mas essas informações não sustentam sozinhas o retrato sugerido. Embora precedentes, na leitura mais rigorosa, exerçam pressão sobre a decisão de casos atuais pelo seu status autoritativo, não importando, por isso, a avaliação da correção do conteúdo da decisão, mas quem a tomou, trabalhar com precedentes não significa estar incondicionalmente vinculado.
Escapes são possíveis, podendo tanto o órgão jurisdicional que estabeleceu o precedente superá-lo, como a instância potencialmente vinculada distinguir o caso atual do caso precedente. Nessa última alternativa, a vinculação não se dá exatamente por ser possível justificar a presença de características salientes capazes de diferenciar os casos. Por esse motivo, sustentar que um órgão jurisdicional não se sente verticalmente vinculado aos precedentes de uma autoridade que lhe é superior exige considerar não apenas a quantidade de Reclamados, mas o resultado dos pedidos de Reclamação. Nesse aspecto, a possível alegação de distinção parece não ter sido frequentemente endossada pela corte.
Como revela o gráfico acima, a Justiça do Trabalho segue como protagonista, tanto no geral, como considerando apenas o TST. Ao mesmo tempo, em pontos específicos a Justiça Federal e os Juizados Especiais aparecem com posição destacada entre aqueles com maior percentual de Reclamações providas. Por outro lado, órgãos do Executivo e os demais tribunais Superiores parecem aderir com maior constância aos julgados da corte.
O que esses dados revelam sobre a prática de precedentes de um tribunal como o Supremo?
Schauer, ao argumentar que precedentes raramente importam para a tomada de decisões da Suprema Corte dos EUA, ressalta que a ausência de vinculação do tribunal às suas próprias decisões passadas não implica que precedentes não importam naquele país. Talvez um tribunal de cúpula seja o pior lugar para investigar se uma determinada jurisdição leva realmente a sério a ideia de stare decisis. “Olhar para baixo” e pesquisar níveis de respeito aos próprios precedentes em instâncias inferiores que lidam com mais casos rotineiros – que tendem, assim, a ser mais repetitivos – pode ser mais frutífero para detectar se as virtudes que justificam a observância de precedentes em qualquer direção, como estabilidade, igualdade, segurança e eficiência, estão presentes.
Esse “olhar para baixo” também pode dizer muito para uma investigação mais profunda sobre o papel dos precedentes no nosso país. Os dados apresentados sugerem, no geral, níveis de aderência das instâncias do Judiciário aos entendimentos do STF abaixo do esperado.
Para o Supremo, o papel de quarta instância do Judiciário e a quantidade de disposições legais que garantem eficácia vinculante para as suas decisões não parecem evitar a adoção, por outros órgãos jurisdicionais, de posturas desviantes capazes de serem consideradas pelos ministros como justificáveis a ponto de afastarem precedentes da corte potencialmente incidentes em casos específicos. Com isso, a construção de uma cultura saudável de precedentes no país – não só dentro do Supremo, mas também abaixo do tribunal quando está em jogo a vinculação vertical às suas decisões – segue um relevante desafio a ser superado.