Regulando a inovação

Linguagem jurídica rebuscada prejudica compreensão e o próprio Judiciário

Fundamentações mais claras favorecem legitimidade da Justiça e podem reduzir duração de processos

mulheres na advocacia criminal
Estátua da Justiça / Crédito: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Condições de cognoscibilidade. Juízo perfunctório. Ato perfectibilizado. Quem lida com o dia a dia do direito está acostumado a ler ou a ouvir tais termos nas peças jurídicas. A substituição da palavra “recurso” por “insurgência” ou a troca da expressão “analisar detalhadamente” por “perscrutar” também acontece com alguma frequência. O uso dessas palavras e termos originou a denominação do juridiquês: uma “língua” complexa, rebuscada, dominada com muita maestria por advogados e juristas, mas que está longe de ser compreendida pela sociedade em geral.

Apesar de algum avanço nas últimas décadas, a linguagem jurídica ainda é recheada de palavras ou expressões desconhecidas da maioria das pessoas. As universidades estimulam no curso de direito a linguagem rebuscada, e esse juridiquês segue presente na atuação diária não somente de juízes, mas de advogados públicos e privados, além de outros servidores e integrantes do Ministério Público.

A Constituição de 1988 garante a todos os brasileiros o direito à informação – resguardando, por evidente, dados sigilosos. Mas muitas das peças públicas, divulgadas pelos órgãos do Sistema de Justiça, são um entrave à efetivação deste direito fundamental. O cidadão tem acesso ao documento, mas, muitas vezes, a complexidade da escrita dificulta que ele o entenda e exerça seu próprio direito.

Ao contrário do que algumas pessoas acreditam, simplificar a linguagem não significa empobrecer a escrita e nem mesmo estimular a baixa qualificação. Não significa explicar com dancinhas nas redes sociais e nem criar um perfil popular para tradução do juridiquês. Simplificar a linguagem, no caso de uma decisão judicial, significa dizer de modo claro o que está sob análise, qual a argumentação do autor da ação, qual foi a decisão tomada e qual a fundamentação utilizada. E a clareza nas peças pode, inclusive, agilizar a tomada de decisões nos processos e reduzir a quantidade de recursos a serem apresentados.

A adoção de linguagem simples não envolve apenas evitar o uso de palavras difíceis. Considera também o tempo ou espaço utilizados para apresentar os argumentos ou fundamentos. Poucos temas exigem peças jurídicas de 100 ou 150 páginas, por exemplo. Neste ponto, deveria ocorrer – nas palavras do ministro Luís Roberto Barroso – a Revolução da Brevidade, na qual o professor defendia, muito antes de chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF), uma limitação do número de páginas de petições e do tempo de votos. Neste ponto, privilegia-se o princípio da duração razoável dos processos, conforme o inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal.

Há muitos anos, os setores de comunicação do sistema de Justiça se dedicam a tentar traduzir a complexidade dos termos jurídicos. Há, por parte dos profissionais do ramo, um imenso esforço para melhor noticiar as peças jurídicas, conforme seu impacto, e explicitando o pedido, o parecer ou a decisão do modo mais simples possível. Entretanto, nem sempre é fácil convencer o operador do direito a embarcar nessa simplificação. E, por isso, muitas vezes os profissionais da comunicação apenas reproduzem os termos complexos, deixando de observar o amplo direito constitucional à informação.

Excluindo-se o nome das ações (Recurso Extraordinário, Mandado de Segurança etc.), quase todos os termos podem ser substituídos por outros mais simples com a finalidade de ajudar as pessoas a compreenderem o que está escrito. Mas o uso do português rebuscado também tem sido, há muitos e muitos anos, um instrumento de poder no mundo jurídico – o que afasta o Judiciário das pessoas e cria uma barreira entre o direito e o cidadão.

Para trazer a magistratura para esta reflexão a respeito da compreensão das decisões, o presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ministro Luís Roberto Barroso, lançou o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples.

A iniciativa também contemplará  um selo de boas práticas de uso de linguagem simples em todo o Poder Judiciário. Importante ressaltar que projetos relevantes neste tema já existem há anos. O que se pretende agora é levar os servidores de todos os tribunais brasileiros a atuarem na língua falada e na escrita mediante a substituição do juridiquês pela linguagem simples. E não só isso, também pretende-se facilitar as comunicações processuais e até mesmo os roteiros de eventos.

No âmbito do STF, uma iniciativa importante já começou a ser implantada, com o envolvimento direto dos assessores jurídicos da Presidência e do próprio ministro Barroso. Em todos os julgamentos colegiados de plenário e naqueles com grande impacto do Plenário Virtual, são elaborados resumos chamados “Informação à Sociedade”.

O documento traz de modo simples e direto os fatos tratados na ação, as questões jurídicas envolvidas, os fundamentos da decisão e um resumo conciso do resultado do julgamento. Pretende-se assim tornar mais acessível o resultado de uma decisão da Suprema Corte brasileira, por parte do cidadão em geral, da academia e até mesmo por parte dos atores jurídicos.

A linguagem é essencial para a entrega da prestação jurisdicional pois, por meio dela, a sociedade conhece o direito reconhecido – ou rejeitado. No entanto, a escrita ou a fala rebuscada ao extremo, muitas vezes com palavras não relacionadas a termos intrinsecamente jurídicos, mas sim a palavras da Língua Portuguesa que obstaculizam a compreensão, afetam a própria legitimidade do Poder Judiciário. Compreender a fundamentação de uma decisão, mesmo que se discorde, é essencial para que a sociedade respeite a referida decisão judicial.

Apenas com o envolvimento da magistratura e dos operadores do direito e com a mudança da cultura do uso de palavras rebuscadas, a linguagem simples no Poder Judiciário poderá ser uma meta atingível e contribuir efetivamente para aproximar o cidadão de seus direitos.