O Mundo Fora dos Autos

Suprema humilhação no Supremo

Marcha empresarial liderada por Bolsonaro foi um dos atos mais indignos na história do STF

Foto: Marcos Corrêa/PR

Para além dos mecanismos formais de “checks and balances”, a separação de Poderes exige observância de rituais e liturgias que representem a independência entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Os simbolismos de tais cerimônias, mesuras e convenções são essenciais para demonstrar a inexistência de perigosa “intimidade institucional” entre os Poderes, bem como para ostentar o necessário respeito recíproco.

Por exemplo, não convém que presidentes de um dos Poderes visitem os edifícios dos outros dois sem serem convidados. Ou, pior ainda, que “se convidem” para uma visita de última hora e, ainda, apareçam levando acólitos a tiracolo (grosseria que, por sinal, não devemos praticar nem em nossa vida privada). Também recomenda a etiqueta republicana que não se constranja o anfitrião em ocasiões que tais.

Por isso, causou-me choque e espanto o que ocorreu na última quinta-feira no prédio do STF. Não me refiro ao gesto calculadamente teatral, aparatoso e simbólico de uma “marcha” através da Praça dos Três Poderes, capitaneada pelo presidente como se fosse um fulgurante líder sindical do patronato.

Não se podia mesmo esperar bufonaria diversa do espaventado ocupante da presidência, histrião de limitado talento que aprecia desempenhar esse tipo de papel circense desde que tomou posse no cargo. O que me apavorou, como cidadão e professor de Direito, foi observar o grau de subserviência a que o presidente Dias Toffoli submeteu nossa Excelsa Corte, corolário da perda de dignidade institucional do STF sob sua gestão. Como argutamente observou a colunista do Estadão Adriana Fernandes, “em vez de cabo e soldado, Bolsonaro levou empresários para constranger o STF”.

Por que Dias Toffoli não agiu como fazemos com as visitas indesejáveis e extemporâneas, mandando um de seus ordenanças dizer ao vizinho intrometido que não estava? Ou, melhor ainda, por que não recomendou que o fossem procurar na esquina (embora Brasília não as tenha)? Mas não, permitiu que Bolsonaro adentrasse ao prédio como se fosse “de casa”, acolheu-o e a seus ministros e convidados num lindo salão, ofereceu-lhes cadeiras e café, e ainda permitiu que o presidente discursasse como se estivesse em um palanque eleitoral, criticando indiretamente o próprio anfitrião! Até o Ministro da Economia fez pronunciamento como se sentisse em um púlpito no Palácio do Planalto.

Não bastasse o deprimente quadro que se desenhava com a visita extravagante, Dias Toffoli ainda fez as vezes de mestre de cerimônias daquele teatro do absurdo, atuando como um figurante de novela, “introduzindo” o pronunciamento do presidente, representando assim um papel subalterno em sua própria casa, em ato claramente calculado por Bolsonaro para por o Tribunal sob a pressão dos seus interesses políticos e dos interesses econômicos dos chefes de guilda ali presentes. Mas o pior ainda estava por vir.

Na sua apresentação sumária, Toffoli se referiu aos empresários ali presentes como “os senhores que representam o setor produtivo do Brasil”. Como é? O setor produtivo é representado apenas por empresários? Trabalhadores não representam o setor produtivo? É possível produzir um prego ou uma alface (e fazê-los chegar aos consumidores) sem trabalhadores? Onde, estavam, pois, os líderes sindicais obreiros na malsinada e improvisada reunião? Por que não foram convidados para o cafezinho? Que Bolsonaro os despreze, já o sabemos, pois decidiu desde a primeira hora extinguir o Ministério do Trabalho, desmantelar os sindicatos e desnaturar a legislação trabalhista.

Mas da Justiça Suprema, na representação da Themis, deveria vir ao menos uma neutra aparência de equilíbrio, entre capital e trabalho. E não esqueçamos, a esse propósito, que o mesmo Toffoli, há coisa de semanas, em visita ao estado de São Paulo, ofereceu o número de seu celular a qualquer líder empresarial que precisasse com ele falar, em “linha direta”. Não sei se, também, passou o seu Whatsapp para o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC ou para a Federação dos Bancários de São Paulo. Imagino que não.

No fim das contas, essa aliança informal com os barões da indústria não é de admirar àqueles que acompanham a jurisprudência mais recente da Corte em matéria trabalhista. O STF, de uns tempos pra cá, virou um verdadeiro “tribunal empresarial” que, em quase todos os processos de interesse da classe trabalhadora, decide em favor do patronato, em alguns casos violentando claramente a letra da Constituição, como na ADI sobre a MP que dispensou a negociação coletiva para redução salarial.

Aliás, se o tema da reunião, supostamente, era a “volta à normalidade” ou a reabertura gradual da economia, quem é que mais vai sofrer com uma decisão precipitada que não observe corretamente os protocolos de saúde? Quem é que vai ficar apinhado feito sardinha enlatada nos transportes públicos? Quem é que vai ficar confinado em aglomerados de galpões, fábricas, frigoríficos e lojas de shopping center, sujeito aos eflúvios virais assassinos?

Não custa lembrar, tampouco, que as obséquias de Toffoli ao repentino capricho do presidente se dão na semana seguinte àquela em que Bolsonaro prestigiou, com sua presença fantasmagórica, manifestação que pedia o fechamento do STF e, depois, atacou despudoradamente a honra do Ministro Alexandre de Morares. É difícil entender tamanha falta de tirocínio do presidente da Corte Constitucional. No mínimo, haveria de ter consultado antes os seus pares, que certamente desaconselhariam semelhante lambança.

A marcha populista e espalhafatosa do presidente sobre o STF é ainda tanto mais grave quando se considera que ela representa, figurativamente, um ato de insubordinação à decisão unânime daquela Corte, no processo em que se declarou a competência dos governadores e prefeitos para decretar medidas de isolamento social.

Bolsonaro, com seu boneco de ventríloquo Paulo Guedes, estava encenando um espetáculo burlesco para sugerir que eventuais dificuldades econômicas não serão de sua responsabilidade, mas sim do anfitrião que os recebia. Francamente, foi a maior indignidade que se cometeu contra nossa mais alta Corte desde aquela noite de 19 de janeiro de 1969, durante a fase mais sombria da ditadura, quando o General Costa e Silva exonerou os Ministros Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva.

Podemos até compreender que o então presidente do STF, em um regime de força, não tenha tido meios para confrontar o ditador-presidente. Mas agora, sob democracia plena, Dias Toffoli poderia e deveria fazê-lo em relação a um presidente eleito. Não o quis, por não ser inclinado ao desassombro que o relevante cargo impõe.

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Os Estados Unidos estão enfrentando o mesmo debate sobre o momento adequado para “reabir” a economia. Como aqui, a decisão sobre fechar o comércio está a cargo dos governadores e os decretos de “lockdown” variam de estado a estado, uns mais, outros menos rigorosos. E, igualmente, há reclamações da classe empresarial.

Um dia antes da reunião em que o presidente do STF atendeu Bolsonaro e o empresariado nacional sem hora marcada, a Suprema Corte dos EUA recebeu um recurso com pedido de liminar (“stay order”), formulado por um grupo de empresários de Pennsylvania insatisfeitos com a decisão do governador daquele legendário estado, que está aplicando um decreto bem rigoroso de fechamento do comércio.

O caso foi distribuído ao juiz Samuel Alito, o mais conservador dos conservadores daquela egrégia Corte. Ele, sem pestanejar, indeferiu prontamente o pedido. O Presidente Trump, que está pressionando pela reabertura precipitada da economia tal como Bolsonaro, certamente não terá a petulância de reunir esses empresários e atravessar o National Mall para subir as escadarias de mármore da Suprema Corte, acompanhado da imprensa. Se, em hipótese absurda, tomasse essa decisão, certamente não seria recebido pelo presidente daquela casa, o também conservador John Roberts, que, mesmo tendo sido indicado por um presidente republicano, pura e simplesmente o deixaria esperando na recepção ou mesmo lhe bateria a porta na cara.