Concessões rodoviárias federais

As concessões federais de infraestrutura de transportes terrestres

Análise dos desafios relacionados aos efeitos da pandemia de Covid-19

rodovias, Eletropaulo e Ecovias disputam no STF cobrança pelo uso de área de rodovias para postes e linhas de distribuição
Rodovia dos Imigrantes. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Neste segundo artigo relacionado aos setores regulados pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que integra a série de ensaios a respeito das repercussões e possíveis soluções regulatórias para o enfrentamento dos problemas decorrentes da pandemia do novo coronavírus no âmbito dos contratos de infraestrutura de transportes, trataremos das concessões federais de infraestrutura rodoviária.

Em grande medida, o equilíbrio econômico-financeiro nos contratos federais de concessão de exploração da infraestrutura rodoviária é equacionado pela receita decorrente do pagamento de tarifas pelos usuários, em contrapartida às obrigações contratuais de investimento e custeio do sistema rodoviário.

Os diversos custos associados ao adimplemento das obrigações de investimento dos contratos de concessão estão fundados em variáveis econômicas que oscilaram nos últimos meses, para mais ou para menos, face ao cenário de incerteza. Além disso, a queda da demanda pode ter representado redução de custos de manutenção e conservação da rodovia, ainda que em dimensão inferior à queda de receita correspondente.

Os efeitos extraordinários da pandemia podem, assim, ter impactado o equilíbrio contratual sob as óticas de receitas e despesas, a depender do perfil de usuário predominante na rodovia e do estágio da execução contratual, o que demanda uma análise individualizada sobre cada concessão, quer sob o prisma da modelagem contratual, quer sob o prisma da regulação da ANTT.

Ante o cenário de queda de tráfego, oscilação de preços de insumos e redução dos custos com manutenção, a análise quanto à ocorrência de desequilíbrio contratual por força da crise sanitária é uma tarefa desafiadora e nos parece não existir solução adequada única, a indicar que, em diversos casos, eventual recomposição do equilíbrio contratual poderá exigir a concorrência de medidas complementares.

Conforme se verá, de todas as medidas possíveis para a recomposição decorrem vantagens e desvantagens que orientarão a tomada de decisão, à luz dos riscos jurídicos que lhes são inerentes.

Os contratos deste segmento são divididos por etapas e fases do Programa de Concessões de Rodovias Federais (Procrofe)[1], os quais apresentam modelagem contratual distinta.

Na 1ª etapa (1994 a 1998), a alocação de riscos se espelhou na sistemática dos contratos de empreitada (Lei nº 8.666/1993), atribuindo ao concessionário a integral responsabilidade por todos os riscos inerentes à concessão.

As situações de caso fortuito e força maior são tratadas como excludente de responsabilidade da concessionária, desde que não seguráveis, e podem, em caso de acordo entre as partes, ser objeto de reequilíbrio[2]. Não há cláusula disciplinando os meios e a forma de cálculo do reequilíbrio.

Na 2ª etapa – fase I (2007), não houve alterações significativas na alocação de riscos, contudo, observa-se evolução na modelagem quanto (i) à previsão de que o equilíbrio do contrato é definido pelo fluxo de caixa descontado, assegurada à concessionária a taxa interna de retorno não alavancada pactuada quando da assinatura do contrato e (ii) à disciplina das espécies de revisões, estabelecendo que os impactos do reequilíbrio decorrentes de eventos classificados como força maior ou caso fortuito, que comprovadamente alterem os encargos da concessionária, seriam objeto de revisão extraordinária da tarifa[3].

Na 2ª etapa – fase II (2009), a alocação de riscos foi elaborada de maneira mais detalhada, aproximando-se das melhores práticas internacionais[4]. Foram, nesse sentido, expressamente alocados ao poder concedente os riscos relacionados a caso fortuito ou força maior que não possam ser objeto de seguro no Brasil na época de sua ocorrência.

O contrato estabelece três meios de recomposição do equilíbrio: (i) aumento ou redução do valor da Tarifa Básica de Pedágio, (ii) pagamento à concessionária pela União e (iii) modificação de obrigações contratuais da concessionária.

Nas 3ª e 4ª etapas (2013 em diante), a matriz de riscos é bastante semelhante à sistemática inaugurada na 2ª etapa – fase II. A forma de reequilíbrio por riscos atribuídos ao poder concedente tem por base o fluxo de caixa marginal e, em relação aos meios de recomposição do equilíbrio, foi acrescida a possibilidade de estabelecimento ou remoção de cabines de bloqueio e alteração da localização de praças de pedágios.

Com efeito, de modo geral, para os contratos de concessão de todas as etapas do Procrofe, o risco decorrente de caso fortuito ou força maior não foi alocado ao concessionário. Sobre os meios de recomposição, cabe ponderar, no caso de se verificar, de fato, impactos extraordinários sobre o contrato específico:

(i) a elevação da tarifa de pedágio pode representar, à primeira vista, um acréscimo de receita para o concessionário. Por outro lado, a tarifa é variável de sensível impacto social e que afeta a demanda, a depender da disposição do usuário em pagar pelo uso da via. Um aumento elevado da tarifa pode impactar negativamente no volume de tráfego e violar a modicidade tarifária. Ademais, o acréscimo tarifário pode ensejar um efeito em cascata nos preços de bens e serviços que dependem do transporte de cargas;

(ii) o pagamento direto pelo Tesouro Nacional encontra as mesmas dificuldades já apontadas quando da análise das concessões ferroviárias, não nos parecendo solução faticamente viável face à crise fiscal ora vivenciada;

(iii) a modificação das obrigações contratuais, por seu turno, é medida complexa dada a sensibilidade do tema face à percepção dos órgãos de controle quanto à observância do princípio da vinculação ao instrumento convocatório[5];

(iv) o estabelecimento de eventuais cabines de bloqueio e a alteração da localização de praças de pedágio é medida juridicamente possível, todavia, exige uma análise estritamente técnica quanto aos seus impactos e a suficiência em relação à recomposição do equilíbrio; e

(v) a prorrogação do prazo contratual, prevista em alguns contratos[6], mostra-se também possível e confere maior valor presente à concessão, à medida que dá direito ao concessionário de explorar o empreendimento e auferir receitas por mais tempo. Nada obstante, não representa impacto atual e efetivo no fluxo de caixa a aliviar uma crise financeira presente[7].

No tocante à problemática acerca da vinculação ao instrumento convocatório, observada em determinados casos de recomposição, sobretudo, quando as formas de reequilíbrio não se encontram descritas originalmente, verifica-se uma tendência dos órgãos de controle de se amparar em princípios, em desconformidade ao disposto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, para afastar a decisão regulatória fundada em critérios técnicos especializados e submetida a procedimento de participação e controle social. Confere-se a tais princípios conteúdo estático e imutável, em descompasso com a alta densidade axiológica que lhes são inerentes[8].

O conteúdo jurídico do princípio da vinculação ao instrumento convocatório em contratos de empreitada não pode ser idêntico nos contratos de concessão, cujo racional se encontra em ser uma parceria de longo prazo, para o desenvolvimento e/ou gestão de bem ou serviço público, em que o agente privado arca com risco significativo e a responsabilidade pela gestão ao longo da vida do contrato, a partir de uma remuneração vinculada ao desempenho e/ou à demanda ou uso do bem ou serviço[9].

Ponderando a dinâmica do sistema rodoviário com a questão que envolve a vinculação ao instrumento convocatório, a ANTT editou a Resolução nº 3.651/2011, que trata da metodologia e das formas de recomposição de reequilíbrio relacionados à inclusão de novos investimentos e serviços não previstos no Programa de Exploração da Rodovia (PER), bem como a Resolução nº 5.859/2019, a qual, ao disciplinar a inclusão, exclusão, alteração e reprogramação de obras e serviços previstos no PER, impõe que tais modificações se deem no âmbito das revisões quinquenais e que se adote a metodologia multicritérios de qualificação das concessionárias e de hierarquização dos investimentos desejáveis.

Assim, embora a alteração do PER possa, em tese, mostrar-se uma solução possível e adequada, faz-se necessária que esteja atrelada a necessidades apontadas por usuários, concessionária e corpo técnico da ANTT, nos termos da referida Resolução. Além disso, há o inconveniente de ter que se aguardar a revisão quinquenal.

Ainda sob a perspectiva de que a legislação em vigor confere competência às agências reguladoras para, no exercício do poder normativo técnico-discricionário, promover ajustes regulatórios infralegais suficientes para o enfrentamento da matéria, cabe destacar a Resolução ANTT nº 675/2004, com a redação dada pela Resolução ANTT nº 5.859/2019, a qual estabelece que, nas revisões extraordinárias, serão consideradas as repercussões decorrentes dos eventos de força maior e que (i) resultem, comprovadamente, em alteração dos encargos da concessionária; ou (ii) comprometam ou possam comprometer a solvência da concessionária e/ou continuidade da execução/prestação dos serviços previstos no respectivo contrato.

Nesse contexto, é recomendável que a avaliação de eventual desequilíbrio contratual seja pautada (i) pela construção de um cenário contrafactual hipotético que simule um contexto em que a pandemia não tenha ocorrido e (ii) pelo isolamento dos efeitos extraordinários decorrentes da pandemia em relação às demais causas de oscilação de demanda e dos custos de insumos, em observância à Resolução ANTT nº 675/2004, por serem estes riscos ordinariamente de responsabilidade do concessionário.

Esses parâmetros se tornam ainda mais importantes em contratos cujas disposições não estavam sendo atendidas ou cujas concessionárias demonstraram incapacidade de adimplir as obrigações contratuais ou financeiras assumidas originalmente.

Para tais contratos, outro mecanismo foi trazido como solução à crise contratual pela Lei n° 13.448/2017. A denominada relicitação, compreendida como um mecanismo de “devolução” amigável do contrato de parceria, tem por objetivo maior assegurar a continuidade da prestação dos serviços enquanto não se ultima a celebração de novo ajuste negocial para o empreendimento, em novas condições contratuais e com novos contratados, mediante licitação promovida para esse fim.

A relicitação é uma forma de extinção contratual, certamente menos traumática do que a caducidade para ambas as partes. Embora decorra de acordo entre as partes, sua instauração deve se pautar pelo crivo de razoabilidade frente aos aspectos operacionais e econômico-financeiros envolvidos e aos demais mecanismos existentes, sob pena de se banalizar o instituto, que, no limite, configura-se como uma ruptura de um contrato de longo prazo, com todas as características e repercussões a ele inerentes.

Observa-se, portanto, que o arcabouço legal, regulatório e contratual vigentes já contemplam possibilidades de equacionamento de eventuais desequilíbrios pela ANTT, ainda que para tanto imponham elevado grau de complexidade na tomada de decisão, mediante forte ônus argumentativo sobre o regulador. A princípio, não se faz necessária qualquer reforma legislativa ou alteração contratual.

A Deliberação ANTT nº 306/2020 é elucidativa sobre essa suficiência, ao tempo em que indefere pedido de alteração contratual para inclusão da pandemia de Covid-19 como risco alocado ao poder concedente no contrato da BR-101/SC, recentemente leiloada, e declara sua configuração como força maior.

Ainda, reconhece que, na data de entrega das propostas para a licitação regida pelo Edital de Concessão nº 2/2019, os eventuais efeitos extraordinários decorrentes da pandemia eram imprevisíveis, resguardando a apuração de eventual desequilíbrio para as revisões contratuais.

Importante ainda destacar outra medida regulatória editada pela ANTT para enfrentar a pandemia: a Resolução nº 5.892/2020, que posterga a cobrança de verbas de fiscalização das concessionárias federais de infraestrutura rodoviária referentes às competências de maio, junho e julho de 2020.

Esta medida transitória visou resguardar a saúde econômico-financeira das concessões, por meio de “alívio” no fluxo de caixa presente das concessionárias. Embora não represente propriamente um mecanismo de recomposição do equilíbrio contratual, digno de nota que tal medida não contemplou um acréscimo de taxa de desconto temporal sobre os meses em que o dever de pagamento restou diferido.

A complexidade e a dinamicidade do quadro social e a dificuldade na apuração de dados em tempo real indicam que, caso seja necessário, a total recomposição do equilíbrio dos contratos ocorrerá a posteriori, quando os efeitos da pandemia já tiverem cessado e for possível ter clareza quanto à sua magnitude.

Ressalte-se que eventual reequilíbrio a posteriori não ofende o ordenamento jurídico posto, que exige que a recomposição do equilíbrio ocorra de forma concomitante apenas quando se tratar de alteração unilateral dos contratos (art. 9º, § 4º, Lei nº 8.987/1995), situação distinta do reequilíbrio por força de superveniência de evento atinente a risco alocado ao poder concedente.

De toda sorte, cumpre notar, conforme já dito, que existem mecanismos aptos a subsidiar tomadas de decisão quanto à eventual recomposição do equilíbrio contratual, e, independentemente de discussões mais doutrinárias nesse âmbito, como, por exemplo, quais princípios (se constitucionais ou não) norteiam o tema, o que certamente agrega ao debate, importante ressaltar a necessidade de análise ao contrato específico e, sobretudo, o cumprimento daquele contrato, sem prejuízo de uma disciplina adicional por parte da Agência, no exercício do seu poder normativo regulatório, como delineado acima.


[1] O histórico dessas fases pode ser encontrado na página da ANTT: <http://www.antt.gov.br/rodovias/Concessoes_Rodoviarias/Historico.html>. Acesso em 6 de junho de 2020.

[2] Os contratos federais de concessão da infraestrutura rodoviária encontram-se disponíveis na página da ANTT: <http://www.antt.gov.br/rodovias/Concessoes_Rodoviarias/Index.html#boxInfo>. Acesso em 6 de junho de 2020.

[3] A Resolução ANTT nº 675, de 4 de agosto de 2004, dispõe sobre as revisões ordinárias, extraordinárias e quinquenais do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos federais das concessões rodoviárias.

[4] A respeito das melhores práticas de alocação de riscos, remetemos ao primeiro artigo desta série, disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/equilibrio-de-contratos-de-concessao-federal-de-infraestrutura-de-transportes-02062020>.

[5] Sobre esse assunto, relembramos que já houve uma mal fadada tentativa de fazê-lo pela via legislativa, quando da edição da Medida Provisória nº 800/2017, não convertida em lei.

[6] Por exemplo, nos contratos da 3ª etapa foi previsto que a recomposição poderá ocorrer mediante prorrogação, desde que atrelada a novos investimentos no PER, a pedido do poder concedente. Nesse sentido, também dispõe o art. 10, II, da Resolução nº 3.651/2011.

[7] Além disso, para alguns contratos de concessão em que a prorrogação não foi expressamente prevista, o Tribunal de Contas da União já externou preocupações quanto à economicidade e legitimidade da extensão do prazo contratual, face a vantajosidade em se realizar nova licitação para incrementar os investimentos contratados e acrescentar inovações contratuais previstas nos contratos da 4ª Etapa do Procrofe. Vide TC 031.985/2016-5.

[8] Nesse sentido, DUTRA, Pedro e REIS, Thiago. O soberano da regulação. O TCU e a Infraestrutura. São Paulo: Editora Singular, 2020, p. 108-109. Ainda sobre o papel do TCU, recomenda-se também a leitura da tese de doutorado de André Janjácomo Rosilho, denominada “Controle da Administração Pública pelo Tribunal de Contas da União”, e da dissertação de mestrado de Gustavo Leonardo Maia Pereira “O TCU e o controle das agências reguladoras de infraestrutura: controlador ou regulador?”.

[9] Ver Certified PPP Professional (CP3P) Guide, p. 18. Disponível em: <https://ppp-certification.com/>. Acesso em 29 de julho de 2020.