
Jornais, noticiários e internet têm sido palco de inúmeras análises acerca dos possíveis impactos no mercado de trabalho da ferramenta chatGPT, que, com base em inteligência artificial, é capaz de responder perguntas complexas com textos elaborados. A curiosidade não é de se estranhar, afinal a história já mostrou, por diversas vezes, o poder transformador que a tecnologia tem sobre as relações profissionais.
Mas, para além do mercado, a tecnologia é capaz de transformar, também, a relação do aparato estatal com a população. Exemplo famoso, e bastante concreto, é o Poupinha, assistente virtual que auxilia os usuários a agendarem seu atendimento no Poupatempo do estado de São Paulo.
Aqui surgem algumas indagações: o que mais a tecnologia pode fazer pelo serviço público? Quais os possíveis caminhos para a administração absorvê-la? Como aproveitar ao máximo suas potencialidades, e evitar eventuais riscos ao serviço público?
Inquietudes como essas é que inspiraram a criação da coluna Função Pública, de autoria do Núcleo de Inovação da Função Pública, da Sociedade Brasileira de Direito Público, em parceria com o JOTA. A coluna buscará contribuir com o debate, sob uma ótica jurídica, a partir da análise de problemas da realidade e das propostas concretas de solução.
Nosso diagnóstico é que o debate em torno da modernização da função pública, em alta nos dias de hoje, carece de estudos jurídicos mais aprofundados. Nossa aposta é que o direito tem sua parcela de contribuição a dar para alcançarmos um serviço público mais democrático, responsivo e eficiente.
Acreditamos em uma função pública plural, no âmbito das pessoas que a exercem, das ideias que a informam e das instituições que a instrumentalizam. E nesse espírito, nada melhor do que abordar, na estreia da coluna, o tema da diversidade no setor público.
A composição do pessoal no serviço público não tem refletido adequadamente a diversidade existente em nossa sociedade, tanto sob o aspecto étnico-racial quanto de gênero. Os exemplos são vários. Embora 56% da população brasileira se considere negra, apenas 35% dos servidores do Executivo federal se declaram pretos ou pardos. Apesar de a maioria dos postos no Executivo e Judiciário federais serem ocupados por mulheres, sua participação cai para cerca de 30% no âmbito dos cargos de liderança.
Para mudar esse cenário, reformas jurídicas recentes têm apostado, sobretudo, na implementação de reservas de vagas em concursos públicos. Contudo, diante da manutenção de percentuais estáveis em relação à diversidade no setor público, é possível que a mera reserva de vagas em concursos não esteja sendo suficiente, por si só, para promover uma inclusão mais efetiva.
Mas o que a tecnologia tem a ver com tudo isso? É que a digitalização do setor público parece já ser importante caminho para a promoção da diversidade no interior da administração. É o que sugerem três exemplos bastante atuais no Brasil.
Teletrabalho e promoção da diversidade no setor público
Um dos obstáculos à diversidade no setor público é a falta de estrutura física adequada para acomodar servidores com necessidades especiais. Estudos mostram, há vários anos, que a administração não tem dado conta de assegurar acessibilidade, por exemplo, a pessoas com mobilidade reduzida.
Para lidar com situações como essa, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2016, editou a Resolução 227, que “regulamenta o teletrabalho no âmbito do Poder Judiciário”. A norma prevê como objetivos do teletrabalho “respeitar a diversidade dos servidores” e “ampliar a possibilidade de trabalho aos servidores com dificuldade de deslocamento”. Nesse sentido, têm preferência para o regime de teletrabalho servidores “com deficiência”, “gestantes e lactantes” e “gozando de licença para acompanhamento de cônjuge”.
O exemplo mostra que a incorporação de tecnologia, no caso materializada no teletrabalho, pode auxiliar no atendimento a necessidades especiais no serviço público. Contudo, a adoção do recurso não está livre de desvirtuamentos. No pós-pandemia, magistrados e servidores têm mostrado resistência à volta do trabalho presencial.
Para lidar com a situação, o CNJ tem apostado no aprimoramento de suas normas sobre teletrabalho. No final de 2022, por exemplo, o órgão editou a Resolução 481, reforçando os objetivos legítimos do teletrabalho (como amparar “pessoas com deficiência, necessidades especiais ou doença grave”, bem como “gestantes e lactantes”), e estabelecendo limites para o seu uso (por exemplo, de que o número de servidores e magistrados em regime de teletrabalho “não poderá exceder 30%”).
Concursos digitais e democratização do acesso à função pública
Estudos apontam que, em concursos públicos, a faixa de renda pessoal e familiar dos candidatos é um dos elementos com maior influência em seu desempenho.
A explicação é simples: concursos públicos, em especial os mais concorridos, demandam diversas despesas, como cursos preparatórios, material didático, custeio de moradia e alimentação etc. A falta de recursos e de acesso a tais bens dificulta – ou mesmo inviabiliza – o ingresso no serviço público por pessoas de baixa renda.
Nesse cenário, parece que mecanismo apto a promover a diversidade no setor público é a adoção de medidas que diminuam a barreira socioeconômica existente nos concursos – isto é, medidas que tornem os processos seletivos mais acessíveis, do ponto de vista financeiro, para candidatos de baixa renda.
Esse é um dos objetivos do PL 2258/2022, que estabelece regras gerais para concursos públicos de todo o país. A proposta, que já foi aprovada na Câmara, e está em discussão no Senado, busca disciplinar o uso pela administração de concursos públicos digitais.
O projeto prevê que “o concurso poderá ser realizado total ou parcialmente à distância, de forma online ou por plataforma eletrônica com acesso individual seguro e em ambiente controlado, desde que garantida a igualdade de acesso às ferramentas e dispositivos do ambiente virtual”.
Concursos por meios digitais têm o potencial de democratizar o acesso dos candidatos aos concursos, mitigando tradicionais barreiras socioeconômicas relativas a custos com deslocamento, hospedagem, alimentação etc., favorecendo disputas mais efetivas e com maior diversidade.
Cuidados, contudo, são necessários – sobretudo quanto à segurança digital. A adoção de tecnologia nos concursos públicos não pode dar ensejo ao cometimento de fraudes. Nesse sentido, a proposta prevê que o uso dos concursos digitais “depende de regulamentação”, que deverá observar os “padrões de segurança da informação previstos em lei”.
Canais de denúncia eletrônicos e combate ao assédio no serviço público
O governo anterior foi palco de diversos episódios envolvendo denúncias de assédio dentro do serviço público. Em caso recente, vieram a público denúncias de assédio sexual e moral formuladas por servidoras da Caixa Econômica Federal contra o então presidente do banco. As denúncias, ao que tudo indica, não receberam encaminhamento pelo sistema de controle interno da Caixa.
Esse cenário mostra a necessidade de aprimoramento dos mecanismos de combate ao assédio e discriminação no interior da máquina pública. Como fazê-lo?
A Controladoria-Geral da União (CGU), que tem como uma de suas atribuições “formular, coordenar e fomentar a implementação de planos, programas e projetos voltados à atividade de ouvidoria”, lançou, em 2019, a Fala.BR, uma “plataforma integrada de ouvidoria e acesso à informação”. Em seu Guia Lilás, a CGU orienta que denúncias de assédio e discriminação sejam realizadas preferencialmente por meio da Fala.BR, por meio da opção “denúncia”, direcionando-a ao órgão onde ocorreu o fato ou ainda diretamente à CGU.
A medida, valendo dos recursos digitais, parece ter o potencial de tornar denúncias mais efetivas, por diversos motivos: preservação da identidade da pessoa que denuncia; maior controle e centralização dos processos de denúncia; possibilidade de recorrer a instâncias externas àquela em que o abuso foi cometido etc.
Contudo, algumas deficiências do sistema têm sido apontadas. Apesar do esforço de modernização, servidores públicos federais ainda não contariam, por exemplo, com canal centralizado e específico para denúncias de assédio moral e sexual no trabalho. Há espaço, assim, para aprimoramento do sistema, inclusive por meio da edição de normas específicas para situações de assédio e discriminação dentro do setor público.
Os exemplos do teletrabalho, concursos digitais e canais de denúncia eletrônicos mostram que a tecnologia pode abrir caminho para a promoção da diversidade e respeito no setor público. Cabe ao direito contribuir para que modernizações como essas ocorram de maneira adequada, segura e eficiente. É o que a coluna Função Pública buscará fazer em cada um de seus artigos.