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Anatel: tradição, experiência e desafios após 25 anos de existência

A importância do PL 2768/2022 para a regulamentação das plataformas digitais

Anatel
Sede da Agência Nacional de Telecomunicações. Crédito: Sinclair Maia/Anatel

Neste breve artigo, pretendemos destacar a importância do PL 2768/2022, em trâmite no Congresso Nacional, o qual se reveste de caráter fundamental para a regulamentação das plataformas digitais. Antes, porém, é preciso expor ao leitor o cenário de surgimento da Anatel, o que evidenciará sua importância, suas contribuições social e econômica, bem assim sua importância no atual e desafiador cenário de comunicações digitais.

A Agência Nacional de Telecomunicações foi criada, em meados dos anos 1990, nas gestões dos ministros das Comunicações Sérgio Motta (in memoriam) e Luiz Carlos Mendonça de Barros, com uma missão principal: democratizar o acesso ao serviço de telefonia no país.

Naquela época, o cenário institucional brasileiro nos serviços de telecomunicações era bem diferente do atual. A telefonia fixa – um monopólio estatal – era cara e elitizada. Linhas de telefone eram consideradas bens móveis, e, como tais, eram comumente alugadas e até oferecidas como presentes de casamento. O interior do país era interligado, em geral, pelos chamados “orelhões” – uma parte considerável deles ainda plenamente funcionais.

A telefonia móvel era, então, relativamente nova em todo o mundo (existia há cerca de dez anos nos países desenvolvidos). No Brasil, encontrava-se em estado muito inicial. Algo semelhante pode ser dito em relação à internet, restrita, em seus primórdios, ao meio acadêmico. Tablets, smartphones, internet das coisas, big data, tudo isso estava muito além do imaginário da época. Foi precisamente naquele tempo embrionário de tecnologias disruptivas dos meios de comunicação que se concebeu institucionalmente a Anatel, cuja relevância e reputação são hoje reconhecidas.

Depois de um quarto de século, temos hoje um cenário muito diferente. O acesso à telefonia e à internet de alta velocidade se ampliou de forma exponencial, havendo hoje mais smartphones que usuários no Brasil. Contudo, nesse meio-tempo, outros desafios significativos surgiram: a segurança de aparelhos de comunicação tornou-se uma preocupação (incluindo os celulares); há grande litigiosidade entre consumidores (usuários) e prestadoras de serviços regulados pela Anatel; a universalização da internet passou a ser condição necessária para o pleno exercício da cidadania e para uma quantidade significativa de transações voluntárias entre indivíduos e organizações (públicas ou privadas).

Mais recentemente, o tratamento dos dados dos usuários pelas diversas fornecedoras de serviços digitais passou a ser um tema prioritário na agenda das diversas instituições e agências relacionadas aos serviços de telecomunicações ao redor do mundo.

Com isso, novas instituições (algumas incipientes naquele período, outras nem sequer existentes) também foram ganhando protagonismo, como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a Secretaria Nacional do Consumidor e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

Os desafios não são poucos. Em 2020, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) listou vários objetivos que perpassam o setor de telecomunicações (estruturas de mercado, regulação, relação entre prestadores e consumidores/titulares de dados pessoas etc.).

Dentre eles, destacam-se: i) necessidade de melhoria da qualidade regulatória, especialmente no que diz respeito à convergência de atuação dos diversos entes da federação, não raramente antinômicas (particularmente no âmbito dos entes de proteção de consumidor); ii) promoção de políticas de fomento à pesquisa e à inovação no âmbito da tecnologia da inovação; e iii) promoção de políticas voltadas à sedimentação da internet das coisas, em especial no que diz respeito à agricultura de precisão, ante a vocação natural do país para a produção de soft commodities, e à cibermedicina, que pode ampliar significativamente o acesso aos serviços de saúde em áreas remotas. Nesse particular, a OCDE reafirmou essas preocupações – acrescentando outras – em publicação do ano passado (OECD Handbook on Competition Policy in the Digital Age).

Tudo isso tem recebido atenção dos Poderes da República e de inúmeros parlamentares compromissados com as demandas do setor. No Congresso Nacional, tramita, por exemplo, o PL 2768/2022, de autoria do deputado federal João Maia (PL-RN), o qual é essencial para a operacionalização de tais recomendações. Com tal projeto, visa-se a estabelecer um marco para a regulamentação das plataformas digitais, com centralidade decisória na Anatel para a normatização do setor, consideradas e respeitadas as competências do Cade no que diz respeito a suas atribuições.

Os desafios no setor das plataformas digitais vão muito além daquelas acima citadas e envolvem não apenas as relações business to consumer (B2C), mas, também, as relações business to business (B2B), nas quais, com a intensificação da internet das coisas, suas aplicações se tornam cada vez mais intensivas nos mais diversos níveis da cadeia de produção em diferentes segmentos do mercado, o que será objeto de outras reflexões a serem publicadas.

Ainda que minoritários, há os que consideram que a Anatel não seria a instituição mais adequada para o enfrentamento dos referidos desafios. Cumpre avaliar, contudo, que a agência tem enfrentado, com expressivo e reconhecido sucesso, outros desafios que não eram sequer imaginados quando de sua criação. Isso se deve à formação de um quadro bem especializado e, hoje, extremamente experiente nas diversas projeções que demandam atenção no âmbito da regulação dos serviços de telecomunicações e de tráfego de dados.

Essa verticalização de conhecimento, aliada à centralidade decisória da instituição (sem prejuízo das soluções efetivas e minimamente consensuais e do processo dialógico com outras instituições, com a sociedade e com os agentes do mercado – fornecedores e consumidores), coloca a Anatel em posição especial relativamente a outras instituições que tenham quadro qualificado mas não especializado nos serviços digitais.

Ou, ainda, que tenham centralidade decisória mas careçam de tradição e de experiência nesse mister; ou, mais ainda, que sejam marcadas por uma fragmentariedade decisória, que tende a ser um fator gerador de insegurança jurídica, quando, nos foros qualificados de discussão internacional, a convergência regulatória – importante fator para a diminuição de custos de transação – revela-se condição necessária para que o Brasil ofereça um ambiente mais amigável ao empreendedorismo e à inovação e, assim, atraia mais ofertantes para os serviços digitais que a cadeia produtiva venha a demandar.

São essas transações entre produtores e adquirentes de bens e serviços em geral (e, para os fins do presente artigo, de serviços digitais) que gerarão riqueza social e crescimento econômico para o país.

De qualquer modo, é importante destacar que a operacionalização do enfrentamento aos referidos desafios não é algo trivial. Os mercados digitais transpõem fronteiras (ou, numa linguagem mais acadêmica, superam os limites das soberanias, dentro de uma dinâmica “pós-Westfaliana”) e precisam ser institucionalmente abordados com mecanismos que superem a compreensão das matrizes econômicas e jurídicas do século 20 (ilustradas pelas “lojas de tijolo” com alcance local/restrito).

Tais mercados possuem uma dinâmica própria que deve ser internalizada pelas instituições do Estado, de modo a preservar ideias caras à economia de mercado, como a inovação e a competitividade, com a devida proteção dos direitos e interesses dos usuários (sejam eles consumidores ou não).

Tendo em vista algumas observações constantes da exposição de motivos do PL 2768/2022 – que apenas seguem os tópicos de atenção elaborados pela OCDE –, é necessário haver um corpo técnico especializado que compreenda as plataformas digitais não apenas como um ambiente de trocas (composto por vendedores, anunciantes, consumidores etc.), mas, a depender de seu nível de dominância, como gatekeepers de um ambiente marcado por vários níveis de interdependência entre diversos stakeholders (ponto, aliás, que é objeto de preocupação no recente Digital Markets Act da Comissão Europeia).

Como consequência disso, vários pontos interdependentes precisam ser monitorados de perto: é preciso compreender, a partir de dados, a dinâmica do mercado do lado tanto da demanda como da oferta, levando em consideração especialmente sua contestabilidade – na prática, uma métrica de sua competitividade.

Isto é, é preciso ter informações sobre a presença de possíveis distorções na competitividade, que podem decorrer, dentre outros fatores, de subsídios cruzados, de eventuais políticas de “preço-zero” e de custos elevados de entrada e de saída – que, não raro, envolvem práticas comerciais obscuras, ou dark commercial patterns. Isso, por sua vez, tem o fim de identificar, na prática, o custo de oportunidade entre as eficiências ocasionadas pelas externalidades de rede decorrentes da dominância dessa ou daquela plataforma e o exercício do poder de mercado (ou melhor, de seu eventual abuso), bem como os remédios cabíveis e as medidas mitigadoras de fatores que possam restringir a competitividade em mercados digitais – como, por exemplo, mecanismos de interoperabilidade entre plataformas e aplicações).

Tudo isso deve se dar de forma responsiva e tempestiva, sempre em articulação com o Cade, a ANPD e o Comitê Gestor da Internet no Brasil, uma vez que ecossistemas digitais são extremamente dinâmicos e soluções institucionais empregadas no passado podem se tornar obsoletas num piscar de olhos.

Se alguma instituição, no Brasil, reúne eficientemente os recursos humanos e materiais, bem como a experiência necessária para lidar com os desafios que os mercados digitais impõem à sociedade brasileira (que envolvem atividades desde a agricultura de precisão, passando pela cibermedicina e a própria viabilização da internet das coisas), ela é a Anatel.

Portanto, certos de que essa proposição legislativa acerta em atribuir à Anatel a competência regulatória de seu objeto, estamos prontos para que ele ganhe momento e seja abraçado pelos representantes constituídos do povo brasileiro.