
O Projeto de Lei 2630/2020 (PL das Fake News) procura instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, no objetivo de assegurar “mecanismos de transparência” para provedores de redes sociais, ferramentas de busca e serviços de mensageria instantânea baseados na internet. Esse PL das Fake News pode implementar, por via transversa, mecanismos fortes de regulação concorrencial das plataformas no país. Neste artigo, apontamos como isso acontece e quais os respectivos problemas.
Antes, vale o contexto: as plataformas são o modelo de negócio da economia digital por excelência. O protagonismo de agentes como Meta (Facebook), Google, Apple e afins não tem precedentes, a tal ponto que a sua intensa disseminação já produziu as designações de “economia de plataformas”[1] ou “capitalismo de plataformas”[2], que procuram identificar o contexto no qual a preponderância dos intermediários digitais das relações econômicas e sociais acaba conformando as interações entre pessoas no ambiente digital.
Não à toa, já se reconhece que as plataformas digitais[3] são os agentes mais influentes da era digital, pois passaram a ser o ambiente preferencial de uma parcela considerável das interações humanas, nos mais diversos âmbitos, e, com isso, tornaram-se locus relevante, quase fundamental em certos círculos, para o exercício de liberdades e direitos individuais – locus este, contudo, desenhado pelas regras dessas próprias plataformas.[4]
Essa grande influência, associada a outras características próprias da economia digital[5] têm suscitado novos desafios, que impulsionam movimentos favoráveis à regulação estatal direta, a partir de variados enfoques, como a proteção de dados pessoais, os direitos dos trabalhadores, o processo eleitoral, a responsabilidade civil.
O Direito da Concorrência, em especial, também vem tentando lidar com os desafios oriundos dessa conjunção de fatores, como já se está cansado de saber[6], inclusive se encaminhando o consenso pela necessidade de uma atuação estatal mais ativa nesse campo. Exemplo pioneiro de regulação concorrencial das plataformas digitais parece se apresentar no âmbito da União Europeia, com a promulgação do Digital Markets Act (DMA)[7], cuja proposta central foi a de tornar o setor digital “mais justo e aberto”[8] com o estabelecimento prévio de regras mais duras para aqueles agentes qualificados como “guardiões” (gatekeepers)[9].
No Brasil, a discussão sobre a regulação das plataformas digitais também se encontra em alta, embora não se vejam ainda iniciativas concretas. Em uma dinâmica particular ao contexto brasileiro, nota-se que tais passos em direção à regulação das plataformas têm sido incentivados mais notadamente pelo Poder Judiciário do que pelo próprio Poder Legislativo ou Executivo. A atuação vigorosa do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no combate às fake news afetou diretamente o projeto de lei sobre o tema, que seria, neste momento, a proposta legislativa mais próxima de uma regulação das plataformas em âmbito nacional[10].
O PL das Fake News apresenta-se como efetiva regulação prévia das plataformas digitais, portanto, em aspectos relacionados à moderação de conteúdos pagos (“impulsionados”) ou automatizados no ambiente virtual e à responsabilidade das plataformas para permitir a livre circulação de ideias e impedir práticas fraudulentas. Embora não cuide propriamente de questões concorrenciais, a regulação proposta pelo PL das Fake News indiretamente afeta a dinâmica concorrencial, promovendo uma inegável uniformização de políticas comerciais e modelos de negócios das plataformas em relação à disponibilização e impulsionamento de conteúdos virtuais. Algumas dessas interferências sobre o ambiente concorrencial revestem o PL das Fake News com contornos de regulação concorrencial, ainda que em aspectos limitados.
Observa-se, no texto do substitutivo da Câmara dos Deputados da proposta legislativa[11], a inclusão dos princípios previstos da legislação de defesa da concorrência como princípios do próprio PL das Fake News. O grau de incidência desses princípios – quais sejam, liberdade de iniciativa, de concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico – sobre a interpretação dos dispositivos dessa legislação dependerá do desenvolvimento de sua aplicação concreta pelo Judiciário, certamente, mas a incorporação de tais princípios já significa, por si só, a adoção de uma moldura concorrencial de referência para a sua interpretação. Disso poderá decorrer uma influência mais ou menos direta das questões concorrenciais que se correlacionam ao combate das fake news, de modo que a repressão ao abuso do poder econômico e a livre concorrência poderão ser tomadas como balizas relevantes para a verificação do cumprimento ou descumprimento das obrigações estabelecidas.
A previsão de remuneração por veiculação de conteúdos jornalísticos pelas plataformas, disposta no art. 38 da legislação proposta, envolve tema controvertido e diretamente relacionado com questões concorrenciais em curso, objeto de discussão em outras jurisdições e no próprio Cade. Ainda que a discussão no Cade[12] não se restrinja à questão do pagamento, pelas plataformas, por veiculação de conteúdo jornalístico, envolvendo uma apuração mais ampla sobre as condições de concorrência no setor virtual, essa previsão se adianta em relação à avaliação e às conclusões da autoridade concorrencial e já dispõe sobre um dos possíveis desfechos que a autoridade poderia acatar ou rejeitar.
Com isso, a previsão na legislação proposta desconsidera importantes achados que poderiam resultar da análise no caso concreto e estipula como regra para todos os provedores de redes sociais, ferramentas de busca e serviços de mensageria instantânea a obrigação de remuneração pelo conteúdo jornalístico veiculado. Isso confere à proposta um contorno regulatório, ao determinar de antemão como as plataformas deverão se portar.
Os artigos que vedam a discriminação de usuários aos serviços das plataformas também têm fortes cores de Direito da Concorrência, refletindo preocupações com o uso abusivo do poder das plataformas que possa impedir o acesso e tratamento não discriminatório aos usuários.
Essas interferências, de forma mais ou menos direta, sobre aspectos concorrenciais das plataformas parecem demonstrar que se encontra em curso no Brasil uma espécie de regulação concorrencial por via oblíqua. Isto é, embora não existam esforços coordenados e direcionados para a elaboração de uma regulação concorrencial das plataformas, o PL das Fake News, por exemplo, que é voltado para questões de moderação de conteúdo, aborda temas que reverberam amplamente sobre a concorrência das plataformas.
Em razão da própria transversalidade da concorrência sobre todos os setores da economia, não espanta que aspectos de sua proteção fossem abarcados neste contexto. Isso, contudo, parece tornar ainda mais urgentes as reflexões sobre se este é, de fato, o veículo adequado para se pensar e elaborar uma regulação concorrencial das plataformas digitais no Brasil. As interferências resultantes de propostas legislativas diversas sobre plataformas digitais podem criar um cenário no qual a regulação concorrencial se encontra dispersa e descoordenada, sem que haja visibilidade ou segurança sobre como as condições de concorrência estão sendo niveladas a partir de um nível regulatório, ex ante.
É amplamente reconhecido que mesmo uma regulação que seja direcionada e focada aos aspectos concorrenciais invoca uma série de desafios para sua implementação e efetivação[13]. Uma regulação concorrencial por via oblíqua certamente redobra as preocupações e os receios com os impactos sobre o desenvolvimento da concorrência e da inovação na era digital. Faz-se premente, portanto, refletir sobre uma abordagem abrangente, coerente e coesa sobre os aspectos concorrenciais das plataformas – ainda que as conclusões dessa reflexão venham a ser pela desnecessidade de desenvolvimento de uma regulação concorrencial.
[1] KENNEY, Martin; ZYSMAN, John. The Rise of the Platform Economy. Issues in science and technology, v. 32, n. 3, pp. 61-69, 2016.
[2] SRNICEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.
[3] As plataformas digitais podem ser definidas como serviços digitais que facilitam as interações entre dois ou mais conjuntos distintos, porém interdependentes de usuários (sejam empresas ou indivíduos) que interagem através desses serviços via internet. Em: OCDE. Measuring the Digital Transformation, 2019.
[4] STIGLER COMMITTEE ON DIGITAL PLATFORMS. Final Report. 2019. Disponível em: https://research.chicagobooth.edu/stigler/media/news/committee-on-digital-platforms-final-report. Acesso em 27 ago. 2022.
[5] Como o uso em larguíssima escala de bases de dados, oferta produtos sem custo financeiro, efeitos de rede e a criação de ecossistemas
[6] OCDE. Ex ante regulation of digital markets, OECD Competition Committee Discussion Paper, 2021. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/ex-ante-regulation-and-competition-in-digital-markets.htm. Acesso em 11 out. 2022.
[7] Publicado no Diário Oficial da União Europeia em 12 de outubro de 2022. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?toc=OJ%3AL%3A2022%3A265%3ATOC&uri=uriserv%3AOJ.L_.2022.265.01.0001.01.ENG. Acesso em 12 out. 2022.
[8] https://competition-policy.ec.europa.eu/sectors/ict/dma_en.
[9] EUROPEAN PARLIAMENT. Briefing: Regulating digital gatekeepers. Background on the future digital markes act, 2020. https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2020/659397/EPRS_BRI(2020)659397_EN.pdf.
[10] Nesse sentido, destaca-se o pronunciamento da Presidência da Anatel sobre o tema, que indicou a importância de se estabelecer um amplo diálogo com a sociedade e com o Congresso Nacional para elaborar soluções adequadas ao problema. Em: https://www.poder360.com.br/governo/anatel-precisa-de-ferramentas-para-o-seculo-21-diz-presidente/. Acesso em 24 out. 2022.
[11] Disponível em: https://www.camara.leg.br/midias/file/2022/03/fake.pdf. Acesso em 11 out.
[12] No Cade, a questão está sendo analisada no âmbito do Inquérito Administrativo nº 08700.003498/2019-03, instaurado em 2019, em desfavor do Google, para apurar as condições de concorrência e eventual abuso de posição dominante no mercado de busca, bem como no mercado veticalmente relacionado de notícias.
[13] AKMAN, Pinar. Regulating Competition in Digital Platform Markets: A Critical Assessment of the Framework and Approach of the EU Digital Markets Act. European Law Review, vol. 47, 2022. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3978625. Acesso em 11 out. 2022.