No último dia 31 de março, foi publicada a nova minuta do PL 2630/20, conhecido como PL das Fake News, na qual constam diversas alterações quando comparadas com a proposta anterior. Dentre as propostas modificadas, gostaríamos de destacar uma mudança que guarda relação direta com as recentes polêmicas envolvendo o banimento do aplicativo Telegram no Brasil.
Mas antes disso, o que é o PL das Fake News? Para você que chega agora: a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet busca regular uma série de pontos relativos aos modelos de negócio na internet, com foco, específico, em três serviços/aplicações: redes sociais, mensageiros privados e ferramentas de busca. Excluídos, taxativamente, “enciclopédias online sem fins lucrativos, repositórios científicos e educativos, plataformas de desenvolvimento e compartilhamento de software de código aberto, e as plataformas fechadas de reuniões virtuais por vídeo ou voz”.
Na nova redação, o art. 37, que trata das disposições finais, traz uma série de obrigações para as empresas, conhecidas como plataformas, quando de sua atividade no Brasil. O novo texto, caput, diz que:
“Os provedores serão representados por pessoa jurídica no Brasil, cuja identificação e informações serão facilmente acessíveis nos sítios dos provedores na internet, devendo estes representantes disponibilizar às autoridades que detenham competência legal para sua requisição, nos termos desta Lei, informações cadastrais referentes aos usuários”.
Como se percebe, em análise direta, o comando legal faz referência a “pessoa jurídica no Brasil”. Em algumas reportagens, baseadas em declaração do relator, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), há a afirmação expressa de que a nova lei obrigará as empresas estrangeiras a constituírem uma pessoa jurídica no país. Essa assertiva não parece correta, ao menos não conforme o texto de lei proposto.
Conforme prática corrente, nas novas regulações de tecnologia há a atribuição de um responsável pela comunicação com as autoridades oficiais e com eventuais responsabilizações pecuniárias – veja-se o caso dos chamados “Encarregados”, no regime de proteção de dados (vide GDPR, Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados).
Entre as pessoas jurídicas existem as “empresas”, mas a categoria não se reduz a elas. Existem diversos tipos, como associações, fundações e até mesmo partidos políticos. Qualquer uma delas, excetuadas as suas limitações legais, poderia ser o ente representante de uma empresa estrangeira, conforme comando legal proposto.
As associações, por exemplo, encontram limitações quanto ao tipo de atividade, mas um contrato poderia ser entabulado, sem intenção lucrativa, com intuito de representação. Existem, portanto, outros suportes fáticos que a redação proposta parece não antever, mas que poderiam preencher o elemento necessário para conformidade com a norma (incidência).
No Brasil, além das modalidades citadas, conforme o que vem sendo implementado, há de se pensar que escritórios de advocacia, com procuração com poderes especiais, poderiam atender ao comando legal. O tema é controverso, mas esta parece ser a interpretação que seria dada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que, por seu turno, utilizou esse entendimento para realizar a comunicação com escritório brasileiro, representante do Telegram, que não tinha, em primeira análise, poderes totais de representação.
Além disso, da forma como disposto na proposta de lei, a constituição de pessoa jurídica não é a obrigação imposta; a representação por pessoa jurídica, sim.
Estaria a lei a apontar para a representação, buscando a “presentação”? De acordo com Pontes de Miranda: “O órgão da pessoa jurídica não é representante legal. A pessoa jurídica não é incapaz. O poder de presentação, que ele tem, provém da capacidade mesma da pessoa jurídica; por isso mesmo, é dentro e segundo o que se determinou no ato constitutivo, ou nas deliberações posteriores”[1].
Quem “presenta”, como órgão, já responde diretamente sobre os efeitos de incidência de questões materiais como o decaimento de direitos e aspectos de responsabilidade civil. Assim sendo, não se está pleiteando, através do projeto de lei, a criação de empresa brasileira, “filial” das plataformas estrangeiras.
Constituir pessoa jurídica é criar presentante, órgão. Falar em representação é, efetivamente, falar de espaço de competência exterior ao limite da própria pessoa – em qualquer modalidade. Isso só reforça a ideia de que seria um representante, com contrato específico (mandato) e plenos poderes – conforme parágrafo único, do art. 37, do PL das Fake News
Ou é isso, ou o legislador não compreende o direito no qual se insere.
É preciso pensar nos cenários e no ordenamento jurídico vigente antes de inovar, de forma “criativa”, sobre pontos que exigem interpretação sistemática.
[1] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1954, p. 412.