Lei da Ficha Limpa

Inelegibilidade, detração e ADI 6630

A controvérsia acerca da modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade

modulação
Sede do Supremo Tribunal Federal. Crédito: Nelson Jr./SCO/STF

No bojo da ADI n° 6.630/DF discute-se a inconstitucionalidade parcial do artigo 1°, inciso I, alínea ‘e’ (inelegibilidade por condenação criminal), da LC n° 64/90 (Lei das Inelegibilidades), naquilo que se refere ao prazo de contagem da aludida causa de restrição da capacidade eleitoral passiva. A demanda, patrocinada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), e subscrita pelos advogados Ezikelly Barros e Bruno Rangel, conta, ainda, com parecer de lavra do prof. dr. Georges Abboud. Iniciado o julgamento, há dois votos proferidos: o primeiro, proferido pelo ministro Nunes Marques, relator do processo objetivo de controle de constitucionalidade, no sentido de admitir que, do prazo de inelegibilidade de oito anos “posteriores ao cumprimento da pena”, seja deduzido o período de inelegibilidade decorrido entre a condenação por órgão colegiado, ou transitada em julgado, e o fim do cumprimento da pena criminal, de tal modo que a correspondente inelegibilidade não supere os oito anos desde o início da sua eficácia; e o voto divergente, de lavra do ministro Roberto Barroso, no sentido de estabelecer a detração apenas do período entre a condenação por órgão colegiado e o trânsito em julgado, seja porque o entendimento garante a incidência autônoma do prazo de oito anos de inelegibilidade previsto na Lei da Ficha Limpa, seja porque atende de forma mais efetiva o princípio da proporcionalidade. Após o voto do ministro Barroso, pediu vista o ministro Alexandre de Moraes. E o voto-vista se encontra na pauta do dia 3 de fevereiro de 2022 (continuidade de julgamento). Pois bem.

Nada obstante a divergência quanto à questão de fundo, isto é, acerca de saber se é constitucionalmente adequada a detração e, se positivo for, acerca dos seus parâmetros fático-temporais, outra discussão desponta como sendo tão relevante quanto, qual seja: os efeitos temporais de eventual decisão de inconstitucionalidade que eventualmente chancele a detração. Para que fique mais claro: a teoria da nulidade será aplicada ao caso ou, por outro lado, impor-se-á modulação de efeitos? Os votos até então proferidos modulam os efeitos da decisão, cada qual a seu modo. Porém, o caso lidaria como uma hipótese de modulação de efeitos? Eis a questão.

Com efeito, o Brasil adotou o modelo misto de controle de constitucionalidade, conjugando, grosso modo, o modelo de controle difuso (concreto), tipicamente norte-americano, com o modelo de controle concentrado (abstrato), tipicamente austríaco (com Kelsen) e alemão. A partir da Constituição de 1988, inaugura-se um modelo com multiplicidade de ações de controle concentrado de constitucionalidade (o chamado processo objetivo) — tais como, ADI, ADC, ADPF, ADO, bem assim um modelo com multiplicidade de legitimados ativos (CF, art. 103). Em que pese a adoção do precitado modelo misto, desde a aurora do controle judicial de constitucionalidade das leis lato sensu foi adotada no Brasil a teoria da nulidade da norma inconstitucional. Lei contrária a Constituição é nula. E o é desde a raiz.

Admite-se, contudo, a mitigação dessa fórmula. E, no Brasil, entre outros países, como os EUA, encontramos aquele instituto chamado de modulação dos efeitos nas decisões de inconstitucionalidade, seja porque determinadas questões do mundo da vida não são passíveis de modificação, seja porque a decretação de inconstitucionalidade ab initio de determinado ato normativo poderia causar considerável insegurança jurídica, reclamando, assim, a modulação dos respectivos efeitos, notadamente no sentido de gerar efeitos pró-futuro ou ex nunc, ou, ainda, de obstar pontualmente a indigitada retroatividade. A hipótese é excepcional, todavia[1]. Desse modo, a regra é a nulidade da lei inconstitucional, cuja declaração carregará efeitos ex tunc, a retroatividade máxima de que fala Cappelletti.  No entanto, havendo razões concretas de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, o Supremo Tribunal Federal (STF) poderá, por maioria qualificada de dois terços dos membros (oito votos), restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

Logo, a pergunta fundamental é: partindo do pressuposto de que o STF irá reconhecer a detração como adequada constitucionalmente, existiriam razões de segurança jurídica (o debate centra-se aqui) para aquilatar a modulação dos efeitos da decisão? Compreendemos que não. E os argumentos, para tanto, são de triplo alcance. A ver.

De início, considere-se a existência de uma medida cautelar deferida pelo relator, ministro Nunes Marques. Os casos eleitorais que envolvem essa discussão se encontram sobrestados perante o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) até o julgamento da ADI. E a decisão que defere medida cautelar em ADI possui efeitos vinculantes. Logo, o advento da decisão é parâmetro seguro a evitar inseguranças jurídicas, afinal, se trata de concreto marco de previsibilidade. Noutras palavras: a existência de medida cautelar (dotada de efeitos vinculantes), conjugada com o fato do sobrestamento no TSE, fulmina qualquer insegurança jurídica advinda do julgamento do STF, considerado o resguardo da previsibilidade das relações jurídicas. A possível decisão que viabilize a detração deve, portanto, ser aplicada com efeitos imediatos, mesmo para os casos inerentes às eleições de 2020. O argumento é de cariz processual e de teoria da jurisdição constitucional.

De igual modo, qual o pano de fundo do debate? O pano de fundo lida com o pleno exercício dos direitos políticos, naquilo que se refere à capacidade eleitoral passiva (direito fundamental de elegibilidade). Trata-se, ao final e ao cabo, da proteção dos direitos político-fundamentais. Daí, pois, que a modulação dos efeitos, considerada como exceção à teoria da nulidade, deve ser encarada como mecanismo de tutela/proteção dos direitos fundamentais. Já o artigo 16 da CF, quando prevê a anualidade ou anterioridade da lei eleitoral, tem como substrato principiológico o proporcionar de um processo eleitoral justo (“fairness), não se inserindo aí hipóteses, como a do caso em exame, nas quais o que há é a proteção do direito fundamental de elegibilidade por meio de decisão de inconstitucionalidade que, conforme o bem lançado parecer de lavra do prof. Abboud, faz apenas corrigir, por meio de decisão de inconstitucionalidade, restrição “desproporcional imposta pelo legislador que, por sua vez, tem prejudicado o equilíbrio do processo eleitoral”[2]. A decisão de inconstitucionalidade, dessa forma, não quebraria a garantia de um processo eleitoral justo, mas faria, pelo contrário, com que ele se adequasse à normativa constitucional, extirpando-se, com isso, e com efeitos imediatos, uma incongruência legislativa que, pelo manifesto excesso legislativo, cerceia o exercício de direito fundamental e, com isso, desequilibra o processo eleitoral a partir de restrição inconstitucional ao exercício da cidadania passiva[3].  O argumento possui assento no direito material.

Por fim, o argumento acima desenvolvido também deriva de uma questão de princípio: a máxima eficácia dos direitos fundamentais, por um lado, e o princípio pro-homine ou pro-persona, por outro. Com relação ao primeiro, Ingo Sarlet afirma que o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais “[…] exige que o intérprete sempre tente fazer com que o direito fundamental atinja plena realização”[4]. Nem precisaríamos dizer que essa vertente principiológica independe da natureza do direito em jogo, abarcando, uma vez que representam direitos fundamentais, os próprios direitos políticos em toda a respectiva dimensão (incluindo-se aí, evidentemente, o direito de ser votado). Já quanto ao segundo, na esteira da doutrina de Marcelo Peregrino, a missão do intérprete é ver a Constituição com olhar convencional, adotando as interpretações conformes o bloco de convencionalidade seja, ela uma interpretação mutativa por adição, mutativa por subtração ou mutativa mista por adição/subtração. De todo modo, neste chão dos direitos humanos, vige, como regra de maior valor hermenêutico, a preponderância da norma mais protetiva ao homem, do princípio pro homine ou pro persona[5]. Trata-se, então, da máxima efetividade dos direitos fundamentais e do princípio pro persona como vetor de interpretação, de modo a proteger, na espécie, o direito fundamental de elegibilidade. Em última consequência, a questão é promover a máxima valorização do ser humano, a partir da máxima garantia dos respectivos direitos. No caso, do direito fundamental de elegibilidade[6]. E o argumento derradeiro é de natureza principiológica[7].

Logo, quanto à eventual modulação de efeitos, a hipótese mais consentânea com a teoria dos direitos fundamentais, a teoria do processo constitucional e com o princípio pro persona[8], seria a de aplicação da teoria da nulidade da norma inconstitucional, sem modulação dos efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade. Não sendo o caso, na esteira do voto até então prolatado pelo ministro Nunes Marques, que se estabeleça, ao menos, interpretação segundo a qual a modulação seria em menor grau, ou seja, a partir da decisão que deferiu a medida acauteladora no bojo da ADI em comento, afinal, decisões que deferem medidas cautelares em processos objetivos de controle de constitucionalidade possuem efeitos vinculantes. Logo, a segurança jurídica estaria garantida, na pior das hipóteses, a partir do provimento acautelador. E o entendimento pela viabilidade da detração, caso seja estabelecido pelo STF, merecerá, pois, ser aplicado para os processos eleitorais inerentes ao escrutínio de 2020.


[1] O instituto da modulação dos efeitos, como exceção à teoria da nulidade, encontra previsão no artigo 27 da n°, Lei 9.868/99, segundo o qual “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

[2] ABBOUD, Georges. Parecer Jurídico na ADI n° 6630/DF. MATERIAL NÃO PUBLICADO.

[3] Na mesma esteira, segundo Rodrigo Cyrineu, “[…] o direito à elegibilidade está inserido no seleto rol dos direitos humanos, do compreendido, ainda, como direito fundamental na nossa ordem doméstica, a evidenciar, portanto, a necessidade de seu tratamento privilegiado. […]. Disso resulta que a Corte Eleitoral pode – ou melhor, deve – alterar a jurisprudência antes fixada sempre que se verificar um excesso na interpretação de uma dada regra de inelegibilidade, de modo que a evolução do entendimento privilegie – jamais prejudique – o jus honorum do cidadão”. (CYRINEU, Rodrigo Terra. Qual o alcance do artigo 16 da CF/88? Breves notas sobre a segurança jurídica no Direito Eleitoral à luz da doutrina de R. Dworkin e F. Muller. Revista Democrática, Cuiabá, v. 4, pp. 133-157, 2018).

[4] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9ªed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 286.

[5] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. Parecer. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/baseados-ordem-onu-pareceristas.pdf.> Acesso em: 25 jan. 2022.

[6] “[…] 4. As causas de inelegibilidade devem ser interpretadas restritivamente, a fim de que não alcancem situações não contempladas pela norma e para que se evite “a criação de restrição de direitos políticos sob fundamentos frágeis e inseguros, como a possibilidade de dispensar determinado requisito da causa de inelegibilidade, ofensiva à dogmática de proteção dos direitos fundamentais” (RO nº 448-53, Rel. Min. Gilmar Mendes, PSESS de 27.11.2014).

[7] A esse respeito, o artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH): “Artigo 29 – Normas de interpretação – Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de: a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados; c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza”.

[8] “[…] dever aplicar-se o melhor direito e de melhor interpretação de acordo com o princípio pro homine, como se lê na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e em outros atos convencionais, numa ‘reciclagem constitucional’ para permitir uma aplicação adequada à jurisprudência da Corte Interamericana, como se deu nos Casos Cabrera Garcia e Montiel Flores v. México […] e Gelman v. Uruguai […]” (SAGÜÉS, Néstor Pedro. De La Constitución Nacional a La Constitución “Convencionalizada”. Citado por: ESPÍNDOLA, Ruy Samuel; FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. Petição com Pedido de Medida Cautelar. Odilson Vicente de Lima vs. República Federativa do Brasil. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/lei-ficha-limpa-questionada-comissao.pdf.> Acesso em: 25 jan. 2022).