Direito

É possível restringir direitos humanos em tempos de Covid-19?

Percepção de como o Brasil respeitou suas obrigações internacionais no período da pandemia irá afetar a reputação do Estado

Crédito: Pixabay

A pergunta que intitula esse ensaio é um questionamento intrínseco dos tempos de coronavírus. Ele orna os discursos de políticos e agentes estatais, os pareceres de juristas, as estultices dos eruditos antiglobalistas – direta ou indiretamente. O direito de ir e vir pode ser limitado à luz do direito à vida e o direito à saúde? O direito de reunião pacífica é passível de restrição? A liberdade de expressão é garantida mesmo diante de uma situação de isolamento?

A tentativa de resposta a essas indagações – assim como ao questionamento principal – pode ser galgada através de diferentes caminhos. Uma das veredas possíveis é o direito internacional dos direitos humanos, grande influenciador da doutrina dos direitos fundamentais que hoje irriga nosso constitucionalismo. O assim chamado corpus juris internacional dos direitos humanos oferece indicações substanciais sobre como esses direitos perseveram em tempos de crise.

O objetivo deste escrito é o de cotejar o conteúdo das indicações que organismos internacionais recentemente ofereceram em relação a obrigações de direitos humanos durante a crise gerada pela Covid-19, bem como a possibilidade de restrição dessas obrigações. Como se verá, as hipóteses de restrição são poucas e age-se sempre no interior de uma moldura jurídica que poderá gerar responsabilidade internacional.

Em síntese, Estados encontram-se sob obrigações internacionais de respeitar e garantir direitos humanos de indivíduos ao abrigo de sua jurisdição. Tais compromissos advém de diversos tratados internacionais como, por exemplo o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) ou o Pacto de San José da Costa Rica.

A verificação do conteúdo e a interpretação dessas obrigações internacionais ocorre tanto através da prática dos Estados quanto por órgãos por eles constituídos para supervisionar ou adjudicar esses acordos internacionais.

Em tempos recentíssimos, algumas instituições internacionais ofereceram importantes indicações da continuidade das obrigações de direitos humanos em tempos de crises sanitárias, bem como as situações em que são admitidas a sua restrição. Tal movimento é notável, sobretudo por reafirmar a continuidade das obrigações: em suma, conservam-se direitos humanos nos tempos de COVID-19. Contudo, diante da necessidade de tomar medidas severas de isolamento social e contenção da epidemia, surge a hipótese da impossibilidade do pleno gozo desses direitos.

Órgãos do Sistema Interamericano, como a Comissão Interamericana e a Corte Interamericana, emitiram em abril históricos documentos recordando a vigência de direitos humanos em períodos de crise e realizando recomendações aos Estados membro do Sistema.

Embora possa parecer surpreendente uma Corte fazendo recomendações, os documentos são abrangentes e reforçam tanto a impossibilidade de discriminação entre os indivíduos quanto a necessidade da proteção carcerária – uma preocupação, e.g., do Estado brasileiro. À luz da doutrina do controle de convencionalidade e dos potenciais desdobramentos no ordenamento pátrio[1], a breve leitura desses documentos é um exercício que todo jurista envolvido com a pandemia deveria realizar.

Em relação à restrição de direitos humanos, ponto em comum dos documentos interamericanos é a observação de que todas as medidas adotadas para fazer frente à pandemia que “possam afetar ou restringir o gozo e exercício dos direitos humanos”, devem ser temporárias, razoáveis, necessárias,  proporcionais e baseadas em critérios científicos.[2]

Reforça-se não só a garantia dos direitos civis e políticos, como também direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Em outras palavras: é possível sim restringir temporariamente, inter alia, o direito de ir e vir, desde que evidenciadas sua necessidade, proporcionalidade, razoabilidade e que fontes científicas consubstanciem essa decisão.

Diferentemente do que podem sugerir alguns, tais declarações não se tratam de novas normas sendo impostas aos Estados. Há robusta construção de organismos e cortes internacionais – com participação do Brasil, inclusive – em relação a algo que o artigo 4 do PIDCP já enunciava em 1966: “os Estados Partes do presente Pacto podem adotar, na estrita medida exigida pela situação, medidas que suspendam as obrigações decorrentes do presente Pacto, desde que tais medidas não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhes sejam impostas pelo Direito Internacional e não acarretem discriminação alguma (…)”.

O que os organismos interamericanos rememoraram, exercendo poderes que lhe são atribuídos pela Carta da OEA e do Pacto de San José, são as obrigações bem como as decisões internacionais já adotadas nesse sentido em relação ao alcance dessas obrigações. A mensagem cardinal é que existem limites estritos no limitar de direitos humanos.

Essa tônica emerge claramente na importante Declaração sobre as Derrogações do Pacto em relação à COVID-19 adotada no dia 24 de abril de 2020 pelo Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, órgão composto por experts independentes para supervisionar o PIDCP.

O Comitê admite a possibilidade de derrogações às obrigações contidas no Pacto, desde que sejam observados os estritos requerimentos e condições estabelecidos não apenas no mencionado art. 4, como também nos Comentários anteriormente adotados pelo Comitê em relação ao Comentário Geral 29 sobre derrogações em Estado de Emergência, adotado em 2001.

Tanto o sistema da ONU quanto o Sistema Interamericano estão em sintonia em relação ao fato de que a restrição a direitos humanos só deve ocorrer em situações circunscritas e seguindo critérios pré-determinados num ambiente de legalidade e não-discriminação.

O Comitê reforça a importância do dever de informação à ONU das medidas limitantes de direitos humanos (com a devida justificação) – que servirá ao monitoramento das situações de violação. O Comitê salienta ainda que existem obrigações internacionais inderrogáveis: entre eles, o direito à vida, a proibição da tortura, testes científicos sem consentimento, proibição da escravidão ou a legalidade ou a liberdade de pensamento, consciência ou religião.[3]

É certamente árdua a implementação, a proteção e, por vezes, a garantia mínima de direitos em momentos extremos. A linha de sombra de Conrad aparece para todos. Contudo, órgãos internacionais recordam-nos uma lição importante: haverá um amanhã. Essa recordação serve tanto para evitar a violação de hoje como para garantir a reparação do dia vindouro.

A maneira como nossas autoridades (municipais, estaduais e federais) lidam hoje com essa crise terá pelo menos dois reflexos no campo jurídico. O primeiro é na situação individual de cada eventual violação.

Apesar de longos e por vezes tardios, o processo de busca por reparação acaba ocorrendo no contencioso nacional e internacional. A Saga Herzog e a recente sentença de 2018 são provas.

O segundo reflexo é mais amplo e ocorre no seio de um processo maior. A percepção de como o Brasil respeitou suas obrigações internacionais no período da pandemia irá afetar a reputação do Estado. Não apenas no momento da potencial entrada na OCDE, num acordo comercial com a União Europeia ou no pleitear de uma posição internacional. Interfere de maneira categórica na imagem do país e de seus cidadãos no exterior. Será reflexo de que nossas autoridades fizeram tudo que estava ao seu alcance para proteger sua população, respeitar as obrigações com a devida diligência e garantir direitos fundamentais histórica e internacionalmente construídos. Ou de que falharam no compromisso com o amanhã.

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[1] Sobre a questão, ver André de Carvalho Ramos, The conventionality control and the struggle to achieve the definitive interpretation of human rights: the Brazilian experience’ (2016) Revista del Instituto Interamericano de Derechos Humanos 11–32; Jorge Contesse,The international authority of the Inter-American Court of Human Rights: a critique of the conventionality control doctrine’ (2018) 22 IJHR 1168–9 e de maneira geral Laurence Burgorgue-Larsen, Conventionality Control: Inter-American Court of Human Rights (IACtHR), Max Planck Encyclopedia of Procedural International Law, 2018.

[2] Item C, 3, (f) e (g) da Resolução 01/20 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Item 3 da Declaração da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 9 de abril de 2020. A propósito de medidas de isolamento, a Organização Mundial da Saúde oferece amplo fundamento científico para a sugestão das medidas de restrição a serem adotadas. Ver nesse sentido: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19—11-march-2020.

[3] Item 2, (d), do Human Rights Committee, Statement on derogations from the Covenant in connection with the COVID-19 pandemic, CCPR/C/128/2, 24 de abril de 2020. A propósito de direitos que não podem ser restringidos, as OCs 8/87 e 9/87 tratam do artigo 27.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos.