CVM

O risco de (i)liquidez dos fundos de investimento em tempos de Covid-19

Gestores e administradores precisam redobrar atenção em cenários de alta volatilidade

Crédito: Pixabay

Mecanismo de indiscutível importância para o desenvolvimento econômico, a história do mercado de capitais é um verdadeiro thriller envolto em reviravoltas causadas pelos mais diversos fatores, desde mudanças de expectativas dos agentes econômicos, passando por disputas políticas e até mesmo em razão de fraudes e bolhas.

Dessa maneira, de tempos em tempos surge algum evento que balança as estruturas do mercado de capitais, o que quase sempre leva a uma corrida dos investidores para trocar os ativos mais arriscados por outros mais seguros e menos voláteis. Se há uma certeza ao se falar do mercado de capitais, é que essa crônica em algum momento se repetirá.

A atual pandemia do coronavírus (COVID-19), que vem chacoalhando as principais bolsas de valores do mundo, é mais um capítulo desse conhecido filme. Sem em nada diminuir a tragédia humana ocasionada pelo vírus, de proporções arrasadoras, não se pode classificar como uma novidade os efeitos deletérios que uma crise local ou global pode causar (e, em geral, causa) sobre o mercado de capitais, seja ela de saúde pública, política ou de qualquer outra natureza. Como um microcosmos (nem sempre totalmente representativo) das expectativas dos agentes econômicos, o desempenho do mercado de capitais é influenciado pelos fatos que afetam o mundo como um todo.

É justamente nesses cenários de forte volatilidade que emerge a preocupação com o chamado “risco de liquidez”, isto é, o risco de inexistência de dinheiro suficiente para o adimplemento das obrigações assumidas por determinado participante do mercado financeiro.

Esse assunto, há muito tempo discutido para o setor bancário, vem ganhando crescente importância em relação aos integrantes do sistema não-bancário de intermediação financeira (outrora conhecido como shadow banking), em especial, para os fundos de investimento abertos, em que os cotistas podem requisitar o resgate de suas cotas, ou seja, a entrega em dinheiro do montante equivalente ao valor da cota do fundo.

Com efeito, o risco de liquidez dos fundos de investimento abertos vem sendo objeto de debate por reguladores de todo o mundo, em especial desde que o Financial Stability Board (FSB), órgão multilateral que monitora e faz recomendações sobre a estabilidade financeira global, classificou tal risco como uma das “vulnerabilidades estruturais” da indústria, ao lado dos riscos relacionados à alavancagem e riscos operacionais.[1]

Nos fundos abertos, os dois principais fatores que influenciam esse risco são: a liquidez dos ativos integrantes da carteira do fundo – ou seja, o tempo que leva para convertê-los em dinheiro de forma que seu preço não seja materialmente afetado –, que serão alienados para honrar com os resgates requisitados; e o montante total que o fundo terá de despender para pagar o resgate daqueles cotistas que o solicitaram. Nos fundos abertos, assim, o risco de liquidez se materializa principalmente quando não há ativos que podem ser vendidos, sem que haja grande impacto no preço de venda, a tempo de pagar os resgates nos prazos e condições estabelecidos no regulamento.

Em cenários de estresse como os presente durante as crises, em que ambos os fatores são afetados, aumenta proporcionalmente o risco de haver iliquidez nos fundos de investimento abertos. Mas, mesmo em situações menos complexas, esse risco existe e deve ser objeto de cuidado. A propósito, no caso brasileiro, a preocupação com esse risco tem aumentado nos últimos dois anos à medida em que a manutenção da taxa de juros em patamares historicamente baixos tem levado gestores de fundos a buscar maior rentabilidade por meio do investimento em ativos menos líquidos.

Obrigações regulatórias

Pelos motivos acima, em âmbito local, a regulamentação expedida pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) atribui aos administradores fiduciários e gestores de recursos o dever de conjuntamente gerenciar o risco de liquidez dos fundos de investimento para os quais prestam serviços. Em outras palavras, tanto administrador quanto gestor tem o dever de adotar as precauções necessárias para assegurar que o fundo tenha condições de fazer jus às suas obrigações, inclusive as decorrentes dos resgates requisitados pelos cotistas, os quais devem ser pagos nos termos disciplinados no regulamento do fundo.

Nesse sentido, vale dizer que o dever de gerenciamento do risco de liquidez surge antes mesmo da constituição do fundo, na medida em que a própria elaboração de seu regulamento precisa levar em consideração a futura capacidade do fundo de honrar com suas obrigações. A escolha do público-alvo do fundo, de sua política de investimentos e dos prazos e condições para o pagamento de resgate são, dentre outros, aspectos que devem ser conjuntamente pensados tendo em vista esse dever.[2]

Para além disso, a regulamentação também exige que administrador e gestor adotem as políticas, procedimentos e controles internos necessários para garantir que, durante o período de funcionamento do fundo, a liquidez de sua carteira seja compatível com suas obrigações financeiras. Trata-se, portanto, de tarefa que deve ser desempenhada de forma coordenada entre o administrador fiduciário e o gestor de recursos, uma vez que, no entendimento da CVM, as informações relacionadas aos cotistas e às obrigações do fundo (o “passivo”) são detidas pelo primeiro, ao passo que o segundo detém os dados sobre os investimentos constantes da carteira do fundo (o “ativo”).[3]

Outra obrigação das mais relevantes que se insere dentro do dever de gerenciamento do risco de liquidez é a necessidade de realização de testes periódicos que visem a medir a capacidade do fundo de cumprir com suas obrigações em momentos de estresse.

Neste ponto, cumpre registrar que existe uma ferramenta à disposição do administrador que pode (e, na realidade, deve) ser empregada em casos de eventual ausência de liquidez do fundo aberto. Prevista no art. 39 da Instrução CVM nº 555, de 2014, a declaração do fechamento do fundo para resgates permite que, em situações excepcionais de iliquidez, o fundo temporariamente deixe de aceitar pedidos de resgate formulados pelos cotistas, bem como deixe de pagar aqueles resgates que já tenham sido solicitados, tenham eles sido cotizados ou não.[4] Mas, sendo uma ferramenta excepcional, tal recurso não deve ser utilizado de forma rotineira ou como meio ordinário de gestão da liquidez do fundo.

A supervisão da CVM

O risco de liquidez dos fundos está dentre os tópicos que vem sendo acompanhados com bastante atenção pela CVM. Além de ter figurado como evento de risco em diversos dos Planos Bienais de Supervisão Baseada em Risco divulgados pela autarquia, a atualmente denominada Superintendência de Supervisão de Riscos Estratégicos (SSR), em conjunto com outras áreas da CVM, como a Superintendência de Relações com Investidores Institucionais (SIN), recentemente desenvolveu um novo sistema que será utilizado pelo regulador para  supervisionar o risco de liquidez da indústria brasileira de fundos.[5]

Comparado ao anterior, esse novo sistema permite à CVM acompanhar de forma mais tempestiva e precisa a liquidez dos ativos integrantes da carteira dos fundos abertos, na medida em que o regulador agora consegue estimar quais ativos podem ser liquidados dentro de determinado período sem que haja alteração de seu valor de venda. Essa estimativa não é mais realizada apenas com os dados fornecidos pelos próprios administradores fiduciários dos fundos de investimento à CVM (como ocorria até pouco tempo), mas também por meio de outras bases de dados.

A  partir desse conjunto de informações, o regulador produz diferentes índices para medir a liquidez dos fundos. A combinação desses parâmetros permite ao regulador identificar situações de falta de liquidez dos fundos mesmo quando os dados apresentados pelo administrador não apontarem essa situação – ou vice-versa. Desse modo, talvez a principal novidade trazida por esse novo sistema seja a possibilidade de a CVM não apenas encontrar problemas ocultos de liquidez nos fundos de investimento, mas também eventuais erros informacionais nos dados fornecidos pelo administrador.

Não é exagerado dizer, portanto, que introdução desse novo mecanismo de vigilância iniciou um novo capítulo na história de supervisão da CVM sobre a liquidez dos fundos abertos. Gestores e administradores provavelmente sentirão os seus efeitos no médio e longo prazos, com o aumento de questionamentos por parte da regulador e, talvez, o incremento da quantidade de processos sancionadores envolvendo o tema.

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[1] Disponível em http://www.fsb.org/2017/01/policy-recommendations-to-address-structural-vulnerabilities-from-asset-management-activities/.

[2] Vide Ofício-Circular/CVM/SIN/Nº 2/2015, disponível em http://www.cvm.gov.br/legislacao/oficios-circulares/sin/oc-sin-0215.html.

[3] Para que o gerenciamento do risco de liquidez dos fundos seja adequadamente realizado, a Instrução CVM nº 558, de 2015, exige em seu art. 23, II, que o contrato celebrado entre administrador e gestor estabeleça quais mecanismos serão utilizados para assegurar o fluxo de informações necessário para a implementação da gestão do risco de liquidez.

[4] Vide Processos Administrativos CVM nº RJ2009/247 (16.1.2009) e RJ2013/283 (9.6.2015).

[5] Conforme notícia divulgada pela CVM em 9.1.2020, disponível em http://www.cvm.gov.br/noticias/arquivos/2020/20200109-1.html. Para mais informações sobre o novo sistema, vide apresentação disponível em https://www.youtube.com/watch?v=SYkQEj93vwY.