tributário

A controvertida incidência do ITCMD sobre a herança líquida

Legislações estaduais violam princípio da capacidade contributiva

Economia
Crédito: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Em âmbito judicial ou extrajudicial, os processos sucessórios têm como escopo a transmissão de um determinado patrimônio deixado como herança por seu então possuidor, quando de sua morte, para seus respectivos sucessores.

A esse respeito, o Código Civil determina que o herdeiro não responde por encargos superiores à herança[1] e que a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido[2]. Em outras palavras, por força do mencionado diploma legal, a herança responde pelas dívidas deixadas pelo de cujus, até o limite do valor total da mesma.

Assim, apenas após deduzidas as dívidas do falecido dos ativos deixados como herança, passa a ser possível identificar se há patrimônio líquido positivo a ser transmitido aos herdeiros e, se houver, qual será o efetivo acréscimo de riqueza que os sucessores terão em razão dessa transmissão causa mortis.

Nos termos do art. 155 inciso I da Constituição Federal, os estados e o Distrito Federal são competentes para instituir impostos sobre a transmissão causa mortis de quaisquer bens e direitos, mas não há qualquer menção à necessidade de serem descontadas eventuais dívidas deixadas pelo de cujus na apuração da base de cálculo do imposto, o que conduziu à existência de disposições nas legislações estaduais tratando do assunto em sentidos diametralmente opostos.

Com efeito, no estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o §2º, do art. 14 da Lei 7.174/15 determina que devem ser excluídos da base de cálculo do imposto sobre transmissão causa mortis as dívidas do falecido, desde que comprovadas origem, autenticidade e pré-existência[3].

Destaca-se que a permissão para abatimento das dívidas contraídas pelo de cujus, condicionado ao cumprimento de requisitos que demonstrem que (i) foram assumidas pessoalmente pelo de cujus; (ii) foram contraídas antes da abertura da sucessão; e (iii) são documentalmente comprovadas, está em perfeita consonância com a regra geral adotada no direito comparado[4], como sucede na França[5] e na Itália[6], por exemplo.

A legislação do estado de São Paulo, por sua vez, está em sentido oposto prevendo, expressamente, no art. 12 da Lei 10.705/00, que “no cálculo do imposto, não serão abatidas quaisquer dívidas que onerem o bem transmitido, nem as do espólio”.

Chama a atenção que as legislações estaduais vão em sentidos tão distintos em suas previsões sobre a possibilidade de deduzir da base de cálculo do imposto as dívidas deixadas pelo de cujus, muito embora não surpreenda o viés arrecadatório do Fisco paulista em matéria de ITCMD, haja vista que o faz até quando há expressa vedação constitucional, a exemplo da matéria enfrentada no recente julgamento do RE n. 851.108 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) (Tema 825 da Repercussão Geral)[7].

O que realmente surpreende é que, em que pese haja jurisprudência majoritária no sentido de que a base de cálculo do imposto sobre a transmissão causa mortis deve corresponder ao patrimônio líquido herdado, excluídas as dívidas do falecido[8], o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) ainda vem proferindo decisões em sentido contrário[9].

Os julgados do TJSP pela dedutibilidade das dívidas do falecido baseiam-se na inteligência dos artigos 1.792 e 1.997 do Código Civil que determinam que sejam descontados da herança os débitos deixados pelo de cujus, até o limite do valor total da herança, havendo inclusive o entendimento de que teria havido uma revogação tácita do artigo 12 da lei estadual, pois anterior e contrária às disposições do Código Civil em vigor[10].

Já os julgados pela impossibilidade da dedução das dívidas do falecido, baseiam-se no entendimento de que o ITCMD é de competência dos estados, cabendo a estes entes definir se deve prevalecer a incidência do imposto sobre o total dos bens e direitos transmitidos, sem quaisquer exclusões[11].

Ao nosso ver, a exigência do tributo calculado sobre uma base de cálculo constituída apenas pelo valor dos ativos, sem que sejam descontadas as dívidas deixadas pelo de cujus, trata-se de medida irrazoável e, por isso, inconstitucional por parte do legislador estadual paulista, que atenta contra a própria capacidade contributiva dos herdeiros, eis que a cota parte que lhes aproveita na herança está tolhida, de raiz, do valor das dívidas do de cujus.

Analisar hipótese extrema nos parece útil para testar a razoabilidade do dispositivo. Propomos a seguinte reflexão: imagine-se situação em que é transmitido aos herdeiros bens e direitos no valor de R$ 200 mil, mas o de cujus deixou dívidas no mesmo valor. No fim do dia, não haveria qualquer elemento positivo acrescendo ao patrimônio dos herdeiros. Porém, à luz da legislação paulista, os herdeiros ainda deveriam recolher ITCMD sobre a base de cálculo de R$ 200 mil.

Ora, se o tributo incide sobre a transmissão de um conjunto de bens e direitos (elementos positivos), deduzido de um conjunto de dívidas (elementos negativos), tributar um patrimônio líquido inexistente, que não é passível de partilha entre os herdeiros, equivale a tributação sem base imponível, o que já foi, inclusive, decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao examinar caso tratando do tema, quando do julgamento AgRg 733.976/RS[12].

A jurisprudência do e. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) pode servir de exemplo para o TJSP e para os tribunais de outros estados em que também haja a expressa vedação à dedutibilidade de passivos do de cujus da base de cálculo do imposto incidente sobre a transmissão causa mortis.

Isso porque o §3º, do art. 12 da Lei estadual 8.821/89 do Rio Grande do Sul vedava a exclusão dos valores de quaisquer dívidas que onerassem o bem, título ou crédito transmitido da base de cálculo do ITCMD, exatamente como faz a legislação paulista. Porém, além de ser pacificada a jurisprudência daquele tribunal no sentido de que o imposto deve incidir sobre o valor patrimonial líquido transmitido, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 70007457880, a Corte declarou a inconstitucionalidade do dispositivo.

Elogiável também que, naquele tribunal, para chegar à pacificação da jurisprudência pela adoção da “herança líquida” como a base de cálculo do imposto, adotou-se a correta interpretação de que, do exame do art. 38 do Código Tributário Nacional[13], pode-se inferir que a base de cálculo do ITCMD deve-se limitar ao valor patrimonial líquido transmitido, excluindo-se os valores das dívidas do monte partilhável.

Dessa forma, resta muito claro que o art. 12 da Lei paulista 10.705/00 e dispositivos similares de legislações de outros estados, que vedaram a dedução de passivos do de cujus na apuração da base de cálculo do ITCMD, violam frontalmente o princípio da capacidade contributiva, por fazerem incidir tributação sobre valores que excedem ao patrimônio adquirido por sucessão em que a herança líquida consiste.


[1] Art. 1.792. O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demostrando o valor dos bens herdados.

[2] Art. 1.997. A herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube.

[3] São igualmente dedutíveis da base de cálculo as despesas incorridas com o funeral (art. 14, §2º, II)

[4] MARTINS. Ricardo Lacaz. Tributação das heranças e doações. – São Paulo, SP: IBDT, 2021. p. 117.

[5] Art. 768 do Códe Général des Impôts – “Pour la liquidation des droits de mutation par décès, les dettes à la charge du défunt sont déduites lorsque leur existence au jour de l’overture de la sucession est dûment justifiée par tous modes de preuve compatibles avec la procédure écrite”.

[6] AVELLA, Francesco. Italy – Individual Taxation – Country Tax Guides. Amsterdam: IBFD, 2020, seç 6.

[7] No referido julgamento, por maioria de votos, o plenário virtual do STF decidiu que, inexistindo a lei complementar a que se refere o artigo 155, parágrafo 1º, inciso III, da Constituição Federal (“CF”), não poderão os estados, por meio de suas leis estaduais, fazerem as vezes do legislador complementar. O leading case examinou especificamente a lei paulista 10.705/00.

[8] Nesse sentido: A.I. 2005294-67.2021.8.26.0000, de 26.02.21; A.C. 1013016-10.2021.8.26.0053, de 27.06.22; A.C. 1014199-79.2022.8.26.0053, de 15.06.22.

[9] Nesse sentido: A.I. 3005699-86.2021.8.26.0000, de 21.03.22.

[10] Nesse sentido: A.I. n. 2121596-48.2022.8.26.0000, de 20.06.22.

[11] Nesse sentido: A.I. 3001765-86.2022.8.26.0000, de 09.05.22.

[12] Destaca-se o seguinte trecho da ementa do AgRg 733.976/RS: “2. Mesmo se restasse superada a questão de a ofensa ser de ordem infralegal, cumpre observar que a vedação das deduções deforma a regra matriz de incidência do imposto, fazendo incidir tributo onde não há base imponível”.

[13] Art. 38. A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos.logo-jota

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