inteligência artificial

A Análise Econômica do Direito ao Trabalho e do Direito do Trabalho na era da IA

Há na contemporaneidade uma onda de flexibilização da tutela ao trabalho humano

economista-chefe STF
Estátua da Justiça com o prédio do STF ao fundo / Crédito: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Diálogo entre Direito e Economia como premissa hermenêutica

A análise econômica do Direito tem inspirado julgamentos paradigmáticos, inclusive no Brasil. Exemplo dessa tendência está nas premissas adotadas pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE 958252, acerca da licitude da terceirização da atividade principal das empresas.

Concordemos ou não com as premissas validadas pelo STF[1], é certo que alguns fragmentos da ementa de mencionada decisão[2] retratam esforço hermenêutico que congrega eficiência econômica e valores éticos fundamentais, a saber:

  1. As leis trabalhistas devem ser observadas por cada uma das empresas envolvidas na cadeia de valor com relação aos empregados que contratarem, tutelando-se, nos termos constitucionalmente assegurados, o interesse dos trabalhadores.

  2. A prova dos efeitos práticos da terceirização demanda pesquisas empíricas, submetidas aos rígidos procedimentos reconhecidos pela comunidade científica para desenho do projeto, coleta, codificação, análise de dados e, em especial, a realização de inferências causais mediante correta aplicação de ferramentas matemáticas, estatísticas e informáticas, evitando-se o enviesamento por omissão de variáveis (“omitted variable bias”).

  3. A terceirização, segundo estudos empíricos criteriosos, longe de “precarizar”, “reificar” ou prejudicar os empregados, resulta em inegáveis benefícios aos trabalhadores em geral, como a redução do desemprego, diminuição do turnover, crescimento econômico e aumento de salários, permitindo a concretização de mandamentos constitucionais como “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, “redução das desigualdades regionais e sociais” e a “busca do pleno emprego” (arts. 3º, III, e 170 CRFB).

Malgrado seja despretensiosa a abordagem em ensaio jurídico necessariamente breve, como este, tratemos da tentativa, entre nossos juízes, de aproximar o exame da validade, eficácia, sentido e alcance da norma jurídica dos postulados oferecidos pela ciência econômica, iniciando nosso estudo pela constatação de que o Direito, muita vez, mostra-se impermeável à influência de saberes que não considerem o conteúdo moral a ele inerente.

Em fina sintonia com os incisos III e IV do primeiro artigo da Constituição – que consagram a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos da República – o artigo 170 da Constituição prediz ser legítima “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa” que “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

A Constituição não condiciona a realização desses escopos éticos ao critério da eficiência econômica, no sentido de que, grosso modo, para a norma ganhar validade os recursos materiais disponíveis haveriam de assegurar direitos sem que se reduza o que já possui qualquer outra pessoa (ótimo de Pareto), ou até possam gerar algum decréscimo de valor para alguém, desde que esse alguém seja de algum modo compensado (critério de Kaldor-Hicks)[3].

Mesmo antes da Constituição de 1988, e a inspirá-la, o artigo 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ratificado pelo Brasil em 1992, inseriu entre os direitos humanos positivados “o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis”, enumerando garantias mínimas a serem asseguradas aos trabalhadores e trabalhadoras. O artigo 7 do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ou Protocolo de São Salvador, ratificado pelo Brasil em 1999, normaliza: “o direito ao trabalho […] pressupõe que toda pessoa goze desse direito em condições justas, equitativas e satisfatórias”, enumerando, em seu art. 6.2, direitos mínimos necessários à garantia da plena efetividade do direito ao trabalho.

Há, portanto, direitos relacionados ao trabalho, erigidos explícita ou implicitamente à estatura de direitos humanos ou fundamentais, que não se submetem, segundo a ordem jurídica posta, ao pressuposto da eficiência, isto é, a condicionamento de verniz puramente econômico. A primeira pergunta que emerge, porém, está relacionada a quais valores morais estariam a delinear as condições de trabalho indefectíveis, ou insuscetíveis de mitigação por razões de sustentabilidade econômica. E daí surge a pergunta tão ou mais inquietante: quais os direitos de tutela ao trabalho que, fugindo a esse espectro de indisponibilidade absoluta, devem perecer quando desproporcionalmente onerosos.

A primeira pergunta é impactante porque pode conduzir à sua própria negativa, ou seja, pode ceder ao argumento conservador de que todos os valores morais, supostamente igualitários, atendem em verdade e dissimuladamente a interesses setorizados ou gremiais, a valores não universais[4]; ou ao argumento utilitarista de ser justa (não necessariamente moral) a ação que maximiza a utilidade (ou proporciona felicidade em maior grau), independentemente de algum conteúdo ético predefinido[5]; ou quiçá ceder ao argumento afeto à semiologia jurídica, segundo o qual a racionalidade se obtém na experiência discursiva, ou consensualmente, sem o pressuposto de que haveria razões morais inatas e imanentes a toda a humanidade[6]. Uma e outra perguntas remetem, de toda sorte, à inter-relação entre o Direito e a Economia, à possível supremacia de uma ou outra ciência na resolução das questões sociais.

Segundo a nossa compreensão, o fundamento moral que empresta unidade e coerência à tutela dos direitos humanos e fundamentais é a dignidade da pessoa humana e seus desdobramentos nas áreas dos direitos civis, políticos, econômicos, culturais e ambientais positivados, o que bastaria para afastar a influência de ideologias conservadoras ou mesmo puramente libertárias, do utilitarismo ou da razão discursiva. Mas o foco das nossas reflexões é, neste então, o de investigar em que medida as teorias econômicas podem limitar a eficácia, o sentido ou o alcance das normas de Direito do Trabalho, cabendo, por isso, verificar como os defensores dessa ideia se posicionam acerca dos fundamentos de validade da ordem jurídica.

A maximização da riqueza (Richard Posner) como critério de eficiência do Direito

Ao figurar como um dos precursores da Análise Econômica do Direito (AED), Richard Posner sustentou que a eficiência da norma de Direito deveria estar associada à sua aptidão para maximizar a riqueza e teve que suportar acesa crítica de que estaria, em rigor, a dar nova roupagem ao utilitarismo. À primeira vista, a riqueza era outra forma de referir a utilidade (ou a felicidade), tudo a insinuar que a análise econômica que propunha era uma fórmula mimética de associar eficiência à maximização da felicidade, sem apelo a qualquer outro parâmetro de racionalidade.

E qual seria, então, a contribuição da ciência econômica na concepção e compreensão da ordem jurídica, se descartada estaria a maximização da utilidade como fundamento para a validação desta? Posner[7] procura resolver esse dilema ao fazer uma distinção conceitual entre “riqueza” e “utilidade”. E lembra, nesse contexto, que desde Adam Smith o termo “valor” é associado ao “valor de troca”, definido pelo mercado a partir de quanto as pessoas pretendam gastar com as coisas ou mercadorias, independentemente de seu “valor de uso”. Observa Posner que “do conceito de valor, deriva o de riqueza da sociedade como soma de todos os bens e serviços no interior desta”.

Embora a consentir que o valor está relacionado à felicidade (“uma pessoa não compraria uma mercadoria se não obtivesse com esta mais felicidade”), sustenta que a utilidade não se confunde com o valor (“o indivíduo que gostaria muito de ter uma determinada mercadoria, mas não está disposto a pagar por ela ou é incapaz de fazê-lo, talvez por ser pobre, não a valoriza” no sentido de atribuir-lhe valor de troca). A AED, em vez de associar o custo e o proveito econômico à maximização da utilidade, haveria de adotar, segundo Posner, a “maximização da riqueza como conceito ético”. Mas apenas daquela riqueza que, em aparente concessão de Posner a conteúdos morais, equivalesse à soma das preferências pessoais moralmente relevantes:

“[…] a riqueza da sociedade é a totalidade da satisfação das preferências (as únicas moralmente relevantes em um sistema de maximização da riqueza) financeiramente sustentadas, isto é, que se manifestam em um mercado. Este, entretanto, não precisa ser explícito. A vida econômica ainda está organizada, em grande medida, segundo o princípio do escambo. São exemplos disso o ‘mercado de casamentos’, a criação dos filhos e um jogo de bridge entre amigos. Seria possível calcular o valor monetário desses serviços com base em substitutos deles vendidos em mercados explícitos ou de outras maneiras. Eles ilustram a importante observação de que a riqueza não é simples reflexo do Produto Interno Bruto ou de qualquer outro índice monetário efetivo de medição do bem-estar. Uma sociedade não se torna necessariamente mais rica se as mulheres deixarem (espontaneamente) de ser donas de casa para se prostituírem; ou se uma pessoa que costuma contribuir com instituições de caridade (fazendo crescer assim o consumo de outras pessoas) passar a gastar seu dinheiro consigo mesma”[8].

Com o objetivo de ilustrar o modo como a maximização da riqueza pode ser um contributo da ciência econômica para promover a eficiência do Direito, Posner traz à consideração algumas situações jurídicas que lhe pareceram ilustrativas[9]. Posner defende, por exemplo, que a responsabilidade pré-tarifada (quarenta reses pelo assassinato de um homem livre; a metade desse gado pela morte de escravo; duas reses por arrancar um olho etc.) era, na sociedade primitiva, mais eficiente que a fixação da indenização caso a caso, pois “os custos informacionais[10] que a determinação individualizada de perdas e danos implicaria fazer da compensação fixa a abordagem mais viável para a sociedade primitiva”. A responsabilidade coletiva (que se estendia aos parentes) tornava viável a prévia tarifação de valor mais elevado que as pertenças do infrator.

A partir de equação que considera a probabilidade de punição e o rigor da pena aplicável, Posner indica como avaliar a eficiência da solução jurídica: “A análise econômica sugere que a concomitância de baixa probabilidade e penalidades muito severas frequentemente é eficaz, porque, contanto que os custos de cobrança de multas ou indenizações por perdas e danos sejam baixos, a redução da probabilidade de punição, graças à qual se economizam recursos com investigação e julgamento, pode ser compensada, sem maiores despesas, pela intensificação da severidade da pena para os (poucos) infratores capturados”[11]. Nota-se que Posner analisa a eficiência da norma jurídica – que derivaria da maximização da riqueza – sem agregar, nesse passo, a consideração de qualquer valor moral.

Ler esses fragmentos da obra de Posner faz lembrar os juízes que dizem estar perdendo tempo com julgamentos tais ou quais, ou empresas que não enxergam a proteção ao meio ambiente de trabalho como um ativo, mas sim como um custo de pessoal. Em verdade, há formas menos amorais de inter-relacionar a Economia e o Direito.

A impossibilidade de precificar bens meritórios (Guido Calabresi)

Não causa estranheza que Posner[12] tenha enfrentado a crítica de juristas que, a exemplo de Ronald Dworkin, opuseram-se fortemente à premissa de que a maximização da riqueza seria um valor ético per se, a ser considerado na atribuição de sentido ou alcance à norma jurídica. À análise econômica caberia, porém e segundo vertente teórica distinta da de Richard Posner, ponderar também acerca de opções políticas que envolvem variáveis de conteúdo propriamente ético, a exemplo de quando Calabresi menciona o paradoxo da suficiência:

“[…] o paradoxo consiste na vontade da sociedade de gastar uma grande quantidade de recursos para salvar uma pessoa que se encontra frente a um perigo dramático em lugar de utilizar esses mesmos recursos para evitar desastres recorrentes que sacrificam muito mais vidas”[13].

Calabresi explica que tal paradoxo acontece porque a primeira solução (a de assegurar incondicionalmente o direito à vida) “contribui justamente para reafirmar o princípio segundo o qual ‘a vida não tem preço’ […] especialmente se confrontado com muitas outras decisões (de caráter público ou privado) que, de modo menos chamativo, atribuem um preço à vida de maneiras que entendemos moralmente repugnantes”.

Em nota, Calabresi esclarece: “damos, como exemplos, nossa vontade como sociedade de gastar grandes somas de dinheiro para salvar […] um refém; e a vontade de uma empresa de mineração de pagar somas extravagantes para salvar aqueles poucos mineiros que se encontram aprisionados, mas sem a vontade de gastar uma soma comparativamente menor para salvar mais vidas por meio da implementação de medidas preventivas de segurança”; ou “gastar milhões para salvar a tontos que fizeram a escolha de cruzar o Atlântico em um bote de remos […]”[14].

O mesmo autor, com vasta e reconhecida experiência como magistrado e professor da Yale Law School, enfatiza que não somente a vida se revela como um “bem meritório” (insuscetível de precificação), dado que também assim se classificam aqueles bens “em que a objeção quanto à sua mercantilização não consiste em que seja odioso reconhecer-lhes um preço, senão que resulta execrável que a titularidade e o emprego desses bens sejam atribuídos através da distribuição da riqueza em voga, que é altamente desigual”. Seriam bens meritórios, dessa segunda categoria, o direito de prestar ou não o serviço militar, especialmente em tempos de guerra, o de ter filhos, o de obter ou ceder partes do próprio corpo (sangue, óvulos e sêmen, medula óssea, rins etc.) ou mesmo o de contribuir financeiramente para campanhas eleitorais[15].

Nesse reencontro da Economia com a eticidade que ilumina a razão jurídica, há alguns aspectos da doutrina de Calabresi que têm inegável importância. O primeiro deles está relacionado à distinção entre a Análise Econômica do Direito e a sua vertente mais conhecida como Direito e Economia (ou Law & Economics, doravante L&E). Esclarece Guido Calabresi que “enquanto na Análise Econômica do Direito (AED) é a Economia quem domina e o Direito resulta ser o objeto de análise e crítica, no Direito e Economia (L&E) a relação é bilateral. A teoria econômica examina o Direito, porém, em não poucas vezes, essa análise nos guia na direção de promover mudanças na teoria econômica, no lugar de gerar tal mudança no Direito ou na maneira como a realidade jurídica é descrita”[16].

Em rigor, a adoção da Análise Econômica do Direito, com a influência bilateral que Calabresi atribui, como visto, à vertente doutrinária da Law & Economics, somente faz sentido deontológico se incorporar os direitos humanos e fundamentais como variáveis analíticas, sob pena de comprometer-se a própria subsistência dos direitos assegurados a minorias, pessoas ou grupos vulneráveis, direitos esses presentes, por exemplo, nas normas do Direito do Trabalho, do Direito do Consumidor e do Direito à Proteção de Dados. Como bem assinala Calabresi:

“Os conhecimentos que possuem os economistas permitem que eles sejam especialmente capazes de prestar ajuda aos legisladores. Contudo, a aplicação desses conhecimentos nas citadas áreas (jurídicas) exige que os economistas estejam dispostos a fazer coisas a que tradicionalmente se têm mostrado resistentes. As indicações sobre quais mudanças de valor induzidas pelo Direito são desejáveis não têm por que pressupor – como alguns autores bem poderiam argumentar – uma maior tolerância à imprecisão. Não obstante, elas exigem que quem faça esse tipo de análise postule ou assuma, para qualquer sociedade dada, um número limitado de valores fundamentais cuja inter-relação e maximização conjunta podem ser abordadas pela análise econômica”.[17]

Há, na contemporaneidade, uma onda de flexibilização da tutela ao trabalho humano sob o pretexto de que estaria a impô-la, como novidade irresistível, a Análise Econômica do Direito. Nessa circunstância, cabe portanto indagar, ainda assim, quais os direitos que não estariam sujeitos à régua da eficiência econômica porquanto atenderiam, como aponta Calabresi, às expectativas de valores éticos fundamentais.

Dito de outro modo: quais direitos trabalhistas consubstanciariam, na dicção do artigo 6.2 do Protocolo de São Salvador (PSS), a garantia da plena efetividade do direito ao trabalho? Como norma supralegal, mencionado tratado de direitos humanos (PSS) limita os efeitos de dispositivos legais que, à semelhança do artigo 2º, I da Lei n. 13.874/2019, exaltem, sem peias, “a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas”. “Entre o patrão e o empregado”, ensina-nos Lacordaire, “a liberdade escraviza e a lei liberta”.

Análise econômica do direito ao trabalho digno e do direito a ter direitos na era da inteligência artificial

Retomemos a pergunta: quais direitos do trabalhador estariam imunes à análise da eficiência econômica? Que outros “bens meritórios”, ou insuscetíveis de precificação, estariam ambientados em uma relação de emprego? Quais deles, em outras palavras, seriam inerentes à “valorização do trabalho humano” em uma ordem econômica e social que, segundo o artigo 170 da Constituição, “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”?

Entre tantos, pretendemos ilustrativamente realçar, como indene à análise de eficiência econômica, o direito seminal de ser reconhecido como empregado, que equivale ao direito básico de ter acesso a direitos, vale dizer, acesso a todos os direitos assegurados àqueles que prestam trabalho subordinado, oneroso, pessoal e não eventual. O direito de ser empregado não pode estar condicionado à vontade do empregador, ou ao contrato formal, pois em uma relação assimétrica – como de fato é qualquer relação de emprego – tal importaria converter em opcional, para o empregador, a contratação do empregado como empregado, isso a comprometer a subsistência do próprio Direito do Trabalho.

Lembremos, porque oportuno, que na esteira da recente sublimação da liberdade econômica sobreveio a modificação do artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[18], a preceituar que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. E qual a consequência prática de decisão judicial que, como visto, estaria a impedir que o trabalhador, a laborar nas condições previstas no artigo 3º da CLT (como empregado, portanto), tenha garantidos os direitos previstos para os que, como trabalhadores, protagonizam relações de emprego?

É possível ponderar: a repercussão prática de uma decisão com tal conteúdo será não somente a de excluir cidadania, ou seja, excluir de empregados o direito de vindicar as tutelas jurídica e judicial a eles asseguradas em tratados, Constituição e leis da República, mas terá também o efeito transcendente de desestruturar a ordem fiscal fundada na predominância do emprego – aí incluído o custeio do sistema de financiamento imobiliário (FGTS), a assistência social, a previdência pública e toda a seguridade social, além do imposto de renda com contribuição diferenciada quando há emprego.

Todo o conjunto de valores éticos convencionais, constitucionais ou legais, que emprestam sentido às normas do Direito do Trabalho, não terão razão de ser, ou de subsistir, se a validade ou a eficácia dessa tutela ao trabalho decente estiver condicionada à premissa de que não pode gerar ônus para outras pessoas ou entes (empregador e agentes econômicos que integram as cadeias de suprimento) que aspiram à ampla liberdade dos mercados.

O mesmo sucederá se o Poder Judiciário, ao fazer da liberdade econômica um axioma jurídico incontrastável, fixar a tese de que os empresários podem eleger a natureza jurídica que pretendem atribuir aos contratos de trabalho (afastando a regência do Direito do Trabalho se enquadrarem seus empregados, discricionariamente, como trabalhadores autônomos, eventuais ou não assalariados). No mundo das assimetrias em que se aloja o habitat laboral, todo o sistema de tutela jurídica ao trabalho humano resultará igualmente comprometido.

Os efeitos práticos da restrição ao direito de ser empregado (quando presentes os requisitos do emprego, mas este não convier economicamente ao empregador) são ainda mais gravosos quando alcançam, virtualmente, todos os trabalhadores que são hoje e progressivamente comandados por algoritmos atrelados à inteligência artificial. Em parêntese, há aqui a alusão a empregados submetidos a gerenciamento algorítmico na agricultura de precisão, na indústria que adota o sistema just in time, no comércio eletrônico e no crowdworking, seja este off-line (como o realizado por motoristas e entregadores cujo trabalho é organizado, dirigido, precificado e sancionado por plataformas digitais) ou online (a exemplo do que se desenvolve por demanda a ser atendida por qualquer trabalhador conectado em qualquer local do planeta).

Afastar a existência de subordinação quando a vontade patronal tem o suporte de inteligência artificial, plataforma digital e algoritmos tem, portanto e potencialmente, a consequência prática de neutralizar a tutela jurídica reservada ao trabalho humano do devir e do porvir. Mesmo a suposição reducionista de que estaria a subordinação algorítmica presente apenas no crowdworking off-line (fenômeno conhecido, por metonímia, como uberização) não impediu que tribunais de quase todo o Ocidente, atentos às consequências humanistas e econômicas do que estavam a decidir, afirmassem a existência de emprego entre as empresas gestoras de plataformas digitais e os motoristas ou entregadores a seu serviço.

Conforme recentíssima pesquisa jurisprudencial desenvolvida, no direito comparado, pela professora Teresa Coelho Moreira[19], da Universidade de Minho (Portugal), em vários países a polêmica sobre a natureza do vínculo repercutiu inicialmente em decisões judiciais antagônicas, mas se pacificou, após longa cizânia jurisprudencial, quando reconhecida a existência de emprego pela Ontario Labour Relations Board, no Canadá, em 25/fev/2020[20]; pela Corte de Cassação da França em 28/nov/2018 (quanto a entregadores da Take Eat Easy) e em 4/mar/2020 (quanto a motoristas da Uber); pela Corte de Cassação da Itália em 24/jan/2020; pela Corte de Apelações do Estado de Nova Iorque em 26/mar/2020[21] e pela Corte Distrital Norte da Califórnia em 11/mar/2015[22]. Alguns países, como Espanha[23] e Portugal[24], já converteram em lei essa presunção de emprego.

Ao início de janeiro de 2024, a Secretária do Trabalho do Governo dos Estados Unidos anunciou nova diretriz a prevalecer em citado país, a partir de 11 de março desse mesmo ano, segundo a qual os trabalhadores que prestam serviço de transporte ou entrega mediante aplicações tecnológicas poderão ser classificados não mais como trabalhadores autônomos (independent contractors) e sim como empregados (employees), regidos pela lei que regula a relação de emprego nos EUA (a Fair Labor Standards Act), a depender de estarem presentes alguns elementos factuais característicos do emprego, com ênfase para o grau de controle da companhia sobre as condições de trabalho e, noutra perspectiva, a real intensidade com que a plataforma proporciona o empreendimento individual (entrepreneurial opportunity)[25].

Como pano de fundo, uma construção jurisprudencial em sentido contrário, que paradoxalmente sublime a autonomia contratual em negócios assimétricos[26], sublima em rigor o argumento – marcadamente ingênuo – de que os livres mercados remunerariam adequadamente os agentes econômicos na medida de suas contribuições para a economia. Em artigo publicado acerca da desregulação do mercado de trabalho, Ana Frazão[27] enumera as razões que fazem inconsistente essa linha de argumentação, sustentando, entre o mais, que a crítica à confiança incondicional na análise de eficiência econômica há de insistir no aspecto de que as teorias econômicas não são neutras, mas abraçam importantes vieses ideológicos. Em igual sentido, pontua Calabresi:

“Para muitos profissionais modernos da Análise Econômica do Direito, a teoria é de Chicago ou de Viena. Mas precisamente o mesmo enfoque pode utilizar-se dentro da teoria marxista. Em cada caso, existe uma teoria ‘escolhida’; o mundo jurídico é avaliado pelo prisma dessa teoria e se o mundo nele não se encaixa é descartado, condenado inclusive, enquanto que os profissionais na matéria esperarão por uma realidade que se encaixe na teoria escolhida”[28].

A prevalecer todo esse conjunto de ideias, não haveria como remeter qualquer resolução jurisdicional ao que preconizam algumas teorias econômicas – que condicionariam a eficácia da norma jurídica à maximização da riqueza ou a outro critério supostamente ascético – para desse modo suprimir-se a elástica gama de direitos humanos assegurada a trabalhadores em condição de emprego. Até mesmo a citada Lei 13.874/2019, promulgada em quadra histórica de ampla suscetibilidade a impulsos excessivamente libertários, prediz que a liberdade de desenvolver atividade econômica deve observar a legislação trabalhista (art. 3º, II, c) e que a supremacia do negócio jurídico está limitada pelas normas de ordem pública (art. 3º, VIII).

Logo, à pergunta sobre quais os direitos relacionados ao trabalho cuja eficácia estaria condicionada à sua eficiência econômica, respondemos que, por exclusão, estão a salvo todos aqueles direitos de matriz convencional, constitucional ou legal que se inspiram na promoção da dignidade humana em ambiente laboral, incluindo o direito de postular em juízo o reconhecimento da condição legal de empregado com vistas à titularidade desse conjunto civilizatório de direitos.


[1] O STF, na ocasião, desconsiderou a experiência acumulada pela Justiça do Trabalho e não raro retratada em processos que ali tramitam, desconsiderando também pesquisas, em sentido inverso ao do julgamento, apresentadas naquele processo por estudiosos e instituições de alto conceito e rigor científico (UFBA, UFSC, CESIT-UNICAMP).

[2] Disponível em:  https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15341103626&ext=.pdf. Acesso em 15/jan/2024.

[3] Sobre essa distinção, ver POSNER, Richard A. A Economia da Justiça. Tradução de Evandro Ferreira e Silva, com revisão de Aníbal Mari. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, pp. 105-110.

[4] A propósito do movimento conservador, que se opôs à razão universal dos protoliberais iluministas nos albores da Revolução Francesa, ver HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras. Edição do Kindle, p. 9).

[5] Jeremy Bentham (1748-1832) é reconhecido como o precursor do utilitarismo, segundo o qual o ser humano busca sempre o prazer e evita a dor, visando assim e invariavelmente ao seu bem-estar. Ação útil há de ser, portanto, aquela que visa à maximização da felicidade. Dando curso a essa ideia, John Stuart Mill (MILL, John Stuart. Sobre A Liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Edição do Kindle) inicialmente a justifica, pois “sempre que há uma classe dominante, a moralidade do país resulta, em grande parte, dos interesses e do sentimento de superioridade desta classe” (p. 29).

[6] Segundo Habermas (HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia. v. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 168): “A compreensão discursiva do sistema dos direitos conduz o olhar para dois lados: De um lado, a carga da legitimação da normatização jurídica das qualificações dos cidadãos desloca-se para os procedimentos da formação discursiva da opinião e da vontade, institucionalizados juridicamente. De outro lado, a juridificação da liberdade comunicativa significa também que o direito é levado a explorar fontes de legitimação das quais ele não pode dispor”.

[7] Op. cit. O autor sustenta essa dicotomia riqueza/utilidade a partir da página 72 de sua obra, sendo essa a fonte bibliográfica adotada em seguida.

[8] Posner, op. cit., p. 74. Posner defende que em alguns casos o “mercado não explícito” se apresenta como um “mercado hipotético”, a exemplo de quando o juiz está na contingência de mensurar o prejuízo que alguém causou a um bem que, danificado como está, não pode ser avaliado concretamente pelo mercado real.

[9] Op. cit., pp. 227 e seguintes. A crítica ao critério de Kaldor-Hicks está antes, na p. 111.

[10] Posner (op. cit., p. 234) explica o que seriam os custos informacionais: “Como não há, nas sociedades primitivas, polícia ou outros órgãos públicos de investigação, e como o custo da informação é geralmente alto de qualquer forma, seria de esperar que a probabilidade de punição fosse muito baixa e, consequentemente, que o valor ideal da indenização por assassinato fosse bem alto”.

[11] Op. cit., p. 235.

[12] Resposta de Posner a Dworkin na obra citada, p. 128.

[13] CALABRESI, Guido. El futuro del Derecho y Economía: Ensayos para la reflexión y la memoria (Spanish Edition). Tradução livre. Lima (Peru): Palestra Editores. Edição do Kindle, pp. 30-31.

[14] Ibidem.

[15] Op. cit., p. 103.

[16] Op. cit., pp. 27-32.

[17] Op. cit., pp. 282-283.

[18] Decreto-lei n. 4.657/1942, com a alteração introduzida pela Lei n. 13.655/2018.

[19] MOREIRA, Teresa Coelho. Direito do Trabalho na Era Digital. Coimbra: Almedina, 2023, 2ª edição, passim. Ver também: CARELLI, Rodrigo de Lacerda. OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. As Plataformas Digitais e o Direito do Trabalho: como entender a tecnologia e proteger as relações de trabalho no Século XXI. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021, p. 146.

[20] Caso Canadian Union of Postal Workers, Applicant vs. Foodora Inc. d.b.a. Foodora, Responding Party

[21] Caso Postmates, Inc.

[22] Caso O’Connor vs. Uber Technologies, Inc. O julgamento fez a Califórnia editar lei que obrigava as empresas Uber e Lyft a contratar seus motoristas como empregados, estando a posterior revogação de tal lei sob apreciação judicial.

[23] Cfr. Real Decreto-ley n. 9/2021.

[24] Cfr. art. 12-A do Código de Trabalho de Portugal, acrescido pela Lei n. 13/2013.

[25] Notícia disponível em: https://www.washingtonpost.com/business/2024/01/09/gig-workers-new-labor-rules-independent-contractors/71b84dce-aede-11ee-9a32-5c9e6aa28b3b_story.html. Também disponível em: https://fortune.com/2024/01/09/biden-labor-department-rule-independent-contractors-gig-economy-uber-lyft-doordash/ ; e em:  https://55content.com.br/politica/eua-fixa-criterios-para-definir-se-motorista-e-ou-nao-empregado-de-app/ . Acesso em 13/jan/2024.

[26] Pomos de lado, porque sofistico e por experiência própria, o argumento de que trabalhadores intelectuais ou comissionados definem o conteúdo de seus contratos de trabalho, sem se submeterem à preordenação empresarial.

[27] FRAZÃO, Ana. “Desregulação do mercado de trabalho e flexibilização dos direitos trabalhistas – Parte II”. In: site Jota, 8/jul/2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/desregulacao-do-mercado-de-trabalho-e-flexibilizacao-dos-direitos-trabalhistas-parte-ii-08072020. Acesso em 16/jan/2024.

[28] Op. cit., p. 33. Em nota de rodapé, o autor enfatiza: Embora muitos operadores jurídicos creiam que o movimento Law & Economics apresente sempre as mesmas características e perfis, o certo é que não é assim. Cada escola abraça postulados inteiramente distintos (econômicos, filosóficos, políticos etc.) que levarão a resultados substancialmente diferentes”.