Coronavírus

Leia a íntegra do parecer da OAB contra a possibilidade de estado de sítio

É inconstitucional decretar estado de sítio em face da atual emergência do novo coronavírus

OAB considera inconstitucional decretar estado de sítio em razão do coronavírus. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Diante da circulação de notícias no dia de hoje, 20 de março, que reportam que a Presidência da República teria solicitado de alguns ministérios parecer sobre eventual decretação de estado de sítio em razão da pandemia do coronavírus (COVID-19)1, tendo em vista a gravidade e a repercussão jurídica da matéria, a Ordem dos Advogados do Brasil, por meio da sua Presidência e da sua Procuradoria Constitucional, vem apresentar considerações preliminares acerca da constitucionalidade da medida.

O estado de sítio compõe, ao lado do estado de defesa e da intervenção federal, o nosso chamado “sistema constitucional de crises”. São instrumentos excepcionais previstos e regulados pela Constituição com o escopo de defender a ordem jurídica em momentos de anormalidade. Sob a égide do Estado de Direito, não se admite o uso de mecanismos de exceção com fundamento em “razões de Estado”, invocadas segundo o arbítrio de governantes autoritários, mas estritamente com o objetivo de manter ou de restabelecer a própria ordem constitucional, com o mínimo de sacrifício de direitos e de garantias constitucionais. Por isso há a previsão de limites e de controles rigorosos sobre as hipóteses de cabimento e sobre os poderes da crise.

A medida do estado de sítio, especificamente, está prevista em nosso sistema jurídico desde a Constituição de 1891. Durante os anos da Primeira República, houve um uso frequente e abusivo do estado de sítio pelos sucessivos Presidentes, que empregavam a medida como verdadeiro instrumento de governo.2 Assim, o chamado “constitucionalismo de sítio” autorizava a suspensão de garantias constitucionais para reprimir contestações sociais à ordem vigente, como greves de trabalhadores.3

Em nossa ordem constitucional de 1988, uma série de cautelas e de limites jurídicos e institucionais visam a adequar um eventual recurso ao estado de sítio à regra democrática. Como todos os instrumentos excepcionais, o estado de sítio é regido pelos princípios da excepcionalidade, da necessidade, da temporariedade e da obediência estrita à Constituição Federal, além de se submeter a controles políticos e judiciais.

A excepcionalidade, que não pode se confundir com arbitrariedade, restringe o estado de sítio a situações absolutamente atípicas e anormais. O princípio da necessidade estabelece que o recurso à medida somente se justifica na ausência de meio menos gravosos, apresentando-se como ultima ratio na defesa do Estado Democrático de Direito. Por sua vez, a temporariedade impõe a fixação de um prazo determinado de vigência do estado de sítio, e a obediência estrita à Constituição requer o cumprimento diligente e rigoroso de todos os termos, procedimentos e condições previstas.4

Pelo art. 137 da CF/1988, as hipóteses de cabimento do estado de sítio são duas: “I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”. Para decretar a medida, o Presidente da República deve ouvir previamente o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, bem como solicitar autorização ao Congresso Nacional, que decide sobre o pedido por maioria absoluta.

O estado de sítio, como indica o inciso I do art. 137, é mais gravoso do que o estado de defesa, em regra delimitado em sua abrangência territorial e em seus efeitos. Já a decretação de estado de sítio alcança todo o território nacional e permite restrições mais graves ao exercício de direitos, como a relativização da inviolabilidade de correspondência e do domicílio, do sigilo das comunicações e da liberdade imprensa, nos termos do art. 139 da CF/1988.

À luz dos princípios norteadores do nosso sistema constitucional de crises e das regras sobre estado de sítio previstas na Constituição, o recurso a tal medida extrema no contexto atual se mostra flagrantemente inconstitucional e descabido. Não há um cenário de impossibilidade de atuação do Estado dentro das regras democráticas que autorize a suspensão da própria Constituição.

Não há dúvida de que a situação atual produz sensações de pânico e de temor na população. Esses sentimentos não podem, no entanto, ser explorados para autorizar medidas repressivas e abusivas que fragilizem direitos e garantias constitucionais. A resposta esperada do Estado não deve ser a ampliação de seu arsenal repressivo, mas sim a expansão de sua capacidade de assistência e de proteção social dos cidadãos, principalmente os mais vulneráveis.

Nesse sentido, as diversas autoridades públicas já têm agido de maneira concertada no interesse de debelar a crise, a exemplo da recente reunião entre o Presidente do Supremo Tribunal Federal, os Presidentes das Casas Legislativas e o Ministro da Saúde, da qual resultou a modificação dos fluxos de funcionamento do Poder Judiciário e do Poder Legislativo, para a proteção de seus integrantes e servidores, sem que se comprometesse o funcionamento dos órgãos públicos.

Ademais, a recente aprovação de projeto de decreto legislativo para declarar estado de calamidade pública, que autoriza a realização de gastos extraordinários e viabiliza deliberações remotas, é medida adequada para resolver desafios institucionais que possam vir a ser enfrentados, diferentemente das restrições decorrentes de decretação de estado de sítio.

Por fim, cabe fazer uma necessária distinção. Não é possível comparar as restrições abusivas que decorreriam da decretação de estado de sítio às medidas restritivas sobre direitos, como a liberdade de circulação e de reunião, fundamentadas em questões médicas e sanitárias. A legitimidade dessas medidas decorre da autoridade sanitária que as determina com foco exclusivo na prevenção e na contenção de um vírus caracterizado pela enorme velocidade de contágio.

Por todo o exposto, manifestamo-nos, em análise preliminar da matéria, pela inconstitucionalidade de qualquer tentativa de decretação de estado de sítio em face da atual emergência do novo coronavírus (COVID-19), que só serviria como instrumento de fragilização de direitos e de garantias constitucionais, sem qualquer utilidade e efetividade para fazer frente às reais demandas e desafios que a situação impõe ao país.

Brasília, 20 de março de 2020.

Felipe Santa Cruz Oliveira Scaletsky

Presidente Nacional da OAB

Marcus Vinicius Furtado Coêlho

Presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais