Entrevista

O plano do jurídico do BNDES para tornar o Brasil uma potência verde

Em entrevista ao JOTA, diretor jurídico Walter Baère fala sobre ESG, transformação tecnológica e o conhecimento gerado pela área

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Walter Baère de Araújo Filho, diretor jurídico do BNDES / Crédito: Waldemir Barreto/Agência Senado

No ambiente de investimentos, as regras ambientais e jurídicas são vistas dentro do “custo Brasil”. Mas o novo diretor jurídico do BNDES, Walter Baère de Araújo Filho, defende que chegou a hora de enxergar as oportunidades que regras bem desenhadas podem apresentar. E o momento seria este: Baère, que foi presidente do conselho do banco, diz que uma nova industrialização do país é possível a partir de vantagens como a energia limpa brasileira e demandas externas para diversificar cadeias de suprimentos. Dos grandes investimentos ao fomento aos pequenos negócios, na indústria e na inteligência artificial, ele cita sem parar exemplos para encaixar o jurídico como propulsor do crescimento, longe do papel de “setor do não” que um dia já foi a realidade da área nas empresas e bancos.

Na visão de Baère, o Brasil só tem um caminho para atingir o desenvolvimento: investir forte nos conceitos ESG. “O mundo está abraçando essa agenda e nós temos uma janela de oportunidade que talvez não vai se repetir”, avalia. “Não existe desenvolvimento no Brasil fora desse contexto e fora dessa agenda”.

Essa é uma preocupação candente no banco. De acordo com o profissional, não há hoje nenhum projeto que seja aprovado pelo BNDES que não tenha um monitoramento e uma contagem de impacto em termos de emissão de carbono ou de contribuição para que o carbono não seja emitido.

Mas só isso não basta. Atualmente o país tem uma matriz energética já com 83% de energias renováveis e limpas, e, portanto, afirma o diretor jurídico do banco, estamos muito mais próximos do que os outros países de atingir 100% de matriz limpa e renovável. “ Isso pode gerar uma oportunidade única de empregabilidade no Brasil porque nós podemos fazer uma industrialização em bases verdes”, avalia.

Hoje o banco tem uma quantidade significativa de profissionais da área jurídica e, na visão de Baère, os operadores jurídicos serão justamente os primeiros afetados pela inteligência artificial generativa, como o ChatGPT.  

“O advogado teórico, dogmático, vai perder o espaço para as máquinas e para o machine learning”, avalia. “E qual espaço irá sobrar para o advogado? É justamente este mais nobre de humanizar as relações jurídicas e de aproximar o Direito da sociedade, gerando valor, gerando desenvolvimento, olhando para os projetos com a visão de efetivação real dos direitos. E não olhando para os processos sob a perspectiva dogmática e teórica porque isso a inteligência artificial vai fazer com muito mais eficiência do que nós todos.”

Leia a entrevista com Walter Baère, diretor jurídico do BNDES.

A carreira jurídica representa uma grande parte da força de trabalho do BNDES. A que isso se deve? E quais são os principais desafios da área jurídica hoje no banco?

Acredito que isso tenha a ver com a realidade política e institucional do Brasil, em que a força de trabalho jurídica é fundamental para a realização e concretização dos projetos, ou simplesmente eles não andam. O fator de segurança jurídica é fundamental num banco de desenvolvimento, que analisa a operação desde a fase do cadastro, do guichê, da habilitação dos clientes, sob a perspectiva jurídica, é claro, até a realização, em si, dos projetos. 

O primeiro ponto que tem que ser debatido, e acho importante essa visão, é que o desenvolvimento é um dos objetivos fundamentais da República. Está lá no artigo 3º, inciso 2, da Constituição. O BNDES é um um braço executor da intervenção do Estado na economia, um braço operacional desse direito fundamental ao desenvolvimento.

Quando você analisa o artigo 170 da Constituição, essa intervenção tem que ser, primeiro, para a promoção de desenvolvimento, e este desenvolvimento tem que gerar dignidade para todos. É o que está posto no artigo 170, caput, da Constituição. 

Então, a própria existência do BNDES só se justifica na medida da promoção de um desenvolvimento inclusivo, para que todos os brasileiros tenham dignidade na sua existência, com empregabilidade com mais qualidade, com geração de valor nos nossos produtos e nas nossas cadeias produtivas. É preciso ajudar na formação de mão de obra e ajudar o Brasil a aproveitar a oportunidade que nós temos de sermos, efetivamente, a primeira potência ambiental do mundo. 

O mundo caminha para uma agenda que é uma agenda climática. A humanidade vai sofrer os efeitos das alterações climáticas e isso tem total relação com a agenda de desenvolvimento. 

Não se pode falar em desenvolvimento sem resiliência climática, sem tratar de transição energética, sem tratar de sustentabilidade. A agenda ESG está no centro da  estratégia do BNDES como promotor de desenvolvimento.

E é necessário olhar para o desenvolvimento social, ambiental, e também para a governança. Não existe promoção de desenvolvimento sustentável e ambientalmente correto se você não tiver uma governança eficiente, transparente e ética. 

E nesse sentido, as estruturas jurídicas dos bancos como um todo, em especial de um banco de desenvolvimento, servem para isso. Para reforçar o pilar da governança e permitir que as estruturas operacionais do banco gerem valor para o nosso cliente, que é a sociedade brasileira, ansiosa por uma sociedade mais igual, por uma sociedade em que o meio ambiente não só seja preservado, mas seja também fator de promoção do desenvolvimento. 

Ou seja, na visão do senhor, o jurídico tem um papel fundamental neste processo.

O jurídico é a ponta da governança em que essa agenda começa e termina. A segurança jurídica, a transparência, a atuação das estruturas jurídicas, o diálogo jurídico-institucional entre os Poderes, e o controle são essenciais. O controle é fundamental para a geração do desenvolvimento com responsabilidade, com ética, com a promoção da alocação eficiente dos recursos. Isso começa com o braço da governança. Não existe agenda ESG sem o G da governança. Quando se reforça o pilar da governança, é possível realizar, concretizar, e densificar esse conteúdo que é muitas vezes debatido do ponto de vista acadêmico, do ponto de vista teórico e abstrato. 

Quando se fala em direitos fundamentais, o debate é sempre muito abstrato. No BNDES esse debate é concreto em cada operação que nós fazemos. Porque cada operação tem um ator envolvido e tem uma vertente de gerar valor para a sociedade, de gerar desenvolvimento. Queremos fazer com que o jurídico, aproximado das áreas operacionais do banco, capture essas oportunidades para tenhamos uma agenda efetivamente inclusiva de promoção de desenvolvimento, amplificando as oportunidades, atuando nos segmentos que não é só das grandes empresas, mas olhando também para o micro, pequeno e médio empreendedor, que é um percentual do ponto de vista quantitativo maior em empregabilidade do que o restante da economia. 

A nossa economia é fortemente sustentada por pequenos negócios. Ajudá-los a capturar as oportunidades da economia em transformação é um desafio para todos os países. O BNDES, como banco de desenvolvimento, é o braço operacional em que tudo isso vai se dar – desde o desenho da nossa política de crédito até a realização da operação na ponta, o jurídico tem a presença fundamental de acompanhar e dar segurança para que essas operações efetivamente aconteçam. 

Tivemos uma mudança recente de governo e consequentemente na gestão do banco. Quais são os principais objetivos da nova gestão e de que forma o jurídico tem atuado para concretizá-los?.

Promover uma agenda de crédito no Brasil, vocacionada ao desenvolvimento ambiental. O BNDES precisa ser verde, industrializante, promotor de maiores oportunidades e maior igualdade, além de ser digital.

Digital de que forma? 

A inteligência artificial já demonstra seu potencial no dia a dia, com um embrião: o Chat GPT. Este desenvolvimento tecnológico, de linguagem complexa, afeta o coração do que é o mundo jurídico. 

Como é a atuação do advogado? Ele traz esse mundo do dever ser normativo, deontológico, e faz a adequação à realidade, interpreta essa linguagem própria do Direito. Esses modelos de linguagem avançados vão fazer esse papel. O Direito talvez seja a primeira profissão que vai passar por profundas transformações e realocação de propósito. 

Onde a tecnologia vai auxiliar? Na compreensão do fenômeno normativo, é bem possível que a inteligência artificial substitua com muito mais eficiência o ser humano. Mas no fator ético, de mediação, de promoção de objetivos fundamentais, como o desenvolvimento, de promoção de um diálogo social para a geração de valor, essas funções ainda não vão ser substituídas pela máquina. É possível que o advogado que pratica esforço repetitivo ou só entende a norma como um único eixo de atuação seja em breve substituído por esses modelos complexos de linguagem. 

Esses modelos de linguagem complexos, como é o Direito, vão ser os primeiros dominados pela inteligência artificial. E aí qual será o papel que sobrará para o advogado? Fica o mais relevante, que é usar essas novas ferramentas e essa nova modelagem de linguagem complexa para afetar positivamente a vida das pessoas. Para densificar esse ideal de justiça no dia a dia. Para mim, o advento da tecnologia vai deixar para as máquinas as operações jurídicas, que são normalmente a parte vilanizada da advocacia, que é aquela do advogado muito técnico, com linguagem rebuscada, que tem uma certa insensibilidade em relação à realidade, em relação aos clientes. Esse advogado está superado. 

E para o banco é fundamental liderar essa agenda de uso desses modelos de linguagem avançada e de inteligência artificial. A gente tem um projeto interno de lançamento de um edital para a contratação de uma lawtech, que vai pegar esses modelos de inteligência artificial para automatizar boa parte das nossas operações. 

Hoje o banco não usa a inteligência artificial?

A gente está em estudo interno para liderar esse projeto. Usar o poder de compra do Estado para promover inovação tecnológica também é gerar desenvolvimento. A gente não quer fazer uma contratação tradicional de buscar uma empresa de prateleira. Queremos identificar uma startup com potencial e fazer uma contratação com base na Lei das Startups com algum conteúdo de inovação e com alguma encomenda tecnológica para nos ajudar a liderar esse processo de transformação do meio jurídico por meio do uso da tecnologia da inteligência artificial. 

E qual espaço irá sobrar para o advogado? É justamente este mais nobre de humanizar as relações jurídicas e de aproximar o Direito da sociedade, gerando valor, gerando desenvolvimento, olhando para os projetos com a visão de efetivação real dos direitos. E não olhando para os processos sob a perspectiva dogmática e teórica porque isso a inteligência artificial vai fazer com muito mais eficiência do que nós todos.

A inteligência artificial tem o potencial de transformar o Direito para que o profissional jurídico seja, por excelência, aquele responsável pela humanização das relações jurídicas e promoção do diálogo real do Direito com a sociedade. O advogado teórico, dogmático, vai perder o espaço para as máquinas e para o machine learning. 

Agora, essa mesma tecnologia tem um potencial grande de destruição de emprego, mesmo que seja uma destruição criativa. Vocês têm pensado, do ponto de vista jurídico, em como equilibrar o potencial destrutivo deste tipo de tecnologia levando em conta os financiamentos do BNDES?  É possível que, numa evolução criativa-destrutiva de empregos, o Direito consiga apontar caminhos para que essa nova economia também gere empregos? 

Isso está no centro dos debates em todos os países. Os países desenvolvidos têm debatido fortemente esse braço do re-skilling para gerar desenvolvimento: como é que você forma uma nova geração para lidar com essa realidade e garantir empregabilidade? O BNDES tem atuação na área social e na área educacional, tem uma agenda para a inclusão digital que é importante. Estamos talvez alguns passos atrás como país. Nós não temos sequer as nossas escolas públicas conectadas. Um dos objetivos estratégicos do banco é tentar promover a inclusão digital de uma geração inteira que vai lidar com essa realidade. 

Ao mesmo tempo, todo projeto hoje que entra no banco, é analisado sob a perspectiva socioambiental e nós contamos em termos de impacto em carbono o que aquele projeto representa. Em breve, a gente vai contar isso também em graus centígrados. 

O Brasil tem uma oportunidade única. Nós temos uma matriz energética já com 83% de energias renováveis e limpas, ou seja, estamos muito mais próximos do que os outros países de atingir 100% de matriz limpa e renovável. Isso pode gerar uma oportunidade única de empregabilidade no Brasil porque nós podemos fazer uma industrialização em bases verdes. Nós podemos vender para o mundo que a nossa base industrial e os nossos produtos, a partir da fonte energética, são mais verdes e sustentáveis do que do resto da indústria global.

Sobre a perspectiva da empregabilidade, essa revolução de transformação digital e da indústria 4.0, casada com essa agenda de sustentabilidade, pode gerar empregabilidade nas mais variadas formações. 

Vou dar um exemplo de oportunidade para o Brasil nessa agenda de transição energética: a manutenção de painéis fotovoltaicos. Nós temos talvez um novo pré-sal energético em termos de insolação solar no semi-árido nordestino, que é carente de empregabilidade. 

O BNDES tem uma linha de financiamento importante neste segmento, não?

Sim. Na verdade, o BNDES é responsável por boa parte dos financiamentos desse setor, 38% precisamente. O ganho de escala dessa indústria foi fortemente apoiado pelo BNDES. 

Em termos de empregabilidade, cada parque de painéis fotovoltaicos exige um esforço de manutenção que gera empregabilidade. E gera empregabilidade em áreas de incidência solar que tem um potencial de geração de energia muito grande. Hoje se fala no mundo, numa agenda estratégica que tem sido sintetizada num termo em inglês: power-shoring. 

Trata-se do uso do potencial da energia renovável para gerar cadeias de valor e uma industrialização em bases sustentáveis. Se a minha matriz energética é mais limpa e sustentável que a do resto do mundo, novas indústrias e novas cadeias de valor podem ser instaladas em bases sustentáveis e verdes. Os nossos produtos podem ser reconhecidamente mais sustentáveis do que os dos nossos competidores.

Isso pode gerar um ciclo virtuoso de novos investimentos que contrabalanceiam o risco de destruição de empregos da nova indústria 4.0. O Brasil não pode errar nessa agenda de desenvolvimento porque nós temos todas as condições materiais e empíricas para sermos a primeira potência verde do mundo.

Este é o único caminho para o desenvolvimento do Brasil. O mundo está abraçando essa agenda e nós temos uma janela de oportunidade que talvez não vai se repetir. O Brasil é uma democracia estável, tem condições empíricas, naturais e econômicas de se plugar às cadeias mundiais com o selo de economia verde. Não existe desenvolvimento no Brasil fora desse contexto e fora dessa agenda. 

Mas o senhor considera que o Brasil está preparado para isto neste momento?

É esse o debate fundamental para os braços de desenvolvimento do Brasil. A sociedade brasileira precisa abraçar essa ideia, precisa ter um esforço conjunto para que essa geração faça os investimentos necessários para a concretização do Brasil como essa potência verde. É factível, é palpável e o BNDES tem estratégia para ajudar e contribuir nesse debate para que a gente efetivamente saia do outro lado. 

Um relatório da Moody’s de 2022, que foi encomendado pelo próprio banco, dizia que o BNDES está bem à frente do setor em relação aos princípios ESG, mas tem que avançar em alguns pontos, como por exemplo no monitoramento da emissão de CO2 dos financiamentos que o banco faz. O senhor citou agora há pouco este tipo de monitoramento. Isto quer dizer que o banco já avançou nesse ponto? 

O banco já reagiu, já avançou e não há nenhum projeto que seja aprovado hoje pelo BNDES que não tenha um monitoramento e uma contagem de impacto em termos de emissão de carbono ou de contribuição para que o carbono não seja emitido. A política interna do banco, por exemplo, não permite mais o financiamento de usinas movidas a carvão ou atividades com pegada de carbono elevada. 

Ao lado disso, nós também temos uma agenda de identificar quais são os objetivos do desenvolvimento sustentável presentes em cada um dos projetos que nós apoiamos, financiamos e o BNDES apoia de diversas formas. Apoia tanto na parte de banco de serviços, na estruturação de projetos para gerar valor, mas também na concessão de crédito para projetos sustentáveis, para infraestrutura mais resiliente e verde.

Entre os países em desenvolvimento, o Brasil tem a matriz elétrica mais limpa do mundo. O nosso país tem o maior ativo bioambiental do mundo. Temos oportunidades de negócios usando o nosso bioma que são muito importantes. Não só no mercado de crédito de carbono, mas também na geração de novos negócios com essa pegada socioambiental. 

O BNDES produz um amplo e aprofundado conhecimento jurídico e recentemente criou um centro de estudos. Qual é a importância deste projeto? 

Debater Direito e Desenvolvimento é fundamental para a sociedade. Muitas vezes o mundo jurídico é prisioneiro de uma estrutura rebuscada de sua própria linguagem. Precisamos aproximar o tema do desenvolvimento da sociedade. Precisamos ajudar a transformar a linguagem técnica do dia a dia em informação. E esta informação precisa ser difundida  para que a sociedade entenda que a relação entre Direito e Desenvolvimento é o que vai fazer com que os direitos fundamentais prometidos pela Constituição, se materializem – e que sejam gerados emprego de qualidade, renda de qualidade, uma sociedade mais igualitária, mais justa, mais ambientalmente correta.

O objetivo da criação do centro de estudos sobre Direito e Desenvolvimento é provocar um debate entre o corpo jurídico do BNDES e a sociedade brasileira em temas relevantíssimos para que a gente defina estratégias mais inteligentes para a promoção real e não aquela fruição teórica dos direitos fundamentais. Sair da discussão teórica e da fruição em tese dos direitos para a fruição real e material dos direitos fundamentais. 

Como é que efetivamente a agenda de desenvolvimento vai gerar valor pras pessoas? Como é que a gente vai gerar mais projetos que amplifiquem o acesso a água potável, ao saneamento, que é um dos fatores de desenvolvimento que a gente relegou ao longo do tempo. Queremos promover um debate aberto, responsável, sem premissas ideológicas intransponíveis. Trazer todos os lados da discussão para que o BNDES seja um ator de promoção do debate de temas importantes da sociedade.