
A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 30 de outubro de 2022 tende a ser lembrada como um marco contra o autoritarismo no Brasil. Exatamente um ano depois do segundo turno das últimas eleições presidenciais, há evidências mais do que suficientes para afirmar que o então presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) tinha pretensões golpistas inclusive em caso de vitória, resultado que lhe foi negado por uma diferença de apenas 2 milhões de votos em relação ao vencedor.
Se a democracia prevalece com os problemas já conhecidos, notadamente as contínuas tensões entre os três Poderes, os quais estão longe de viverem em estado de harmonia entre si, o pior para defensores da ordem constitucional passou por ora. Porém, todo cuidado com o golpismo explícito ou enrustido é pouco. Por isso, é essencial que todos aqueles que conspiram contra a República e a Constituição sejam punidos nos termos da lei. Em relação a isso, Lula ou qualquer outro que fosse o presidente pouco poderia fazer um. Isso porque determinar eventuais punições de acordo com o devido processo legal é atribuição do Judiciário.
Lula, porém, tem condições de dar uma grande contribuição para a consolidação democrática — muito maior do que fez em seus dois primeiros mandatos com crescimento econômico e, sobretudo, avanço das políticas sociais, ampliando a tendência iniciada em governos anteriores sob a égide da Constituição de 88. Tal contribuição reside no fomento à reindustrialização do país. A experiência histórica indica que a diversificação de interesses econômicos é a antessala da democratização. Assim, a construção e a manutenção de diversidade no campo do mercado tornam-se condições sine qua non para a existência de uma sociedade civil vibrante e, portanto, de uma democracia que vai além da realização de eleições.
Boa parte das transformações que contribuíram para estruturar o coração do Bolsonarismo — ou seja, a bancada Bíblia, Bala, e Boi — está diretamente associada à dependência da exportação de commodities primárias, em particular produtos agrícolas — tendência interessantemente inaugurada sob Lula ao fim do seu primeiro mandato. Uma pauta de exportações diversificada com produtos de maior valor agregado tende a fazer não apenas o Executivo Federal, mas também o Congresso Nacional menos refém de interesses específicos.
Aqui não se caracteriza o agro como um setor necessariamente arcaico. O problema reside no fato de hoje haver uma dominância do agro em vez de um equilíbrio entre ele e outras atividades econômicas em particular a indústria. Não adianta reforma política que tenha como objetivo desidratar o poder do centram se as bases sociais para a eleição de representantes e até mesmo para cargos executivos continuarem as mesmas. O país com menor diversificação de interesses tem mais propensão a centralização do poder estando assim, portanto, sujeito às tentações autoritárias.
Lula ou qualquer outro presidente continuarão reféns do Centrão e até mesmo de parte do Bolsonarismo enquanto a configuração socioeconômica acima descrita prevalecer. Segundo informações de bastidores, haveria grande resistência no Senado a aprovar para a sucessão da recém-aposentada ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber o atual ministro da Justiça Flávio Dino (PSB). A bancada bolsonarista—relativamente pequena, mas bastante barulhenta—teria assim, na prática, poder de veto sobre um nome que, pelos cargos que já ocupou—dentre eles a posição de juiz federal—, preencheria com muito mais solidez que Cristiano Zanin, advogado de Lula indicado ao STF sem grande oposição durante sua sabatina, os requisitos de notório saber jurídico exigidos para ocupar uma vaga na corte.
Indicações políticas são mais que naturais em um sistema de compartilhamento de poder, como o nosso, em que a diversidade partidária se tornou num primeiro momento a maior expressão da democracia após o bipartidarismo forçado da Ditadura Militar. Porém, não obstante o surgimento de uma direita ideológica ainda que retrógrada em vários aspectos, seguem dominantes no Congresso parlamentares do chamado centrão. Talvez esse fato seja sintetizado pela máxima de Gilberto Kassab ao ressuscitar a sigla PSD no começo dos anos 2010, dizendo que o novo partido não seria nem de esquerda, direita ou centro.
A implantação progressiva de cláusula de barreira no Parlamento ao longo desta década tenderia a desidratar o centram se não fosse a configuração social permite que redes clientelistas existam independentemente de posicionamentos ideológicos. Mais do que eventuais bobagens que Lula possa falar sobre a situação fiscal do país, o Centrão é o grande entrave para termos um ajuste fiscal mais robusto sem que isso implique numa lógica de austeridade que negligencie a necessidade de investimentos e o ainda muito necessário o gasto social. Ignorar ambos pode acabar desestabilizando o sistema político e, portanto, as instituições.
Pacificar o Brasil tal como muitos dizem ser o necessário não implica empurrar a sujeira para baixo do tapete. Dito isso, uma postura de confronto aberto seria contraproducente. Aliás, o bolsonarismo no poder foi uma prova cabal disso. Lula 3 só passará à história além do feito de 30 de outubro de 2022 caso desafie o status quo — ainda que de modo discreto e, assim, exigindo que os arquitetos dessa empreitada corram o risco de não colher em vida. Seria a concretização do trecho mais contundente do último discurso de posse do presidente.
“Ao ódio, responderemos com amor. À mentira, com a verdade. Ao terror e à violência, responderemos com a lei e suas mais duras consequências. Sob os ventos da redemocratização, dizíamos: ditadura nunca mais! Hoje, depois do terrível desafio que superamos, devemos dizer: democracia para sempre!”. Para sempre, a luta pela democracia, portanto.