O direito à saúde foi reconhecido expressamente como um direito humano no cenário internacional após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e suas agências especializadas. Desde 1945, portanto, o direito à saúde passou a ser frequentemente mencionado em relevantes documentos internacionais, com destaque para a Constituição da Organização Mundial de Saúde (1946) e para o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966).
A Constituição da OMS representa um grande marco da positivação do direito à saúde no direito internacional, tendo sido elaborada com o objetivo de criar, dentro da estrutura das Nações Unidas e em âmbito internacional, uma instituição de alta relevância e especialização técnica voltada à proteção da saúde no mundo, tendo dentre suas responsabilidades a produção de normas jurídicas internacionais relacionadas à melhor proteção da saúde humana. A OMS começou a operar no dia 7 de abril de 1948 com base em princípios básicos que devem ser seguidos para a felicidade, a relação harmoniosa e a segurança de todos os povos, dentre os quais o princípio segundo o qual a saúde deve ser compreendida como o “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de doenças ou enfermidades”.
Ainda no âmbito internacional, o reconhecimento da saúde como direito humano e dever dos Estados foi reforçado pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Sociais, Culturais e Econômicos, de 1966. O pacto estabelece que os Estados-Partes “reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental” (art. 12-1). As medidas que os Estados-Partes devem adotar com o fim de assegurar o pleno exercício do direito à saúde incluem todas as que se façam necessárias para assegurar:
- (a) a diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento são das crianças;
- (b) a melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente;
- (c) a prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças;
- (d) a criação de condições que assegurem a todos a assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.
As normas internacionais de proteção do direito à saúde foram ratificadas pelo Congresso Nacional brasileiro e já integram o direito interno, exigindo sua aplicação pelos nossos governantes (CF/88, artigo 5o, parágrafos 2o e 3º). Mesmo que assim não fosse, os avanços verificados no direito positivo internacional para a proteção do direito à saúde foram plenamente incorporados pelo direito interno brasileiro, seja no nível constitucional (CF/88, artigos 6o, 193 a 200), seja no nível infraconstitucional – são várias as normas legais e infralegais que regulamentam a aplicação do direito à saúde no país.
Destaca-se no Brasil o papel ativo dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na construção do direito à saúde brasileiro, tanto na regulação legislativa e na implementação de políticas públicas, quanto nas decisões judiciais determinando o cumprimento do direito à saúde e obrigando, por exemplo, o Estado a oferecer concretamente medicamentos, cirurgias, próteses, órteses, dentre outros serviços e produtos de saúde.
A Constituição de 1988 foi detalhista na conformação do direito à saúde no país. Seus artigos 23, II, e 24, XII dispõem sobre as competências dos entes federativos em matéria de proteção e defesa da saúde.
O artigo 23, II, dispõe ser competência comum da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiências”. Pela competência comum fixada na CF/88, todos os entes federativos são responsáveis pela execução de ações e serviços destinados a cuidar da saúde e devem se articular em um federalismo cooperativo.
Por sua vez, o artigo 24, XII, da Constituição prevê a competência legislativa concorrente entre União, estados e Distrito Federal em matéria de proteção e defesa da saúde. Dispõe o texto constitucional: “Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre (…) previdência social, proteção e defesa da saúde”. Nesse aspecto legislativo, o papel dos municípios é suplementar, na medida em que o artigo 30, II, estabelece ser competência dos municípios “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”.
Ainda na Constituição de 1988 encontramos expressamente o reconhecimento e proteção do direito à saúde, expressas nos artigos 6o, 194 e 195, que tratam da seguridade social, e, em especial, nos artigos 196 a 200 que tratam especificamente da saúde e fornecem a base jurídico-constitucional da proteção do direito à saúde no país. Referidas normas dispõem sobre os princípios básicos que devem reger as ações e serviços públicos de saúde (artigo 198, caput, I a III) e sobre os deveres do poder público (artigos 196 e 197); organizam o SUS e definem suas competências (artigo 200); estipulam os patamares mínimos de financiamento das ações e serviços públicos de saúde (artigo 198, parágrafos 1º, 2º e 3º); e definem os critérios da participação da iniciativa privada na assistência à saúde (artigo 199). Estas normas oferecem, enfim, ao direito à saúde as grandes bases de sua proteção.
Resultante do processo constituinte brasileiro que pautou a redemocratização do país, a proteção do direito à saúde dada pela Constituição de 1988 representa um pacto da sociedade brasileira em benefício da saúde individual e coletiva. O relatório final da VIII Conferência Nacional de Saúde, publicado em 1986, foi um dos grandes momentos da democracia no Brasil. Coordenado por Sérgio Arouca, o relatório resume as deliberações tomadas por mais de 4.000 participantes, sendo mil delegados, e apresenta a síntese das demandas sociais em saúde que seriam, dois anos depois, traduzidas pela Constituição de 1988 e pelas leis 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.142, de 28 de dezembro de 1990.
Esse conjunto normativo oferece as bases legislativas de reconhecimento e proteção do direito à saúde no Brasil. Dentre outras disposições, apresentam um conceito de saúde, detalham o dever do Estado com relação ao direito à saúde, por meio de dispositivos que estruturam o sistema público de saúde, e tornam claros seus princípios, diretrizes, objetivos, competências e fontes de financiamento, assim como orientam a organização, direção e gestão do sistema e a forma como estão distribuídas as tarefas entre as três esferas de poder. Destaque-se que a Lei 8.142/1990 inovou em termos de gestão participativa do Estado e criou instituições participativas e democráticas para atuarem de forma integrada com o Estado, tais como os conselhos de saúde e as conferências de saúde.
Essa sofisticada arquitetura jurídica criada no Brasil para o reconhecimento e a plena efetivação do direito à saúde representa um grande avanço civilizacional e democrático de nosso país, mas que somente será concretizado se a sociedade brasileira e nossos governantes entenderem e levarem realmente a sério o fato de que a saúde é um direito realizável.
Basta ver os avanços promovidos nos principais indicadores de saúde pública do Brasil nos últimos 30 anos, desde o reconhecimento constitucional da saúde em 1988 até os dias de hoje. Para ficar apenas nos principais indicadores, destaque-se a taxa de mortalidade infantil de crianças com menos de um ano, que foi aproximadamente de 47/1.000 em 1990 para 11/1.000 em 2020; e a expectativa de vida do brasileiro, que passou de aproximadamente 66 anos em 1990 para 77 anos em 2020.
Esses números, reflexos do reconhecimento do direito à saúde no Brasil e das garantias jurídicas e democráticas criadas pela Constituição, notadamente a criação do Sistema Único de Saúde, demonstram que o direito à saúde não é utopia. É realizável e já temos amadurecimento democrático e instrumentos jurídicos suficientes para isso.