Ninguém poderia imaginar isso. Milhares de mortos em uma linear crescente. Um inimigo invisível, que mata sem escolher vítima, em que pese certos grupos estarem mais vulneráveis que outros. O Estado precisou agir. Em 20 de março de 2020, o Congresso Nacional editou o Decreto Legislativo nº 6 e reconheceu a existência de um estado de calamidade pública. A pandemia coronavírus era oficial.
Em menos de uma semana da publicação do decreto, recebo um mandado de segurança para me manifestar. Uma grande empresa do setor têxtil ingressara na justiça federal para prorrogar o pagamento de seus tributos, até que a calamidade cessasse.
Seu argumento: dificuldade econômica em razão da pandemia. Na opinião da parte, o Estado deveria deixar de lado a “finalidade arrecadatória”. O juiz deferiu a liminar. Recorremos e revertemos a liminar nas instâncias superiores. Mas essa é uma outra história. Vamos a um detalhe do argumento da parte.
Um equívoco muito grande de alguns que escrevem sobre direito tributário é ver na ação do Estado Fiscal uma “finalidade arrecadatória”, como se houvesse uma “finalidade não arrecadatória”. Nem uma, nem outra.
Toda finalidade do Estado Fiscal se encontra na Constituição. Isso significa que a tributação não tem um fim em si mesmo. Ela é sempre um meio para assegurar uma determinação constitucional. Se um dia, portanto, houve “finalidade arrecadatória”, em um passado autoritário, esse tempo ficou para trás. A Constituição de 1988 o extirpou.
A Constituição, pois, tem diversas atividades, estruturas e organizações que carecem dos tributos para serem efetivas. Como exemplo, temos a estrutura necessária para a proteção de direitos individuais e coletivos espalhados pelo texto constitucional.
Pense na quantidade de recursos necessários para desenvolver a educação, implementar a saúde ou proteger o meio ambiente. Os tributos servem para promover, também, a estrutura dos Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e funções essenciais à justiça (art. 44 a 135), bem como as atividades de defesa e segurança pública (arts. 136 a 144). Não se trata, então, de arrecadar por arrecadar.
A Constituição, de outro lado, não deseja apenas limitar o pode tributário do Estado Fiscal, para proteger o cidadão individualmente considerado. Ela deseja que esse mesmo Estado Fiscal realize uma gama de atividades, para que seja possível defender o cidadão invisível que nunca está representado nesse contencioso tributário, mas que, ainda sim, contribui para o Estado.
Basta refletir sobre os inúmeros estudos que apontam que os mais pobres pagam proporcionalmente mais tributos que os mais ricos. Pobre não faz planejamento tributário.
Não é, portanto, apenas a liberdade individual que deve ser protegida com a limitação constitucional ao poder de tributar. A tributação serve, também, à proteção da liberdade coletiva, que se soma à igualdade e à solidariedade, para compor o alicerce da justiça constitucional. Não se trata, então, apenas de entregar dinheiro ao Estado.[1]
Há quem, mesmo assim, defenda Estado Mínimo. Precisamos adverti-los: isso não significa menor tributação ou menor necessidade de recursos públicos. A pandemia nos revelou que proteger a economia custa caro. A “mão invisível do mercado” não vai nos salvar sozinha.
Reflita, agora, sobre a quantidade de recursos que o Estado empregou até o momento para intervir na economia. Por exemplo, somente para custear a folha de salário das empresas o Estado vai precisar intervir com bilhões de reais.[2] De onde virão os recursos?
Mas, na contemporaneidade, o argumento do “fim arrecadatório” se converteu em estratégia para negar valor à tributação. Em especial, por discípulos da escola de pensamento que ainda vislumbra a tributação como agressão ao patrimônio ou como “norma de rejeição”. O que serve de justificativa para ações voltadas a diminuir a tributação, ainda que apenas para alguns.
Uma pandemia mundial como a que vivenciamos, outrossim, soa como um aviso de que nada será como antes. Em um mundo globalizado e desregulado, as crises são mais do que certas.
De tempos em tempos elas surgem como um furacão, para mudar a paisagem por onde passam. Criam-se novidades, mas, também, velhas práticas retornam. Cenário perfeito, portanto, para agir nos bastidores. Olhe para o passado.
Houve um tempo em que editar normas em momentos de distração era uma prática corriqueira. Como um mágico que desvia o olhar do espectador para, logo em seguida, surpreendê-lo com o inimaginável. A União Federal já fez isso. Basta se lembrar da Lei 10.637, publicada em edição extra do dia 31 de dezembro de 2002.[3]
A pressa tinha suas razões (formais). Desejava-se respeitar a anterioridade que, àquela época, se contentava com a publicação da lei em um exercício financeiro, para que valesse no ano seguinte. Muito mais uma regra, então, do que um princípio. Para atenuar a prática, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional nº 42, de 2003 e ampliou o âmbito da anterioridade, ao exigir vacatio de 90 dias, em certos casos.
A Lei 10.637, por sua vez, trouxe a não-cumulatividade para o PIS, vedou o regime a algumas categorias profissionais e, dentre outras mudanças, permitiu o creditamento do valor de bens e serviços utilizados como insumo. Até hoje essa sistemática é palco de grandes controvérsias e conflitos tributários.
Mais distante no tempo ainda, houve momentos do Brasil que nem a lei, em sentido material, seria necessária. Se alguém incluísse na redação do texto final aquilo que se desejasse já seria suficiente. Não havia debate parlamentar sobre o ponto.
Se à época do império o rei era o Estado, aqui, o redator é o soberano. Era só comandar a Comissão de Redação. Quem redigisse o texto, portanto, estabeleceria a norma. Foi a imagem que nos passou o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, ao revelar que a Assembleia Constituinte não debateu alguns dispositivos da Constituição de 1988.[4] Fato consumado?
Atualmente, parece que os trilhos apontam novamente para a caverna, bem longe da iluminação. Leio a notícia que um determinado parlamentar, conhecido por “correr atrás” para beneficiar empresas, “trabalhou” para incluir o fim do voto de qualidade na Lei nº 13.988, de 2020, no momento da conversão da medida provisória nº 899, de 2019.[5]
Ainda que a notícia careça de mais investigação sobre a veracidade do fato, essa situação evidencia dois problemas, que lançam luzes no que ocorre nos bastidores da democracia. O que se faz e como se faz: o rent seeking por meio de contrabando legislativo.
O rent seeking é uma prática antiga, mas não tão conhecida do público brasileiro. Ao menos a nomenclatura. Trata-se, em síntese, da tentativa de captação das instituições públicas por grandes detentores de poder econômico, para que as decisões políticas sejam adequadas a seus interesses rentistas.
Com isso, se obtém rendimento a partir da riqueza produzida por toda sociedade. Não se produz riqueza nova. Isso decorre da percepção de que o Estado é capaz de criar oferta e demanda ou mesmo contribuir para monopólios privados.
Significa que ele pode transferir dinheiro do topo para base, da base para o topo, ou mantê-lo no meio da pirâmide econômica. A “mão livre” do mercado já não é suficiente. É preciso que a mão do Estado também auxilie.
Para Joseph Stiglitz, o rent seeking assume diversas faces, dentre elas, a construção de estatutos que “permitem às grandes empresas tirarem vantagem dos outros ou passarem os custos para o resto da sociedade”.[6]
Em nosso caso, o estatuto em questão é justamente a mudança no resultado do empate nas votações do Carf, de modo não transparente. Modificação estrutural, ressalta-se, que renderá bilhões de reais a determinadas empresas que costumam ter seus planejamentos tributários desconsiderados pela Receita Federal do Brasil e pelo Carf.
Não é só a democracia, contudo, que o rent seeking afeta. Essa prática causa um desequilíbrio social muito grande. Ela influencia o aumento da desigualdade, uma vez que direciona grande parcela dos recursos sociais a um pequeno grupo, mediante uma estrutura revestida de aparente legalidade.[7]
Já foi lembrado aqui no Jota que o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.127/DF, debateu sobre o que se convencionou denominar “contrabando legislativo”.[8]
E o que isso significa? Significa inserir no curso do processo legislativo, por emenda parlamentar, matéria estranha ao conteúdo da medida provisória, ou seja, sem pertinência temática.
Por exemplo, em uma medida provisória que trata de benefício fiscal de IPI para a indústria, não poderia haver a inclusão de uma norma para aumentar imposto de renda de pessoa física.
Do contrário, todo o trabalho de consultoria, pesquisas, relatórios e estudos que são feitos no planejamento do projeto da norma, bem como diversas entidades que participam do debate em audiências públicas, em comissões mistas, se veriam extirpadas do processo legislativo, que não se limita ao momento da deliberação parlamentar em plenário.
Embora o STF, em razão da segurança jurídica, não declarara na ocasião a lei inconstitucional, o fato é que manifestou posição contrária ao contrabando legislativo. A questão, então, não é apenas formal.
Como bem ressaltou a ministra Rosa Weber em seu voto, o contrabando legislativo “subtrai do debate público e do ambiente deliberativo próprios ao rito ordinário dos trabalhos legislativos a discussão sobre as normas que irão regular a vida em sociedade”.
Trata-se, portanto, também do respeito ao devido processo legal, previsto no art. 5º, LIV, da Constituição e da própria democracia, importante em sociedades pluralistas.
No caso do fim do voto de qualidade, pouco importa, então, se o gênero mais amplo é processo tributário ou processo administrativo fiscal. Existe, aqui, o dever de transparência, já que nada foi proposto em relação ao fim do voto de qualidade.
Tampouco se procurou alterar o Decreto 70.235, de 1972, o que seria razoável, já que é a norma que regula o processo administrativo fiscal federal. Ou seja, não havia sinalização de se modificar a estrutura de julgamento em âmbito administrativo federal. Mas não é só o contrabando legislativo que preocupa.
O ministro Luís Roberto Barroso, ao proferir seu voto, fez uma observação de que ouviu “de um político extremamente íntegro e decente; a propósito dos contrabandos nas medidas provisórias, ele disse: é aí que está o problema da corrupção”.
A situação se torna mais relevante quando se sabe que muitos temas publicamente divergentes, e que envolvem bilhões de reais, não chegarão ao Judiciário, nos casos de empate na votação. Isso porque a Procuradoria da Fazenda Nacional ainda é proibida de ajuizar ações para anular as decisões do Carf.
Precisamos, então, refletir democraticamente sobre o tipo de estrutura que desejamos para solucionar os conflitos tributários na via administrativa, uma vez que a complexidade não pode ser tratada com tamanha simplicidade e obscuridade.
[1] SANTIAGO, Julio Cesar. Solidariedade: como legitimar a tributação? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 72.
[2] Segundo dados do Ministério da Economia, o impacto estimado é de R$ 40 bilhões. (v. Medidas econômicas voltadas para a redução dos impactos da Covid-19 (Coronavírus) — linha do tempo. Disponível em: <https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/covid-19/timeline>. Acesso em 20 de maio de 2020.
[3] Na ocasião, se tratava da conversão da Medida Provisória nº 66 de 29 de agosto de 2002.
[4] TARTAGLIA, Cesar. Sem Votação O Globo, s.d.. Disponível em: <memoria.oglobo.globo.com>. Acesso em 25 de abril de 2020.
[5] Cf. FERNANDES, Adriana. Após a Receita, a PF. O Estado de São Paulo, 25 de abril de 2020. Disponível em: <economia.estadao.com.br/colunas/adriana-fernandes>. Acesso em 17 de maio de 2020.
[6] STIGLITZ, Joseph E. O preço da desigualdade. Tradução de Dinis Pires. Lisboa, Portugal: Bertrand, 2013, p. 101.
[7] Sobre desigualdade e rent seeking v. RIBEIRO, Ricardo Lodi. Desigualdade e tributação na era da austeridade seletiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 91-105.
[8] ROCHA, Sergio André. Inconstitucionalidade e controvérsias do fim do voto de qualidade. JOTA, 17 de abril de 2020. Disponível em <https://www.jota.info/>. Acesso em 22 de maio de 2020.