Coronavírus

Visão estratégica ambiental do negócio à luz da experiência ocasionada pela pandemia

Uma oportunidade para o desenvolvimento sustentável

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Crédito: (Vinícius Mendonça/Ibama)

Muito antes da pandemia causada pela Covid-19, cuja origem é provavelmente zoonótica[1], já se tinha, como dado pré-concebido e indiscutível, a existência de uma crise ambiental de caráter contemporâneo, reflexo do modelo atual de desenvolvimento econômico e de suas pressões sobre o meio ambiente, que impõe, década após década, o reexame da relação entre o homem e a natureza, especialmente para compreender os limites e a capacidade de suporte do meio, de modo que seja salvaguardado, não só para as presentes, mas também para as futuras gerações, o equilíbrio ecológico a que se refere o art. 225 da Constituição Federal.

Desde há muito tempo já se cogitava a possibilidade de haver uma correlação etiológica entre as ações humanas e a perda da qualidade do meio ambiente e seus reflexos, especialmente os imediatos, para a saúde humana.

Um dos episódios mais tristemente marcantes e reveladores dessa relação de causa – e até hoje considerado o pior evento de poluição atmosférica na Europa – teve lugar em Londres, no inverno de 1952, quando a capital inglesa foi tomada por um denso nevoeiro amarelo, rico em ácido sulfúrico e ácido clorídrico, que em cinco dias matou quatro mil pessoas e determinou a hospitalização de outras cento e cinquenta mil, com graves problemas respiratórios. Posteriormente, outras oito mil pessoas morreram em decorrência do nevoeiro venenoso[2].

Nas décadas seguintes, em virtude dessa e de tantas outras evidências dessa correlação, a comunidade internacional despertou para a necessidade de se buscar o melhor caminho a ser percorrido entre aquilo que se considerou extremamente necessário para a vida humana: o desenvolvimento econômico e a preservação do meio ambiente.

Assim é que, desde o Relatório Brundtland, de 1972, temos o conceito de desenvolvimento sustentável, definindo-o como “desenvolvimento que responde às necessidades do presente sem comprometer as possibilidades das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades”. No teor dessa proposição, haverá sustentabilidade quando houver eficiência econômica, eficácia social e ambiental.

Sem ignorar o debate que propõe ser o desenvolvimento sustentável uma utopia, o que se quer destacar a seu respeito é que, enquanto fator orientador das ações do poder público, da iniciativa privada e da sociedade, os processos iniciados a partir desse objetivo necessariamente terão de buscar, como consequência de sua implementação, o atendimento das metas de desenvolvimento social e econômico, sem esgotar a capacidade de suporte e regeneração do meio ambiente.

Dito isso e em tempos de parada forçada que enseja alguma reflexão, é de se indagar sobre a possibilidade de revisão de antigos padrões, com vistas à implementação efetiva de mudança de paradigma.

Dia sim e outro também, temos acompanhando decisões tomadas por autoridades nacionais e internacionais no enfrentamento da inquestionável e grave crise social e econômica experimentada nesse ano de 2020.

Sem que tenha sido possível sinalizar, até agora, a partir de qual momento haverá o restabelecimento ou mesmo o alcance de normalidade na rotina, com previsibilidade de riscos e maior segurança – especialmente para a saúde –, tudo converge para o debate, vez por outra acalorado[3].

No ambiente desesperançoso em que a sociedade brasileira está mergulhada nestas duas primeiras décadas do século XXI, de indisputável crise institucional, marcada por episódios de corrupção e de maltrato da coisa pública em um ambiente social altamente polarizado e destrutivo, agravado pela pandemia causada pela Covid-19 e suas consequências desastrosas para a economia e para a coletividade, importa trazer à discussão a possibilidade de o direito ambiental trazer respostas para os anseios da sociedade, mormente no que diz respeito à salvaguarda do meio ambiente ecologicamente equilibrado, tido pela própria Constituição Federal como direito fundamental inerente à condição humana.

Não há fórmula mágica. Em tempos de crise como o presente, nesse ambiente de incerteza e insegurança, num processo de resgate da nossa autoestima, necessário à superação dos problemas atuais e aqueles que ainda estão por vir e que impõem a tomada de decisões pautadas na razão, é importante que não se percam de vista os compromissos assumidos com as presentes e futuras gerações, lembrando que o futuro será moldado pelas experiências do presente e do passado.

É nessa conjuntura que nos afigura razoável a proposição de uma agenda conciliadora. Se, de um lado, a desburocratização se faz premente, como meio de fomento à regularização de passivos e às atividades produtivas; de outro, iniciativas voltadas à simples desregulamentação não conferem a segurança jurídica necessária para a retomada de investimentos, em vista de sua potencial judicialização.

Disputas à parte, queremos crer que, em matéria de direito ambiental, qualquer que seja o encaminhamento, a exigência de resposta adequada à Constituição impõe que a tomada de decisão esteja pautada no desenvolvimento sustentável.

Como estímulo à reflexão, vale a lembrança de que, no Estado Constitucional, em matéria de salvaguarda do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a atuação do poder público e dos agentes sociais e econômicos está condicionada à conciliação do desenvolvimento, à preservação do meio ambiente e à melhoria da qualidade de vida, em todos os seus aspectos.

Mas não só: é consenso entre os doutrinadores a necessidade de intervenção do Estado, na qualidade de ente regulador das atividades socioeconômicas – individuais ou coletivas – no meio ambiente.

Se a retração econômica mundial imposta pela pandemia, que parece iniciar o a mais grave recessão mundial desde o crash da bolsa de 1929[4], aponta a necessidade de um esforço multilateral, possivelmente voltado ao financiamento em escala global, tal circunstância não prescinde de decisões estratégicas dos Estados-nações a respeito da melhor destinação de seus recursos para impulsionar a retomada e modernizar a economia.

Dentro do espírito do tempo presente, quer nos parecer inexorável o dever de se valorizar a oportunidade que se abre para que um novo tempo, de convergência e conciliação de interesses, surja a partir do escombros deixados pela Covid-19. O momento impõe a necessidade incontornável de o poder público, a iniciativa privada e a sociedade se entenderem e se encaminharem em prol do meio ambiente de hoje e dos novos tempos.

Algumas iniciativas têm sido consideradas. Dentro do Programa de Parcerias e Investimentos-PPI, há previsão de concessão de florestas públicas, de parques nacionais, aeroportos, rodovias, geração de energia, linhas de transmissão de energia, exploração minerária, exploração de óleo e gás.

No contexto do Super Ano da Biodiversidade, de se cogitar o incremento da pesquisa e do desenvolvimento de tecnologias para produção de bens e serviços a partir do acesso ao patrimônio genético, aprimorando a discussão quanto a temas espinhosos como a repartição de benefícios.

Para as atividades agrossilvipastoris, vale pensar em iniciativas voltadas à superação de entraves logísticos; à regularização de passivos ambientais a partir da regulamentação infralegal e do fomento dos mecanismos de compensação por supressão de vegetação; ao estabelecimento de políticas de reconhecimento e pagamento por serviços ambientais ecossistêmicos, como estímulo à valorização da floresta em pé, assim como de políticas de incentivo à pesquisas e inovação para consolidação da bioeconomia e do novo Programa Nacional de Bioinsumos.

Ainda num cenário de possibilidades, é de se pensar, para a indústria nacional, em iniciativas que permitam investir na sua modernização e desenvolvimento tecnológico.

No contexto das cidades, faz-se necessário um olhar diferenciado para as iniciativas do setor imobiliário que proporcionem a melhoria da qualidade de vida dos centros urbanos, inclusive com a reabilitação de áreas degradadas e contaminadas.

De se incluir aí também as iniciativas voltadas à melhoria do transporte e da circulação de pessoas, bens e serviços, e ao trato eficiente dos resíduos sólidos, com a consolidação e melhoria da coleta seletiva e de sistemas de logística reversa, em âmbito municipal e regional.

Tudo isso, por óbvio, já não era tarefa fácil. O que se quer registrar é que as decisões que deverão ser tomadas a partir de agora dependem do engajamento e do compromisso dos diversos atores envolvidos, para a construção de um ambiente institucional em que essas e tantas outras oportunidades que se mostrarem viáveis efetivamente se realizem. E, como dito, para cada escolha, é inafastável a consideração de variáveis econômicas, sociais e ambientais.

Afinal, nunca mais seremos os mesmos e é preciso alcançar um novo equilíbrio. Dito isso, permanece o questionamento: por que não buscá-lo a partir da tomada de decisões comprometidas com o desenvolvimento sustentável?


[1] MILARÉ, Édis; MORAIS, Roberta Jardim de. A covid-19, Popper e o Direito Internacional. Disponível em: <https://valor.globo.com/opiniao/artigo/a-covid-19-popper-e-o-direito-internacional.ghtml>. Acesso em 22 de maio de 2020. Vide também: CARVALHO, Délton Winter. A natureza jurídica da pandemia de Covid-19 como um desastre biológico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-21/direito-pos-graduacao-natureza-juridica-pandemia-covid-19-desastre-biologico>. Acesso em 24 de maio de 2020.

[2] Sabe-se hoje, a partir de estudos de 2016 que analisavam a poluição na China, que aquele smog particularmente letal que se abateu sobre a já poluída Londres de 1952 foi o resultado de reações químicas causadas pelas intensas emissões de suas indústrias, que usavam carvão para movimentar suas máquinas. O carvão era também utilizado para o aquecimento de quase todas as casas da cidade e a chegada de uma frente fria naquela ocasião fez com houve sua queima em maior quantidade. Esse cenário de poluição atmosférica foi agravado pela ocorrência de inversão térmica que, bloqueando a entrada de ar frio sobre a cidade, constituiu outro fator que impediu a rápida dispersão dos agentes poluentes. Fato é que quatro anos depois o parlamento inglês aprovou o Clean Air Act, que criou limites para a queima de carvão em áreas urbanas. Sobre o estudo, confira-se: Persistent sulfate formation from London Fog to Chinese haze. Gehui Wang et alli. Disponível em: <http://www.pnas.org/content/early/2016/11/09/1616540113.full.pdf>. Acesso em 20 de novembro de 2016.

O tema foi objeto do episódio 4 da primeira temporada da premiada série britânica The Crown, chamado Act of God, levado ao ar em novembro de 2016 pela Netflix. O episódio retrata, sob o ponto de vista ficcional, a reação do Primeiro Ministro Winston Churchill e da Rainha Elizabeth II ao incidente. No plano real, após o incidente, houve o incremento da legislação com vistas ao estabelecimento de regras de controle e redução da poluição atmosférica.

[3] Para ilustrar e sem entrar no mérito de acerto ou desacerto de cada narrativa sobre as questões ambientais mais prementes dessas últimas semanas, vale destacar (i) as decisões proferidas pelo STF a respeito da inconstitucionalidade de leis estaduais disciplinando regras para o licenciamento ambiental e, também, sobre a imprescritibilidade do dano ambiental, dentre tantas outras quedas-de-braço pendentes de apreciação pelo Poder Judiciário; (ii) pressão internacional de fundos anunciando desinvestimento em atividades que geram emissões e migrando para iniciativas mais afinadas com a noção de melhores práticas ambientais, sociais e de governança; e (iii) iniciativas voltadas à regularização fundiária na região amazônica, associadas a notícias de aumento do desmatamento e de ameaças de boicote de empresas e investidores, como espécie de desestímulo econômico à degradação ambiental, dentre outros.

Confira-se ainda:

<https://news.harvard.edu/gazette/story/2020/04/harvard-endowment-to-go-greenhouse-gas-neutral-by-2050/>. Acesso em 24 de maio de 2020.

<https://valorinveste.globo.com/produtos/fundos/noticia/2020/05/22/pandemia-educou-o-mercado-e-investimento-sustentavel-sera-regra-dizem-gestores.ghtml>. Acesso em 24 de maio de 2020.

<https://www.moneytimes.com.br/supermercados-britanicos-e-investidores-da-suecia-e-noruega-ameacam-boicotar-brasil-por-amazonia/>. Acesso em 24 de maio de 2020.

[4] GOPINATH, Gita. O Grande Lockdown: a mais grave retração da economia desde a Grande Depressão. Disponível em: <https://valor.globo.com/mundo/blog-do-fmi/post/2020/04/o-grande-lockdown-a-mais-grave-retracao-da-economia-desde-a-grande-depressao.ghtml>. Acesso em 24 de maio de 2020.