Pandemia

Lealdade federativa e exercício de competências

Em momentos de crise faz-se especialmente necessária a valorização de formas de atuação coordenada

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(Foto:Carlos Moura/SCO/STF)

No momento atual, em que são discutidos os efeitos políticos e jurídicos da pandemia da Covid-19, um assunto em especial tem recebido bastante destaque: a estrutura do federalismo brasileiro.

Imposição de isolamento social, suspensão de aulas, fechamento de comércio e restrições à circulação interestadual são alguns exemplos de uma série de medidas tomadas pelos entes federativos que acabam por gerar dúvidas acerca da real competência para tais determinações – se da União, privativamente, ou também de estados e municípios.

A competência para condução de programas voltados ao combate do coronavírus é objeto de questionamentos no Supremo Tribunal Federal, como nas ADIs 6341 e 6343, de relatoria do ministro Marco Aurélio.

Nos referendos das medidas cautelares dessas ações, um ponto recorrente foi a alusão ao chamado federalismo cooperativo, que, como a própria denominação evidencia, é modalidade que demanda efetiva tomada conjunta de decisões, em verdadeiro coexercício de competências. Para a concretização desse trabalho comum, é ideal que os entes não apenas cooperem entre si, mas, mais do que isso, que também observem um dever de lealdade em suas ações.

Ao votar nesses casos, o ministro Gilmar Mendes reverenciou o Sistema Único de Saúde como um dos modelos mais exitosos de cooperação do federalismo brasileiro.

Ponderou não excluir a necessidade de o presidente da República, ao regulamentar direito federal em matéria de competência legislativa concorrente, “auscultar os órgãos representativos de estados e municípios que cuidam da saúde”, enfatizando a existência de duas lealdades que precisam ser atentadas: “os órgãos constitucionais têm que atuar de forma leal e fiel ao texto constitucional; e devem, reciprocamente, lealdade federativa”.

E completou: “o presidente não pode atropelar competências federativas, assim como os estados e municípios não podem atropelar as competências da União”, mencionando o que os alemães chamam de Bundestreue, isto é, a lealdade federativa.

De fato, o princípio alemão da lealdade federativa, também conhecido como princípio da conduta federativa amistosa (bundesfreundliches Verhalten), tem como base o preceito de que União e estados, ao exercerem suas competências, devem atuar com cautela, para não prejudicar intencionalmente os demais, bem como com espírito de grupo, para ajudar o conjunto, sempre que possível.

É evidente, portanto, o motivo pelo qual esse princípio é usualmente relacionado ao conceito de federalismo cooperativo. Ainda que o federalismo já demande, em sua essência, certa integração entre os entes, a noção de lealdade federativa, associada ao modelo de cooperação, imprime maior concretude à preocupação pela busca de certa harmonização ética e procedimental dos interesses da diversidade em prol do bem da unidade.

No sistema político-jurídico alemão, a integração entre as unidades federativas é resultado de longa evolução histórica. Após tentativas de união entre os reinos germânicos independentes desde o declínio do Sacro Império Romano-Germânico, a Constituição do Império Alemão, de 1871, de Bismarck, efetivou a união de Estados-membros soberanos, com clara divisão de competências entre estes e o governo central.

Ainda que a estrutura federativa monárquica não tenha impedido que a Prússia acabasse por despontar como potência dominante do Reich, é fato que nesse sistema já havia instrumentos de decisão e de atuação conjunta, com a necessidade de respeito aos interesses dos demais.

É nesse período em que foram traçadas as primeiras noções do conceito de Bundestreue, delineadas posteriormente por autores como Rudolf Smend, Paul Laband, Heinrich Triepel, Peter Häberle e Hartmut Bauer[1].

Em meio a eventuais conflitos federativos, a atenção a esse verdadeiro princípio da boa-fé entre os entes é reafirmada em decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão.

De acordo com sua jurisprudência, o princípio da lealdade federativa é, em síntese, “a obrigação de todas as partes integrantes do pacto federal de atuar de acordo com o espírito do referido pacto e de colaborar com a sua consolidação, protegendo os interesses comuns do todo[2]”.

Trata-se de norma constitucional não-escrita, cujas diretrizes são conformadas pela Corte ao aplicá-la a questões concretas, atribuindo-lhe caráter de mecanismo harmonizador das tensões naturalmente existentes em um Estado federal[3].

Pode-se dizer que do princípio da lealdade federativa advém uma série de obrigações e de compromissos que os entes devem guardar entre si, como o dever de ajuda e de apoio; o compromisso de informação e de consulta; o compromisso de coordenação e de colaboração[4].

O Bundestreue não se traduz, portanto, apenas em medidas positivas, mas também negativas, isto é, deve-se evitar atuar caso o exercício de determinada competência possa prejudicar os demais, restringindo-se a prática abusiva do direito e o comportamento contraditório.

Com base nesses preceitos, alguns ordenamentos jurídicos inseriram a necessidade de observância da lealdade federativa em seus textos constitucionais. É o caso da Bélgica, que no §1º do art. 143 da Constituição estipula que União, comunidades, regiões e a Comissão Mista das Comunidades devem agir com respeito à lealdade federal no exercício de suas respectivas competências, a fim de evitar conflitos de interesse.

Entre nós, assim como na Alemanha, não há menção expressa ao Bundestreue na Constituição Federal, mas seus fundamentos podem ser dela extraídos e consequentemente verificados nas hipóteses em que autorizada ou fixada a atuação conjunta entre os entes da Federação – como no exercício das competências comuns (art. 23), nos direitos e deveres relacionados à saúde (art. 196) ou na possibilidade de criação de consórcios públicos e convênios de cooperação (art. 241).

No julgamento sobre a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, o ministro Gilmar Mendes ponderou sobre a importância da participação dos estados e municípios no processo demarcatório.

Ressaltou que o princípio da lealdade federativa “não implica, nunca, obrigações principais, mas, sim, complementares. Consubstancia-se num filtro à liberdade da União e dos estados no exercício de suas competências, de modo a evitar o abuso[5]”.

O ministro consignou, a partir dessa noção, que “no caso das demarcações de terras indígenas, competência privativa da União, a aplicação do princípio da fidelidade à federação determina o direito de participação (direito de voz e voto) no procedimento demarcatório de terras indígenas, visando à efetivação dos direitos constitucionais dos índios brasileiros, mas garantindo que, diante de alternativas igualmente válidas de concretização desses direitos, seja escolhida a que melhor preserve o princípio federativo”. Argumento semelhante foi utilizado, também por Gilmar Mendes, ao votar na STA 175, de sua relatoria, sobre a judicialização do direito à saúde[6].

Nesse sentido, e em contexto de combate nacional à pandemia da Covid-19, pode-se dizer que, com fundamento no princípio da lealdade federativa, por exemplo, um estado-membro tem o dever de fornecer informações corretas aos demais sobre a real situação de infectados em seu território.

Ou ainda, que a União, ao fazer uso de suas competências, deve considerar o benefício da unidade, fomentando a atuação coordenada e colaborativa de todos. Da mesma forma, que União, estados e municípios devem evitar medidas que possam dificultar ou restringir, sem justificativa plausível, a atuação dos demais, como por meio de rigoroso controle de fronteiras.

O princípio da lealdade federativa é, como dito, norma constitucional não-escrita. Sua observância em um sistema federativo deveria ser, em verdade, algo quase instintivo, ainda mais quando já há, no texto constitucional, mecanismos de atuação cooperada. Em momentos de crise faz-se especialmente necessária a valorização de formas de atuação coordenada, buscando-se o fortalecimento da unidade por meio da participação e efetivo respeito à diversidade.

 


[1] No Brasil, sobre o tema, conferir teses de doutorado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: “Federalismo no Brasil e na Alemanha – Estudo comparativo da repartição de competências legislativas e de execução”, de Maria Augusta dos Santos Zago, defendida em 2016, sob orientação do Prof. Dr. Fernando Dias Menezes de Almeida; e a tese “Cooperação interfederativa – instrumentos para a efetividade da lealdade federativa na Constituição Federal de 1988”, de Wellington Márcio Kublisckas, defendida em 2012, sob orientação do Prof. Dr. Alexandre de Moraes.

[2] Cf. BVerfGE 1, 299, de 21.5.1952.

[3] Cf. e.g. BVerfGE 3, 52, de 10.12.1952, BVerfGE 1, 117, de 20.2.1952; BVerfGE 12, 205, de 28.2.1961.

[4] Conferir, nesse ponto, sistematização feita por BAUER, Hartmut. Die Bundestreue: Zugleich Ein Beitrag Zur Dogmatik Des Bundesstaatsrechts Und Zur Rechtsverhaltnislehre. Tübingen: Mohr Siebeck, 1992.

[5] Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, julg. em 19.3.2009.

[6] STA 175-AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, julg. em 17.3.2010.