Pandemia

Executivo em crise: uma contribuição a um debate presente

Como resolver tensões entre política e área técnica?

Crédito: Allan White/Fotos Publicas

A pandemia da Covid 19 não é apenas uma crise sanitária. Ao exigir do governo medidas de isolamento social e de restrição compulsória ao funcionamento de localidades causadoras de aglomerações, a pandemia também gera crise na economia. O acúmulo de crises produz divergências no interior da administração federal, abrindo espaço para crises institucionais.

O presidente da República demonstra muita sensibilidade com o aspecto econômico da crise sanitária. Chega a dizer que não adianta salvar a população do Coronavirus para matá-la de fome. Em razão disso, sustenta que a quarentena pode ser executada de forma diferente da sugerida pela OMS.

Como consequência, Luiz Henrique Mandetta foi exonerado do Ministério da Saúde.

A nomeação de Nelson Teich para o lugar de Mandetta muda os personagens, mas não muda a racionalidade do poder executivo. O presidente governa por dogmas. Já o novo ministro da saúde terá que se equilibrar entre os caprichos presidenciais e uma ética profissional rigorosa, combinada com rigor científico no plano epidemiológico. Para os pesquisadores da área do direito público, que tipo de reflexão essa crise no Poder Executivo suscita?

Diego Werneck Arguelhes, Eduardo Jordão e Thomaz Pereira sugeriram, em artigo de 06.04.2020, uma emenda constitucional para a crise entre Executivo central e ministério da saúde. Basicamente, a sugestão dos professores é introduzir um novo sistema de nomeação/ exoneração de ministro durante estados de calamidade pública. O presidente aqui teria menos poderes discricionários de escolher e de exonerar seus auxiliares que apresentam desempenho satisfatório.

Virgílio Afonso da Silva, em artigo de 09.04.2020, demonstrou resistência a essa proposta de emenda constitucional. Reconhece que o sistema já possui meios suficientes de reagir às ações irresponsáveis do Poder Executivo. Como exemplo, cita a possibilidade de o Congresso editar leis mais detalhistas sobre a pandemia, a existência de um federalismo que permite uma atuação ativa de governadores e, no frigir dos ovos, o próprio instituto do impeachment.

No primeiro artigo, a solução seria uma revisão normativa do texto constitucional. No segundo, a solução seria uma concertação política em detrimento de judicializações ou reformas constitucionais. Ambos fazem um diagnóstico convergente de que existe uma crise no Poder Executivo. Apesar de parecerem textos de opiniões divergentes na solução, os pensamentos ali embutidos sinalizam uma só preocupação: como controlar o poder? Não haveria, porém, outro enfoque?

A teoria constitucional sustenta que o presidente da República, no regime presidencialista, é o chefe de governo federal. Seria ele também a palavra final dentro da Administração Pública da União. Razões democráticas justificariam essa abordagem. Afinal, o presidente é o único eleito da burocracia administrativa, sendo, portanto, o mais legítimo a tomar decisões.

Por outro lado, a Constituição e as leis entregam ao Poder Executivo metas a serem atingidas durante sua gestão, sem, no entanto, entregar os respectivos meios. O atendimento à saúde é um exemplo flagrante disso. Por mais detalhista que seja uma lei, ela sempre dependerá de decisões administrativas posteriores para ser corretamente concretizada.

Assim, os meios técnicos, os quais variam no decorrer do percurso da ação governamental, são pensados em conjunto com a burocracia adaptada à área de competência, a despeito de a teoria convencional de Max Weber sugerir que a burocracia estatal normalmente é neutra. Escolhas administrativas politizariam a máquina pública segundo o sociólogo alemão.

Em contraposição à teoria de que a burocracia não decide, têm-se a prática cotidiana e a moderna teoria do Estado Administrativo, formulada por teóricos norte-americanos nos últimos cem anos. Para essa teoria, decisões administrativas seriam inevitáveis ante a complexidade da vida, sendo uma cegueira institucional ignorar que burocratas não eleitos decidem o tempo todo. E essas decisões constituem parte estrutural de qualquer Estado de Direito.

Portanto, a administração pública decide e decide muito, e muitas vezes contra a vontade pessoal do chefe do Executivo. O Brasil deu esse exemplo nas últimas semanas. Assim, como resolver tensões entre política e área técnica?

De um lado, a teoria democrática aponta para o respeito a quem tem voto. De outro, o Estado Administrativo aponta para o respeito ao conhecimento. Como resolver o problema sem um “trade-off” (ou um ou outro)?

O professor Blake Emerson, da Universidade da Califórnia, dá uma pista. Ele explica que uma divergência gerencial no interior do Estado não se resolve pela questão eleitoral nem por apegos cegos à ciência, a qual é controversa em cenários limites e está em permanente processo de testagem. A saída estaria na adoção de procedimentos deliberativos internos à administração pública, capazes de criar critérios de peso nas opiniões postas em confrontação.

O procedimento deliberativo interno do Poder Executivo levaria estes fatores em consideração: o presidente tem voto. Voto importa. Por sua vez, a burocracia tem mais acúmulo de informação do que qualquer outra instituição sobre assuntos de sua competência. Logo, conhecimento também importa. Voto e conhecimento precisam de mecanismos de convergência. Essa, pois, é a tarefa dos juristas do século XXI: compatibilizar democracia, gestão do conhecimento e crises.

Mais importante do que pensar a respeito de quem deve controlar uma decisão administrativa é preciso pensar antes em como uma decisão a ser controlada deve ser tomada. Isso vale tanto para o presidente em face da sua burocracia quanto para os controladores do presidente. Hoje há poucos critérios seguros para qualquer controle, quer interno, quer externo, e nenhum desenho de tomada de decisão no âmbito do Poder Executivo.

As tensões entre os órgãos da República não podem ser reduzidas a um grande jogo de pedra, papel e tesoura. No plano do Poder Executivo e de sua administração pública, cabe à teoria constitucional não só desenhar e propor controles externos, mas também pensar mecanismos decisionais internos, voltados a produzir, enfim, decisões racionalmente testáveis.