O Direito Constitucional atravessou várias fases. Inicialmente visto como espécie de teoria do Estado, prestava-se a reconhecer o poder político, dividindo-o e limitando seu exercício em vista dos direitos e garantias. Depois, avançou para ser estruturado em torno dos direitos fundamentais: o Estado existe para prestigiá-los e, em razão disso, recebe poderes e deveres. Sobretudo em países que, como o Brasil, experimentaram longas noites ditatoriais, o constitucionalismo acentuou essa matriz humanista. A Constituição assumiu outra dimensão axiológica.
Todavia, isso trouxe consigno a ampliação dos assuntos nela positivados. Ao invés de restarem circunscritos àqueles de substância constitucional (direitos e garantias, forma do Estado, divisão de poderes e seu exercício), os dispositivos constitucionais cresceram e se multiplicaram. Tornou-se chique constitucionalizar assuntos banais. Tudo – ou quase tudo – cabe na Constituição: basta obedecer ao rito procedimental. Ampliação exagerada, que traz consigo um preço constitucional a ser pago: a erosão da Lei Fundamental.
Quando exercitada em demasia, a ação mecânica do poder constituinte tende a gerar desgaste na essência da Constituição. Desloca seus materiais e abala suas estruturas.
A química dos novos assuntos agride a lógica constitucional, que deixa de ser a proteção aos direitos fundamentais e se torna meio abusivo de institucionalizar soluções políticas. No caso brasileiro, já há algum tempo se pode vislumbrar essa falta de comedimento – ou de noção – quando do exercício do poder constituinte derivado. Dois exemplos recentes tornam isso bastante nítido.
Por um lado, o inexplicável artigo 18-A, acrescido ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT pela Emenda Constitucional 110/2021. Essa transitoriedade permanente, positivando um arremedo do artigo 54 da Lei 9.784/1999, pretende convalidar “Os atos administrativos praticados no Estado do Tocantins, decorrentes de sua instalação, entre 1º de janeiro de 1989 e 31 de dezembro de 1994, eivados de qualquer vício jurídico e dos quais decorram efeitos favoráveis para os destinatários…” Sabe-se lá quais são esses atos administrativos e de quais vícios são eivados. Aliás, 27 anos depois, é melhor não saber. Apenas se consegue imaginar a força política do lobby que conseguiu emplacar na Constituição brasileira esse salvo conduto do ilícito.
Por outro, a recente ameaça de nova institucionalização do calote em contas públicas. Tem sido apregoado pelo Sr. Ministro da Economia que haverá emenda constitucional destinada a permitir a quitação parcelada de precatórios. Ou seja, o descumprimento de ordens judiciais oriundas de sentenças transitadas em julgado após décadas de litigiosidade. Tal maquinação haveria de ser feita às pressas, antes do orçamento do próximo ano. Como anotou o percuciente artigo do meu Professor Fernando Facury Scaff, isso revela a ausência de qualquer intimidade com as finanças públicas. Mas, vou além: denota, sobretudo, desprezo à Constituição. A Lei Fundamental manejada como o ambiente normativo para resolver problemas de ocasião.
Ao que tudo indica, o poder político brasileiro aprendeu que é mais fácil – e bem mais garantido – mudar a Constituição do que a obedecer. O que revela modo sutil, mas venenoso, de manipular o poder constituinte. Afinal, a Constituição não se destina a gerar vantagens para o governo de plantão. Justo ao contrário: existe para limitar o exercício de tais poderes, funcionalizando-os a fim de que respeitem os direitos fundamentais. Algo muito perverso está reiteradamente erodindo a nossa Constituição.
Ocorre que esse abuso do exercício do poder constituinte derivado subverte o devido processo legislativo e a corrompe a substância dessa competência extraordinária. Implica desvio de finalidade: o poder manipulado com vistas a atingir objetivos outros, que não aqueles que o legitimam. A forma não pode aniquilar a substância. Está na hora de o controle concentrado dar um basta a tal uso incorreto, imoderado e ilegítimo dessa ordem de competência constitucional.