Amazônia nas urnas

O combate às fake news nas aldeias

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combate às notícias falsas

Coletivos indígenas ensinam como não cair em fake news

Com podcasts e oficinas, povos combatem a disseminação de desinformação nas eleições

Rainforest Journalism FundEsta reportagem foi produzida com o apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund, em parceria com o Pulitzer Center.

 

A comunicadora Luene Karipuna reconhece que é natural que quando alguém recebe uma notícia impactante tenha curiosidade e interesse em repassar ao máximo de pessoas possível. “Se analisarmos uma manchete de jornal, ela é construída para capturar a atenção do leitor”, comenta. “Mas também digo: é importante sempre duvidar.”

Como boa parte das informações circulam entre os povos indígenas pelos grupos de WhatsApp ou outro serviço de mensageria, que não possuem um recurso de checagem sobre a veracidade, se certificar que aquilo que a pessoa recebeu no celular veio de fontes seguras acaba dependendo exclusivamente dela.

Para mitigar a disseminação de notícias falsas, alguns coletivos indígenas têm lançado podcasts para ajudar diferentes etnias a identificarem quando a informação não é verdadeira. Uma das iniciativas é liderada por Luene, que é do povo karipuna, que vive extremo do país. O grupo que ela compõe, os Jovens Comunicadores do Oiapoque (AP), e ela própria promovem oficinas para ensinar seu povo e povos vizinhos a identificarem quando a notícia é falsa.

“Aqui no Oiapoque acontece mesmo de muitas pessoas acreditarem nessas informações e não saberem como buscar se essas informações são verdadeiras”, comenta Karipuna. “Esse problema se intensifica com as eleições, se a gente já tinha esse problema antes, vai aumentar”.

Comunicadora indígena Luene Karipuna
Comunicadora indígena Luene Karipuna, no Oiapoque (AP) / Crédito: Divulgação

A iniciativa mais recente é o podcast Mauhi Mayuka, que significa “mutirão” em kheuol e palikur, as línguas faladas pelos povos indígenas do Oiapoque. Já foram feitos seis episódios e outros ainda devem ser lançados. Todos ensinam como não cair em fake news e são divulgados em grupos de WhatsApp, nas redes sociais dos produtores e de associações parceiras como o Iepé – Instituto de Pesquisa e  Formação Indígena.

O grupo se fortaleceu com ações de combate às notícias falsas durante o início da vacinação contra Covid-19 no ano passado e seguem agora nas eleições. “A gente tentou focar nisso e ver como a gente pode fazer com essas informações não cheguem no território de forma distorcida”, conta. E para as eleições ela destaca haver recortes de falas dos candidatos descontextualizadas para descredibilizar o discurso do político em questão na campanha.

Ainda assim Luene defende que mesmo com essa curiosidade e vontade de passar informações adiante – características inerentes ao ser humano – é importante estimular questionamentos sobre a seriedade do que foi recebido. A principal orientação do grupo é: sempre duvide e cheque se há a mesma informação em mais lugares,, em locais comprovadamente jornalísticos e em agências de checagem.

“[Ná época] da vacinação. Fizemos uma formação focada em fake news, como isso se dá dentro das redes sociais, como podemos identificar e como se combate notícia falsa dentro do território. Para que eles consigam identificar e voltar para o território e dizer: ‘gente isso está muito estranho, vamos analisar e buscar mais informações, ver se tem esse tipo de informação em site mais confiável”, explica a comunicadora do povo karipuna.

eleições 2022

Combate às fake news pautou a Justiça Eleitoral neste ano

No TSE, 335 representações discutem informações falsas ou fake news

Ainda é difícil mensurar a abrangência das notícias falsas nesta campanha na região amazônica. A campanha pelo segundo turno está chegando ao fim e apenas depois de concluído todo o processo eleitoral que pesquisadores conseguirão investigar seu alcance e tentar analisar seu impacto.

No entanto, é possível observar um aumento significativo da judicialização do tema apenas ao examinar as ações discutidas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) neste ano.

Até o dia 27 de outubro foram ajuizadas 625 representações na Corte eleitoral. Desse total, 335 discutem de alguma forma fatos inverídicos, informações falsas ou fake news, ou seja, pouco mais que a metade das ações. No período eleitoral as representações tramitam de maneira preferencial em relação aos demais processos que dão entrada na Justiça Eleitoral.

A representação é um tipo de ação que pode ser proposta por qualquer partido político, coligação, candidato ou pelo Ministério Público em caso de descumprimento da Lei das Eleições, como, por exemplo, propaganda eleitoral irregular. A vantagem é que os prazos para julgamento das representações geralmente são curtos, havendo prazos de até 24 horas, como nos casos de análise de pedidos de direito de resposta.

Ao analisar os números do TSE, percebe-se que o número de representações entre o 1º e o 2º turno cresceram. Até o dia 2 de outubro – data do 1º turno das eleições – 149 representações de alguma forma discutiam fake news. O primeiro registro é no dia 15 de janeiro, ou seja, esse número compreende um prazo de 8 meses. Entre os dias 3 e 27 de outubro – pouco mais de 20 dias – foram registradas 186 representações na Corte Eleitoral.

Este número de representações (335) nas eleições de 2022 cresceu significativamente se comparado à 2018, quando foram protocoladas pelo menos 97 ações do gênero durante o pleito, de acordo com os dados abertos do TSE. Esse aumento foi puxado, sobretudo, por denúncias de fake news e pedidos de remoção de conteúdo e direitos de resposta.

cultura e educação

Podcasts se tornaram um meio de comunicação indígena

Rede de comunicadores informa e ensina os povos originários a buscarem notícias verdadeiras

Outra iniciativa é a desenvolvida pela Rede Wayuri, que também organiza oficinas e tem um podcast desde 2017 que leva o nome da rede. A rede é sediada em São Gabriel da Cachoeira (AM), o único município com quatro línguas oficiais – português, tucano, baniwa e nheengatu. Mais da metade da população local é indígena.

Wayuri significa trabalho coletivo e a rede diversifica suas ações para alcançar mais gente. A rede produz o podcast Wayuri e o programa Papo da Maloca que atualizam as comunidades indígenas das atualidades da política, assuntos de impacto como o período de pandemia e vacinação, esclarecimento sobre políticas socioambientais que impactam a Amazônia. Em alguns dos episódios, parte da comunicação é apresentada em outras línguas oficiais da região.

“O podcast é uma forma de valorizar o protagonismo dos povos indígenas”, defende Juliana Radler, assessora do Instituto Socioambiental.

Jornalistas foram até lá formar as comunidades: como gravar, como decupar, como entrevistar e como construir uma narrativa. Em 2020, a rede foi o único meio de comunicação a promover o debate entre os candidatos locais. Neste ano, ela tenta repetir o feito.

São Gabriel da Cachoeira é um município na fronteira com a Colômbia. É difícil mensurar o impacto de audiência do podcast, mas a região reúne 45 mil indígenas de 23 povos diferentes da região do Rio Negro. Em muitos locais as informações disseminadas pela rede são as únicas possíveis. Além de divulgar nas plataformas digitais, o áudio também é passado por rádio a territórios mais distantes. E as informações são traduzidas para os quatro idiomas mais comuns na região: nheengatu, tukano, baniwa e yanomami.

Lideranças indígenas da Rede Wayuri debatendo os efeitos da pandemia em oficina / Crédito: Rede Wayuri

A rede explica que mensalmente faz informativos sobre os territórios indígenas do rio Negro para suas 750 comunidades que são circuladas por WhatsApp, pelo rádio e por transmissão de arquivo por Bluetooth ou apps como ShareIT. O áudio também fica disponível em tocadores de podcast.

Eles explicam que informar também é uma forma de resistência e reparação histórica desses povos. Mostrar o dia a dia dos povos do alto Rio Negro também é uma forma de resgatar os costumes, as músicas, a a cultura e manter viva mesmo diantes de ameaças.

Claudia Ferraz, da etnia wanano, editora e produtora do podcast explica que membros da redes são chamados por representantes de outros povos para replicar o modelo e levar informação de qualidade às suas comunidades. A rede já recebeu prêmios internacionais por seu trabalho de multiplicadores.

“Uma vez alguns povos do Pará nos chamaram. A rede é um exemplo para eles e eles queriam entender como reproduzir. Eles queriam criar uma rede de comunicadores deles”, cita entre outros convites.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) monitorou casos de disseminação de notícias falsas isoladas durante as eleições. Segundo Dinanam Tuxá, advogado e coordenador executivo da Apib pela Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste (Apoinme), o que circulou foi uma tentativa de deslegitimar o direito dos povos originários de participarem dos espaços de poder.

“Há racismo que ainda impera, sobre a capacidade dos povos indígenas de ocupar tal cargo eletivo, dos povos indígenas estarem reivindicando esses espaços, de alguns deputados atacarem os povos indígenas por fazerem tal pleito”, conta. “Por mais que tenhamos sofrido ataques, nós conseguimos passar nossa mensagem de que podemos ocupar esses espaços, que temos conhecimento”.

Créditos
Reportagem: Bruna Borges e Flávia Maia
Arte: Lucas Gomes
Coordenação de projeto: Bruna Borges