Na última terça-feira (5/1), foi promulgada no Amazonas uma lei que prevê multa de R$ 1 mil a R$ 10 mil para quem, dolosamente, divulgar, por meio eletrônico ou similar, notícia falsa sobre epidemias, endemias e pandemias no estado. Para especialistas ouvidos pelo JOTA, contudo, a lei, que visa combater as fake news sobre coronavírus, é vaga e inconstitucional por violar a liberdade de expressão.
A Lei 5369/2021, que vigora desde o dia 5 de janeiro, conta com apenas três artigos. Além de prever a conduta, fixa que a multa será revertida para o apoio do tratamento de epidemias no estado do Amazonas. A norma não define qual órgão seria responsável por fiscalizar a publicação de eventuais notícias falsas, nem como isto seria feito. Também não delimita o que pode ser considerado notícia falsa ou não.
Advogados ouvidos pelo JOTA entendem que não se pode punir a propagação de notícias falsas sem que se conceitue esta conduta de forma explícita.
Para André Marsiglia, advogado constitucionalista especializado em liberdade de expressão, a lei apresenta diversos problemas. Em sua visão, a norma traduz o instituto das “fake news” de uma maneira equivocada. “Fake news não são notícias falsas, fake news são notícias fraudulentas, essa é a tradução correta do instituto jurídico”, explica o advogado. “Então uma notícia que deliberadamente é construída com dolo, com intenção, fraudulenta, para atingir a honra ou a reputação de alguém, é algo que poderíamos chamar de fake news. Quem vai dizer o que é verdadeiro e o que é falso?”.
Taís Gasparian, sócia do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian Advogados e especialista em Direito Digital, destaca que a Constituição proíbe qualquer lei que restrinja a liberdade de expressão. “E a definição do que vem a ser notícias falsas é um pouco difícil, então teria que ter uma definição do que seria isso, para depois poder fazer uma lei”, avalia. “Teria que ter alguma decisão judicial ou alguma deliberação legislativa neste sentido, então é muito difícil baixar uma lei sobre esse assunto como se a questão ficasse resolvida.”
Gasparian explica que todas as palavras que são inseridas no ordenamento jurídico devem ter uma definição, para que se tenha pelo menos uma ideia do que vem a ser aquilo. “Você precisa ter uma definição. Essa lei tem um fim mais político, de dar uma satisfação para o público, do que se combater o que se diz que vai combater”, afirma.
Na visão de Cássio Casagrande, colunista do JOTA e professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado da Universidade Federal Fluminense (UFF), a princípio o estado do Amazonas poderia estabelecer sanções administrativas para quem divulga informações falsas que podem colocar em risco a saúde e vida das pessoas. “Por exemplo, o Estado pode punir quem afirma que pode ‘curar’ doenças por métodos heterodoxos, razão pela qual se pode penalizar o curandeirismo ou a comercialização de remédios de eficácia não comprovado”, diz.
Entretanto, a lei amazonense não está punindo uma conduta, mas uma palavra. “Embora a ‘palavra falsa’ possa remeter a uma ‘conduta concreta’, parece-me que no caso a lei estadual do Amazonas confere discricionariedade excessiva ao Estado, pois não estabelece parâmetros objetivos para se determinar o que seria notícia falsa”, diz. Por isso, em sua visão, a lei teria um vício de inconstitucionalidade material.
Em relação à competência para editar uma lei neste sentido, os advogados divergem. Na visão de Casagrande, como o combate às fake news sobre coronavírus é uma matéria relativa à saúde, os estados têm competência para tratar sobre o tema, já que a Constituição estabelece que todos os entes podem atuar nesta área. Já Marsiglia entende que o estado estaria legislando sobre matéria constitucional, que é a liberdade de expressão, portanto estaria fora da competência estadual.
Na visão de Marsiglia, lei não tem eficácia jurídica – e se tiver, e resultar em punição, “é inconstitucional porque atinge a liberdade de expressão, e deve ser revisada pelos tribunais estadual e superiores”.
Outro ponto que o advogado destaca é que há uma “incongruência” ao prever que apenas fake news sobre o coronavírus e a pandemia publicadas por meio eletrônico ou similar serão objeto da lei. “Se eu publicar uma fake news na primeira página do maior jornal impresso de Manaus a lei me isenta, mas no portal do mesmo jornal, a lei me pune”, diz.