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Haddad: “podemos conviver com a extrema-direita por mais tempo do que se imaginava”

Ex-prefeito de São Paulo disse ao JOTA que Brasil vive sob a égide do Bolsonarismo, que pode se instalar no país

ciclo de debates Haddad
Fernando Haddad (PT), ex-prefeito de São Paulo / Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Para o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT), o Brasil vive hoje sob a égide do Bolsonarismo, que se resume no fato de a extrema-direita ter encontrado um canal de comunicação para se expressar. Apesar de essa realidade estar associada ao atual presidente Jair Bolsonaro (sem partido), ela transcende sua figura e pode se instalar definitivamente no país com as eleições que se aproximam.

“Podemos ter que conviver com a extrema-direita por um tempo mais longo do que seria imaginável há dez anos atrás. Eu, em 2016, modéstia à parte como cientista político, disse: a extrema-direita vem e vem para ficar. Não sei quanto tempo isso vai durar, mas ela encontrou um canal de expressão e quando isso acontece ela dificilmente sai de cena no curto prazo”, disse o ex-prefeito ao JOTA.

Segundo o ex-prefeito, o desafio da sociedade atual é fazer com que as pessoas compreendam os riscos envolvidos em uma agenda extremista para o meio ambiente, educação, ciência e tecnologia, saúde, relações exteriores, entre outras áreas. “Toda a agenda de extrema-direita na minha opinião traz um conjunto de problemas que vão se agravar se ela não for moderada”, afirmou Haddad.

Essa percepção de Haddad foi compartilhada em um diálogo realizado na manhã desta terça-feira (6/10), realizado pela Casa JOTA em parceria com o Insper, sobre processos de transição em governos municipais. O ex-prefeito participou do webinar ao lado da atual prefeita de Pelotas (RS), Paula Mascarenhas (PSDB).

Para ambos os políticos, o curtíssimo período de tempo disponível para fazer a transição de um prefeito para o outro neste ano trará inúmeros desafios para a administração pública, que precisará se reinventar para garantir celeridade aos processos.

O webinar tratou também das expectativas acerca das campanhas políticas de rua, prejudicadas pela pandemia da Covid-19, e das percepções dos gestores sobre a reforma administrativa.

Veja a seguir os principais pontos tratados no webinar:

Boas práticas para transição de governo

Paula Mascarenhas, que concorre à reeleição neste ano e já passou por três experiências de transição de gestão (2005, 2013 e 2016), avaliou que o primeiro fator para uma mudança tranquila é a “disposição dos líderes para fazer uma transição republicana, porque é a liderança que vai definir o caminho da gestão”. 

De acordo com a prefeita, ter um plano de governo muito claro e explicado para toda a equipe nova que vai chegar é imprescindível. Assim, disse, é possível adaptar as grandes linhas do novo governo aos processos que já estão em andamento.

Por parte do prefeito que está deixando o cargo, é importante ter um diálogo honesto e preciso sobre os problemas enfrentados na sua administração, bem como elencar propostas positivas que foram implementadas. “Quem está saindo tem a obrigação de apontar o coração, o cerne das dificuldades da gestão, mas também mostrar aqueles projetos que merecem ser projetos de Estado, e não de governo”, afirmou. 

Já para os prefeitos que estão assumindo, Haddad explicou que há procedimentos institucionais que precisam ser observados para garantir uma transição tranquila. Para além da disposição dos políticos, o ex-prefeito considera que é indispensável que não haja constrangimento em acionar quem está no cargo, principalmente neste ano com a pandemia da Covid-19.

“Quanto mais rápida for a transição, melhor. Então, um canal direto entre o chefe do Executivo e seu sucessor eleito tem que acontecer. Sem cerimônia. Esse ano vai ser muito curta a transição, então esse canal tem que existir com muita fluidez Tem que estar azeitado”, disse.

Além disso, lembrou que é preciso que haja uma equipe para fazer a ponte entre o gabinete do prefeito e as equipes que integram as secretarias, pois “muitas vezes a mediação é necessária”.

Por fim, disse Haddad, é importante estabelecer um canal com a Câmara dos Vereadores, já que o orçamento do ano seguinte deve ser aprovado neste ano. “Você facilita a vida do seu sucessor se o orçamento for aprovado já levando em conta algumas prioridades de quem vai entrar”.

Neste sentido, faz-se relevante o papel dos servidores de carreira, que podem ser aproveitados na administração seguinte. “É um conjunto de informações que passa de uma gestão para outra sem o ruído da linguagem humana, porque é o mesmo servidor que está levando a informação”, afirmou Haddad.

Na pandemia, avaliou Mascarenhas, os governos precisaram reinventar processos e se reconectar com a sociedade. Todos esses aprendizados devem ser explorados também nesta transição.

“Estamos passando por uma experiência de pandemia inédita, temos que aprender muito com ela. Sofremos muito, ainda estamos sofrendo, mas temos tido a oportunidade de um novo conhecimento, inclusive sobre a administração pública”.

Eleições 2020

Há uma preocupação generalizada com o impacto das Fake News no pleito deste ano, que será majoritariamente online.

“Sabemos que as redes sociais são um canal extraordinário de comunicação, mas também gera a possibilidade de as pessoas deixarem de ser quem são e se permitiram agressões, violências. Então é um terreno complicado e ainda estou avaliando como vai ser”, afirmou Mascarenhas.

Para Haddad, a desinformação é reflexo do tempo que se vive. “Respeitar a reputação de uma pessoa não é um gesto de ingenuidade política, pelo contrário, é um gesto de inteligência política”.

Em relação às campanhas de rua, a atual prefeita de Pelotas citou que, como gestora, ela teve a responsabilidade de restringir a circulação, mas como pré-candidata não pode impedir a livre manifestação democrática dos candidatos. 

“Não se pode censurar, não se pode tolher a livre manifestação [de rua na pandemia], mas ao mesmo tempo tem que encontrar um equilíbrio para preservar a saúde das pessoas”, disse.

Reforma administrativa

Tanto Mascarenhas quanto Haddad suscitaram a importância de uma reforma administrativa que alivie a máquina pública, principalmente em momentos de desequilíbrio fiscal, mas que valorize o trabalho e a formação do servidor.

“O serviço público brasileiro criou ao longo do tempo muitos vícios, e a tendência dos sindicatos dos servidores é achar que esses vícios são direitos e, por consequência, intocáveis”, disse Mascarenhas, acrescentando que os governos tendem a resolver problemas pontuais criando regimes, gratificações, sem pensar genericamente no todo e no futuro.

“Precisamos fazer reforma administrativa sim, rever algumas gratificações por tempo de serviço. Com tudo isso acaba que os governos trabalham para pagar a folha e deixam de conseguir fazer políticas públicas para toda a sociedade, inclusive para os servidores públicos. Então eu acho que é inevitável que se olhe para as carreiras, mas obviamente que não se pode prejudicar o servidor. Tem que ser para recuperar o equilíbrio, para poder valorizar o servidor, pagá-lo em dia, e cumprir a função do estado”, seguiu a prefeita de Pelotas.

“Em relação à questão da estabilidade, eu sou a favor da meritocracia no serviço público, mas a lei precisa ter muito bom senso e buscar formas que valorizem o servidor. A reforma administrativa futura tem que substituir as gratificações por tempo para criar gratificações que valorizam o trabalho e a formação do servidor”, completou.

Haddad elencou que há um problema no fato de que os governantes podem alterar as carreiras e os salários praticamente a qualquer momento, até o último ano de seu mandato. “Qualquer reestruturação que impactasse na folha de pagamento, isso só poderia ser feito no máximo nos dois primeiros anos de mandato. Senão, é fácil. Você faz uma reestruturação e deixa para o sucessor aquilo que você mesmo não assumiu como prioridade”.

Para o ex-prefeito, o país deveria ter critérios de progressão para o servidor, que não fosse só o passar do tempo, como é hoje. “Não acho que nada disso seria quebrar o princípio da estabilidade nesse sentido que estou abordando. Estabilidade não é engessamento. E o engessamento é contra produtivo para o próprio servidor. Aquele que está ralando, entregando, fazendo o trabalho seriamente, acaba não tendo benefício nenhum”, disse.

Três pontos, na visão de Haddad, deveriam ser explorados na reforma administrativa: disciplinar melhor o ingresso do servidor, com critérios definidos para o início de carreira, o processo de efetivação desse profissional, e a progressão de carreira. “É isso que vai muito mal no Brasil, não a estabilidade”.