Num país com 47,5 mil mortes violentas por ano, causa espécie perceber que é um conflito que se desenrola a mais de 10 mil quilômetros de distância o fato capaz de gerar debates acirrados entre forças políticas antagônicas e provocar temores sobre resultados eleitorais. Ninguém nega a relevância geopolítica do conflito entre Israel e Palestina. Porém, parece-me haver um problema inequívoco com nossa política doméstica quando as mortes brutais perpetradas pelo Hamas contra israelenses e a reação destes contra o terrorismo mobiliza mais esforços no debate público do que a epidemia de assassinatos que o Brasil enfrenta há décadas.
Naturalizamos os assassinatos em massa—sobretudo de pretos e pardos jovens nas periferias do país e indígenas em zonas de conflito agrário—porque é um assunto do qual as elites políticas à esquerda e à direita se esquivam na prática. Para a esquerda, a alienação parece ser maior, haja vista a falta de propostas para resolver a violência no país por parte de partidos e lideranças desse campo político. O fato de a violência policial imperar na Bahia, Estado governado pelo PT há quase duas décadas, resume a situação entre os chamados progressistas que nas eleições e eventos festivos não têm a menor vergonha em confiar no apoio dos mais pobres e minorias que sofrem com a violência de grupos fora-da-lei e agentes do Estado.
À direita, a proximidade com grupos religiosos—notadamente evangélicos que veem em Israel a manifestação de profecias bíblicas—leva lideranças a obter dividendos políticos ao retratar erroneamente a causa Palestina como intrinsecamente associada ao terror e à esquerda em tese moralmente corrupta. O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) chegou a associar o PT e Lula ao Hamas.
De fato, a julgar a movimentação nas redes sociais durante a última semana, para o eleitor simpático ao bolsonarismo nas periferias de nossas metrópoles, importa mais o que a religião prega do que os mortos na porta de casa. Na cidade do Rio de Janeiro, um claro reduto da direita, o complexo de favelas situado no eixo da Avenida Brasil ganhou alcunha nada lisonjeira de Faixa de Gaza em função dos constantes tiroteios e confronto entre traficantes de drogas e polícia.
A oposição entre árabes (muçulmanos ou não) e judeus projeta-se na política brasileira em grande parte devido ao domínio de São Paulo—a cidade, não o Estado—na dinâmica política nacional. Num primeiro momento, o relato que faço a seguir parece uma evidência anedótica, não generalizável: para quem não é paulistano, mas se mudou para a capital paulista—como foi meu caso há mais de 20 anos—choca até hoje ver como a cidade ainda é etnicamente dividida, em moldes similares às grandes metrópoles americanas, como Los Angeles e Nova York. Árabes e judeus estão entre as comunidades mais relevantes e influentes.
Não foi por outras razões que o prefeiturável do PSol o deputado federal Guilherme Boulos, passou a criticar abertamente o Hamas depois que o ex-secretário de Saúde de São Paulo Jean Gorinchteyn abandonou sua campanha por ele não ter mencionado o grupo em sua primeira manifestação contra os ataques terroristas perpetrados contra Israel.
Nossas estatísticas oficiais sempre ignoraram que, entre aqueles que se classificam como brancos no Brasil, há diferenças significativas em termos de renda em função de ancestralidade. O único levantamento feito nesse sentido pelo IBGE ocorreu na Pesquisa Mensal de Emprego de julho de 1998, que cobriu apenas as regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador e Recife. A pesquisa revelou que descendentes de árabes e judeus têm renda média superior à dos demais autoclassificados brancos—inclusive descendentes de alemães, espanhóis, italianos e portugueses. Tal vantagem econômica é convertida em influência política.
Estão certos aqueles que avançam suas causas junto ao establishment por ações de lobby e advocacy. É a regra do jogo nas democracias contemporâneas, nas quais o poder vai além da lógica “uma pessoa, um voto”. A capacidade de mobilização fora das urnas importa. O que revolta é ver políticos dos mais diversos matizes abraçarem o mundo enquanto dão as costas para o povo.
Esse é o retrato da classe política que tapa o nariz para a carnificina à qual nos já nos acostumamos embora seja tão cruel quanto guerras—para não falar que a violência generalizada acaba por minar a confiança nas instituições e, assim, na democracia. Como falar em igualdade de oportunidades em meio a tamanha violência. Certa vez ouvi de um líder religioso que é preciso cuidar dos pobres de casa em primeiro lugar. Pensemos, portanto, nos mortos à porta de nossos lares e famílias enlutadas em vez de lavarmos sangue e lágrimas do nosso povo com hipocrisia.