O prazo final para a repactuação do acordo de Mariana (MG) está marcado para 5 de dezembro de 2023. É o que prevê o cronograma das negociações em curso no Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF6), segundo o procurador da República em Minas Gerais Carlos Bruno Ferreira da Silva. Para ele, trata-se de uma data decisiva. Levar as tratativas para 2024 significa fracassar na reparação do Rio Doce.
Em entrevista ao JOTA, o representante do Ministério Público Federal em Minas Gerais (MPF-MG) responsável por atuar no acordo afirmou que a fase atual é a de elaboração de uma proposta final. Há ainda divergências entre o poder público em relação aos valores que devem ser distribuídos e a detalhes técnicos, como a quantidade de rejeitos a ser retirada do fundo do rio.
Mas a data é inafastável. “Chegamos a uma situação em que a solução é acordo ou acordo”, afirmou Silva. Essa é “a única hipótese de haver reparação para os atingidos do Rio Doce. Todas as outras hipóteses aventadas, que fogem da ideia desse acordo na mesa, são hipóteses de vender mais uma ilusão para os atingidos”.
Leia os destaques da entrevista:
Em que pé estão as negociações para a repactuação do acordo de Mariana?
Estamos no processo de formação de um texto final, de uma nova proposta. Ela avançou bastante, mas ainda há, inegavelmente, muitos desafios a superar. No último mês, houve uma aproximação do governo federal, no sentido de fazer novas propostas, mas também de entender que algumas das que já estavam na mesa atendem ao que é possível. Temos um cenário de pouquíssima efetividade, após quase oito anos, e uma ação inglesa que está prestes a ser julgada e negará a jurisdição brasileira. Então, houve um avanço em direção à formulação de uma proposta que também seja aceitável para as empresas, a fim de podermos finalmente solucionar esse problema.
Quais foram as propostas trazidas pela União?
Não posso divulgar, porque elas ainda nem foram apresentadas às empresas. O que posso dizer é: esse é um governo federal muito mais voltado para as pautas sociais, para as pautas ambientais. Houve um adensamento em relação a elas. É uma proposta que se preocupa mais com a situação futura dos atingidos e com o meio ambiente.
E quanto às antigas?
A base está na ideia da recuperação do rio de hoje para o futuro. Tem que haver um programa de saneamento básico que garanta 100% de tratamento de esgoto, de rejeitos. A segunda questão é a de reforço do SUS. É essencial haver estudos para verificar os danos ainda não conhecidos à saúde da população. Além disso, um acordo deve prever, de um lado, a aplicação pelo poder público em obras e no fortalecimento do serviço público, para uma melhora econômica radical no Vale do Rio Doce. De outro, tem que haver projetos e alguma parcela de dinheiro diretamente para os atingidos. Por fim, um acordo adequado deve atender também os municípios, a começar pelo de Mariana, além dos estados, para poderem retomar a sua capacidade de investimento, tão degradada ao longo desses oito anos.
Em relação a esses itens, já há um consenso? Sobre o quê já há consenso entre todas as partes?
Sobre isso, já há consenso, tem que ocorrer. Detalhes do modo de ocorrer estão sujeitos a algum tipo de conversa. E os valores que vão preencher cada uma dessas rubricas também são objeto de discussões. Mas, já se sabe quanto custa, se consegue avançar. Esses pontos são mais ou menos o conteúdo mínimo a ser contemplado no novo acordo no Rio Doce.
O senhor pode dar um exemplo de divergência?
Uma é o quanto se retirar de rejeito no fundo do rio. É uma discussão técnica. Quais são as consequências de tirar os rejeitos? Tirar mais de um ponto ou de outro? Existem discussões que necessitam de um tempo e muitas vezes os técnicos, igualmente bem-intencionados, divergem. Noto que as divergências são muito técnicas e, por vezes, envolvem alguma insegurança de informação. Dou exemplo da saúde. Nunca houve os estudos adequados para aferir o custo para o Sistema Único de Saúde de todas as gestões. As dificuldades estão muito fundadas em como pedir e o que pedir, e também em uma insegurança técnica.
Como as indenizações individuais estão sendo feitas hoje?
Na prática, não estão. Havia um sistema ruim, mas que pagava alguma indenização, o Novel. Uma decisão de um juiz que acabou de assumir a causa fechou de uma vez só o programa. O MPF até recorreu da decisão e recorrerá no segundo grau. Nos preocupa muito, porque nada foi proposto para ser colocado no lugar. Vivemos um momento de absoluto vácuo de solução, depois de oito anos, na questão das indenizações individuais.
A tendência é que quem foi lesado pelo desastre receba uma reparação integral, como há muito se pede, ou que saia uma nova fundação, uma Renova 2.0?
Uma Renova 2.0 está fora de questão. Há vários participantes na mesa que visam, na medida do possível, a extinção da Renova. Sou um dos que consideram a Renova um enorme fracasso dos acordos ambientais no Brasil e um modelo que certamente não deve ser repetido, muito menos estimulado. A possibilidade de ser uma Renova 2.0 é zero, é abaixo de zero. Essa reparação tem que envolver dinheiro na mão do Estado brasileiro e dos atingidos. Não devemos ter intermediários para fazer a maioria das medidas que garantam a reparação integral.
Existe um prazo para que esse acordo saia? Se sim, qual?
Esse acordo tem que sair para ontem. Há um perigo enorme de o Judiciário inglês, através de um acordo, de uma sentença, alcançar um valor de reparação antes e muito provavelmente será impossível qualquer reparação no Brasil. Teremos centenas de milhares de atingidos sem qualquer tipo de reparação no Brasil se esse acordo em Londres sair. Se esse acordo não sair até o final deste ano, infelizmente, a Justiça brasileira, os atores estatais brasileiros vão fracassar na reparação do Rio Doce. O último prazo final proposto pelo desembargador é o dia 5 de dezembro de 2023, e entendo que esse prazo é peremptório. Se não sair até lá, infelizmente, tudo leva a crer que a reparação não sairá no Brasil.
O senhor disse dezembro, mas a resposta já veio com uma ressalva. Qual é o risco em relação a esse cronograma?
O prazo-limite é 5 de dezembro. Ele já foi, por ‘n’ razões, postergado em alguns momentos. A ideia, quando o governo federal voltou para a negociação, era de que, em 90 dias, a gente concluísse. Foi em abril. As dificuldades naturais de uma negociação dessa magnitude já causaram alguns atrasos. Mas me parece que a data de 5 de dezembro, desta vez, é inafastável. Seria muito interessante que a gente não passasse mais um aniversário da tragédia do Rio Doce sem acordo. Tenho convicção de que, se isso for para 2024, não haverá acordo. É uma tentativa final.
A ação que tramita na Inglaterra pode impactar a repactuação do acordo?
Não tenho dúvida. As empresas não vão pagar duas vezes. Se elas fizerem um acordo ou forem condenadas na Inglaterra, vão ter que pagar ou ficar sujeitas a uma ação de liquidação de sentença, que vai durar muito tempo. Vão alegar isso no Judiciário brasileiro e haverá um completo desinteresse em fazer qualquer acordo. Quem atrasa esse acordo no Rio Doce, quem dificulta o acordo no Rio Doce, quem faz propostas inalcançáveis para o acordo do Rio Doce, no fundo, age em prol da jurisdição inglesa, consciente ou inconscientemente.
Em audiência pública, o senhor afirmou que a Justiça brasileira — com o sistema de sentenças, recursos e quatro instâncias — também teria dificuldade em garantir uma reparação aos atingidos. Se o acordo não for fechado até dezembro, qual seria o melhor caminho para reparar o dano causado a essa população?
Chegamos a uma situação em que a solução é acordo ou acordo. Se não houver, o processo tramitará no seu ritmo normal, tentando se acelerar o máximo possível, mas no ritmo do Judiciário brasileiro. Isso significa pensar em décadas para uma decisão final. Não há a menor dúvida de que processos similares levaram décadas para que fosse alcançada uma decisão transitada em julgado, o que não seria o ideal. Quero trazer justiça para a pessoa que sofreu a injustiça, não para o neto da pessoa que sofreu a injustiça.
Na sua visão, atualmente, as perspectivas são mais positivas ou negativas?
As perspectivas já foram mais positivas. Tínhamos um acordo quase pronto no final do ano passado. Não avançamos muito ao longo desses quase 10 meses. Mas também já foram piores do que são hoje. Está havendo um avanço muito grande em relação ao governo federal. E a minha perspectiva é que a gente consiga terminar esse acordo até o dia 5 de dezembro, porque vejo isso como a única hipótese de haver reparação para os atingidos do Rio Doce. Todas as outras hipóteses aventadas, que fogem da ideia desse acordo na mesa, são hipóteses de vender mais uma ilusão para os atingidos.