Cada vez mais, se discute o Estado, o Direito e o Estado de Direito, no Brasil e no mundo. Diariamente, informações sobre os temas são amplamente veiculadas nas mais diversas mídias. Comentaristas de todos os campos do espectro político compartilham suas opiniões sobre os conceitos (em algumas ocasiões, quase como verdades imutáveis). Entretanto, pouco se sabe dos aspectos centrais do debate – o Estado, o Direito e o Estado de Direito – e menos ainda sobre os diversos campos com os quais esses se relacionam.
A intenção desta coluna, parafraseando outra colunista do JOTA, Beatriz Rey, é a parceria entre academia e imprensa, com o intuito de contribuir para a discussão de temas relacionados ao Estado de Direito no Brasil. Assim, buscamos participar do debate público, compartilhando conhecimento especializado sobre esses temas. Contribuição que ocorrerá com a participação de convidados, especialistas em diversos campos, com o objetivo de analisar com mais profundidade os temas propostos, para além do Estado e do Direito.
Para a coluna de lançamento, convidamos Emilio Peluso Neder Meyer, professor de Direito Constitucional da UFMG. Recentemente, o convidado publicou uma obra que analisa diversos aspectos do que ele compreende como uma “erosão constitucional” pela qual o país passa, analisando os fracassos e sucessos do projeto constitucional de 1988.
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Inúmeras publicações da última década procuravam enquadrar sob lentes acadêmicas o processo global de gradativa perda da qualidade das democracias. A grande dificuldade de escrever sobre o tema era que cada perspectiva parecia desejar fechar um diagnóstico a partir de um novo conceito. Em certos casos, a grande variedade de propostas levava estudiosos do tema à confusão e até prejudicava o debate científico e a discussão pública sobre o tema. De tal forma, parecia mais relevante contribuir com a questão partindo de propostas já existentes, que traziam contribuição efetiva, e verificar no que elas poderiam ser complementadas.
A ideia de “erosão democrática” defendida por Ginsburg e Huq é um desses conceitos, partindo de uma definição básica ou liberal de democracia. O que seria objeto de ataque por governos iliberais eram pressupostos como liberdades civis básicas (liberdade de associação, liberdade de reunião), a ocorrência de eleições periódicas e previsibilidade gerada justamente pelo tema dessa coluna, o Estado de Direito.
O que parece faltar a essa estrutura, entretanto, são determinações constitucionais presentes em “sociedades periféricas”. Direitos sociais, econômicos e relativos à igualdade, por exemplo, podem ser tão caros para contextos como o Brasil, a Colômbia ou a Índia quanto as mencionadas exigências liberais. Ainda assim, aqueles pressupostos liberais também são objeto de violação nesses países. Pelo ataque estrutural a esses direitos – um processo detrimental – ocorreria a erosão. Esse processo poderia ser identificado de forma que não há delimitação temporal clara (ao contrário do colapso, marcado por um caráter episódico, por exemplo).
A erosão constitucional indica, assim, uma afetação de uma noção mais capaz de transitar por contextos constitucionais muito diversos: a de identidade constitucional. Cada contexto terá seus próprios elementos a serem prejudicados por propostas iliberais. De qualquer forma, o Estado de Direito pode estar em perigo em qualquer um deles.
Seja diante de erosão, seja diante de colapso, o Estado de Direito tem sido sempre um vetor normativo constitucional posto em cheque no Brasil. Poderíamos enunciar inúmeras situações em que se verifica sua desconsolidação – que pode ser analisada ou ilustrada de diversas formas. Por exemplo, o World Justice Project Rule of Law Index, um projeto que procura medir a adesão de diversos países ao Estado de Direito, indica números nada auspiciosos para o Brasil. No ranking de 2015, ocupávamos a 46ª posição, entre 102 países (em que, quanto mais abaixo na tabela, menor a efetividade de instituições jurídicas). Em 2022, o país caiu para a 81ª posição, entre 140. Esses dados levantam algumas questões interessantes, que foram objeto de pesquisa no Brasil e no exterior.
Em primeiro lugar, é possível concluir que a queda na efetividade do Estado de Direito pode acompanhar o mal desempenho democrático. É possível observar um paralelo entre a linha descendente de erosão no país – e a queda de posições em índices relativos ao Estado de Direito – a partir do questionamento do resultado eleitoral presidencial pelo então candidato Aécio Neves no final de 2014. Essa linha abarcou um processo de impeachment questionável em sua constitucionalidade (ou mesmo um golpe parlamentar), a aprovação de uma emenda constitucional desconstitucionalizante e a eleição de um presidente com declaradas posições inconstitucionais.
Diante desse contexto, a perda de performance em indicadores de Estado de Direito e democracia liberal no país, pode ser observada por diversos núcleos especializados. O Varieties of Democracy (V-DEM), por exemplo, indicou uma queda de 0,78, em 2015, para 0,52 em 2022, em relação à qualidade da democracia no Brasil – um número próximo ao do ano de 1988 (0,53).
Ainda nesse contexto, diversas pesquisas apontam que o lavajatismo, ou o movimento de combate à corrupção decorrente das premissas seguidas pela Operação Lava Jato, não contribuiu para o fortalecimento do Estado de Direito. Ainda que a operação tenha permitido rever o sistema de financiamento eleitoral de partidos políticos e coibir práticas ilegais nesse campo, o lavajatismo trouxe muito mais comprometimento do Estado de Direito (e de suas garantias processuais decorrentes) do que contribuições para sua consolidação. Em outras palavras, e como parte do processo de erosão constitucional, pode-se perceber que mesmo o Poder Judiciário, seja com decisões contraditórias de seus tribunais, seja com o voluntarismo de juízes que buscam ditar a moralidade pública, pode ser um detrator do Estado de Direito.
Entretanto, é possível afirmar que o processo remonta, em verdade, ao próprio momento transicional da ditadura de 1964-1985 para a atual democracia constitucional. Nesse sentido, a ausência de responsabilização de agentes do regime anterior pelos crimes contra a humanidade cometidos no período é um aspecto central para a compreensão do processo de erosão. Ainda que o país tenha sido condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos nesse campo, nos casos Gomes Lund (2010) e Herzog (2018), as marcas da impunidade deixadas pelo famigerado julgamento da ADPF 153 ainda se fazem sentir. Salvo uma única condenação em 2021, a omissão judicial deixou os mais retrógrados dos setores militares confortáveis para retornar à política e insistir em nela permanecer.
Outro ponto da erosão se relaciona com insistentes políticas socioeconômicas de caráter neoliberal. Estas funcionam como um empecilho às determinações de constitucionalismo social da Constituição de 1988 e à efetivação do princípio da igualdade. Em outras palavras, há uma erosão em curso desde, pelo menos, 5 de outubro de 1988, em que inclusões buscadas pelo texto constitucional (de gênero, de raça, de classe social, de indígenas) ainda permanecem alheias a políticas públicas. Evidentemente, há diferenças marcantes nos últimos 35 anos e em relação a mandatos presidenciais e há muito o que reconstruir ante a desídia dolosa dos últimos anos. Entretanto, essa é uma questão fundamental para a qual a Constituição de 1988 oferece respostas, e que precisa ser constantemente recobrada.
Em relação ao citado constitucionalismo social, a igualdade, e ao Poder Judiciário mencionado anteriormente, é preciso ter em mente que tem havido um processo gradativo de insulamento em relação à sociedade – que abarca as carreiras jurídicas em geral. Tal processo se dá por formação, remuneração, práticas, benesses e mesmo decisões judiciais que tendem a distanciar os tribunais do que o constitucionalismo demanda em sua aplicação cotidiana. Tal diagnóstico não pode nunca ser confundido com a defesa golpista do rompimento com esse Poder, mas é necessário repensar as relações entre academia e advogados, as formas de nomeação para carreiras jurídicas e de seleção de magistrados (em sentido lato), dentre outros aspectos.
De forma ainda mais complexa, se faz imperativo atentar para como os militares também fazem uso de benefícios de Estado similares, especialmente quando engajados na política. Essa não é uma história nova. Pelo menos desde o início do século 20, a militarização da política, normalmente por oposição ao Estado de Direito, permeou o caminho para um tipo de entronização descabida da burocracia das Forças Armadas como agente de um defunto poder moderador. Se as primeiras décadas do pós-1988 assistiram a uma cortina de fumaça de retorno aos quartéis – que escondia sua presença constante em temas de segurança pública –, o período recente presenciou a total incorporação destes à política nacional.
Importante ressaltar que esse movimento ocorreu em paralelo com a normalização da entrada de milícias na política, principalmente a partir do estado do Rio de Janeiro, também no contexto do bolsonarismo. Não seria à toa que a ocupação do campo digital da desinformação seria objeto de predileção desse tipo de iliberalismo à brasileira, cujo apelido também seria proposital: milícias digitais. Nesse contexto, o aumento da propagação de fake news – especialmente pelo chamado “gabinete do ódio” – foi um dos instrumentos da criação de fantasmas e de desconfiguração de decisões autônomas de soberania popular e do voto.
Todas as formas de erosão citadas acima dragaram as instituições para o 8 de janeiro de 2023, uma verdadeira aula de tentativa fracassada de colapso, ruptura ou, diretamente, golpe. A rapidez da resposta das instituições para o atentado foi – e continua a ser – central para reverter o processo de erosão constitucional, e demonstra tanto o caráter setorizado e minoritário da tentativa quanto sua flagrante inconstitucionalidade.
No momento em que o STF começa a decidir se recebe as centenas de denúncias contra os acusados de agressão ao Estado democrático de Direito, a prisão de um tenente-coronel da reserva da Aeronáutica aparece como um indicador, ainda que tímido, de certa mudança institucional. O que se espera é que se trate de mudança efetiva em prol do Estado de Direito, e não mera composição. Esta coluna, por meio de debates como o que propusemos neste primeiro texto, espera poder contribuir para essa mudança – para além do Estado e do Direito.