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O papel do Ministério Público no processo penal estabelecido pela Constituição de 1988

Constituição fez opção inequívoca pelo sistema penal acusatório

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Prédio da PGR - Foto: João Américo / Secom / PGR.

A Constituição de 1988 instituiu o sistema penal acusatório, em substituição ao sistema inquisitorial, e mudou o modo de fazer justiça no Brasil. Cumpre implantá-lo definitivamente, em todas as instâncias judiciais.

O método acusatório estabelece rigorosa separação entre as funções de acusação, defesa e julgamento. É um processo de partes: acusação e defesa contendam em igualdade de posições, figurando o juiz como o terceiro vértice dessa relação, equidistante das duas partes. No sistema inquisitorial, de raízes medievais, o juiz colhe provas, inquire testemunhas diretamente, conduz a iniciativa da instrução criminal e, por fim, julga a ação penal.

No sistema acusatório, o juiz deve abster-se de qualquer papel ativo nas fases de investigação e de acusação. Este sistema transforma o processo penal em ambiente argumentativo, promovido pelas partes, com apresentação de fatos e razões. A solução final decorrerá de convicção judicial obtida após ampla discussão legal em torno de fatos e provas trazidos pelas partes ao Judiciário. Este sistema preserva a neutralidade do juiz e minimiza o risco derivado de compreensões pré-constituídas. Também prestigia a paridade argumentativa entre acusação e defesa, com observância do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.

A Constituição de 1988 deu, por isso, ao Ministério Público novas atribuições, situando-o fora da estrutura dos três poderes da República com autonomia e independência. Legou ao Ministério Público o relevante papel de instituição essencial à justiça – incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis –, alçando-o ao estatuto de defensor da sociedade e da própria Constituição.

Também atribuiu à instituição papel singular na persecução penal: é sua a titularidade exclusiva da ação penal pública, dela repontando a prerrogativa de orientar a condução das investigações, a ter a opinio delicti, fazendo juízo próprio sobre a existência de justa causa para o oferecer a denúncia. Ao Poder Judiciário, por sua vez, incumbe a função jurisdicional: a atribuição de, provocado pelo Ministério Público, solucionar os conflitos mediante a aplicação da lei penal.

O princípio acusatório – com efetiva separação das funções de defender, acusar e julgar – tem a virtude de assegurar a imparcialidade do juiz, que é conceito da essência do Poder Judiciário. Não se compreende o juiz sem o atributo da neutralidade. A ideia de jurisdição está indissociavelmente atrelada à de um juiz isento. Como o processo é meio de resolução de conflitos, é fundamental que aquele que dá solução à lide seja imparcial.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos tem duas decisões importantes sobre o sistema acusatório, adotado em toda a Europa. No Caso Piersack vs. Bélgica, assinalou que os tribunais devem inspirar confiança nos cidadãos, em uma sociedade democrática. Por isso, o juiz em relação ao qual possa haver razões legítimas de dúvidas quanto à sua imparcialidade deve abster-se de julgar o processo. Concluiu ser possível afirmar que o exercício prévio de determinadas funções processuais permite dúvidas sobre a parcialidade do juiz. No caso De Cubber vs. Bélgica, assentou que a direção, praticamente exclusiva, da instrução preparatória das ações penais pelo juiz compromete o juízo de valor sobre a culpabilidade do acusado, mostrando-se legítimo, nestas condições, o temor pela ausência da garantia de imparcialidade.

Estes casos assinalam que a percepção de imparcialidade é importante para a credibilidade e para a confiança na justiça. Esta percepção é afetada quando há a intervenção do juiz em função diferente da de julgar.

A escolha constitucional pelo sistema acusatório não foi ao acaso: atribui a cada magistratura (Ministério Público e Judiciário) o exercício de seu devido papel, fortalecendo o Estado Democrático de Direito. Neste contexto, a atuação que não atenda à divisão de atribuições do sistema acusatório denota intervenção em função típica e privativa de outro ator do sistema de justiça e afronta a Constituição.

Enfraquecer o papel do Ministério Público, ao limitar suas funções institucionais na instrução criminal, com potencial de reduzir sua eficiência no sistema de Justiça, constitui afronta à Constituição.

O sistema acusatório tem sido amparado pelo Supremo Tribunal Federal, em inúmeros precedentes que assentaram a titularidade exclusiva do Ministério Público sobre a ação penal pública e o caráter da função judicial durante as investigações e no curso da ação penal.

Esta exegese não se modifica nas situações em que o inquérito tramita no Judiciário, por força de foro por prerrogativa de função: o STF entende que é do Ministério Público o mister de conduzir o procedimento preliminar, de modo a formar adequadamente o seu convencimento a respeito da autoria e da materialidade do crime, atuando o Judiciário apenas quando provocado e limitando-se a coibir ilegalidades manifestas.

Também permanece quanto à convicção da ausência de suporte probatório apto à promoção da ação penal ou à existência de situação que iniba sua propositura: deve o juiz abster-se e prestigiar a autonomia do Ministério Público, que deriva da Constituição.

Reescrevendo as palavras do Supremo Tribunal Federal, a Constituição fez opção inequívoca pelo sistema penal acusatório. Disso decorre a separação rígida entre, de um lado, as tarefas de investigar e acusar e, de outro, a função jurisdicional. Mais que preservar a imparcialidade do Judiciário e a confiança na Justiça, esta separação de funções promove paridade de armas entre acusação e defesa, em harmonia com os princípios da isonomia e do devido processo legal (ADI 5104, julgada em 21/5/2014).