
Qual serviço público queremos para os próximos quatro anos? Os presidenciáveis têm anunciado algumas de suas propostas de reformas no âmbito do funcionalismo público. Mas o tema parece não estar recebendo a merecida atenção, sobretudo do ponto de vista jurídico. Para contribuir com o debate, o Núcleo de Inovação da Função Pública, da Sociedade Brasileira de Direito Público (sbdp), em colaboração com o JOTA, publica a série “Quais as propostas dos presidenciáveis para o serviço público?”.
Composta por quatro textos, a série abordará as propostas para o serviço público dos quatro candidatos à Presidência melhor posicionados segundo as pesquisas eleitorais mais recentes: Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Jair Bolsonaro (PL), Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB). Cada artigo apontará três propostas para o serviço público do respectivo candidato, buscando contextualizá-las, em meio às discussões contemporâneas sobre RH do Estado, e analisá-las criticamente, à luz da produção acadêmica recente.
As propostas de cada candidato foram escolhidas, sobretudo, com base nos programas de governo apresentados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Eventualmente, declarações dos candidatos aos meios de comunicação também serão usadas para esclarecer pontos do programa. O presente artigo, que inaugura a série, abordará as propostas do candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Na sequência, o segundo artigo analisará as propostas de Jair Bolsonaro; o terceiro, de Ciro Gomes; e o quarto e último artigo, de Simone Tebet.
*
O candidato Lula propõe programa de governo intitulado Reconstrução e transformação do Brasil, o qual, em seção que leva o nome de “defesa da democracia e reconstrução do Estado e da soberania”, abarca temas ligados à gestão de pessoas no setor público.
E quais as propostas do candidato para o serviço público?
1) Valorização dos servidores públicos
O programa do candidato prevê a “retomada das políticas de valorização dos servidores públicos”.[1] A proposta, formulada de modo genérico, impossibilita uma análise mais aprofundada. Contudo, permite reflexão sobre tema que deverá ser enfrentado por qualquer presidenciável que busque valorizar o funcionalismo: a desigualdade no setor público.
A mídia tem dado grande destaque para as tentativas de se mitigar os supersalários na elite do funcionalismo público (sobre o tema, ver artigo de Jacintho Arruda Câmara). Mas outro foco de desigualdades no setor público, menos presente nos meios de comunicação, é a precarização dos agentes públicos contratados por tempo determinado.
A Constituição prevê, para casos de “excepcional interesse público”, a contratação de agentes por tempo determinado. Mas a excepcionalidade não é real. Temporários são quase metade do pessoal em alguns estados e há necessidades reais dos serviços públicos, que não se pode ignorar.
Mas o crescimento do número de temporário não veio com a indispensável modernização de regras e processos, ocasionando problemas de governança. Por exemplo: as leis subnacionais, que regem essas contratações nos diversos estados e municípios, nem sempre asseguram direitos mínimos aos temporários. O resultado é uma séria distorção sistêmica (sobre isto, ver artigo de Vera Monteiro). Lidar com cenários como esse é medida necessário para se avançar no combate à desigualdade no setor público.
2) Cotas sociais e raciais em concursos públicos
O candidato Lula também propõe a “continuidade das políticas de cotas sociais e raciais na educação superior e nos concursos públicos federais, bem como sua ampliação para outras políticas públicas”.[2]
A proposta liga-se ao tema da promoção da diversidade no setor público. A composição do pessoal no serviço público parece não refletir satisfatoriamente a diversidade existente em nossa sociedade. No âmbito étnico-racial, por exemplo, embora 56% da população brasileira se declare negra, no Executivo federal apenas 35% dos servidores se declaram pretos ou pardos. Há falta de diversidade, também, no tocante à distribuição por gênero. Mulheres ocupam a maioria dos postos do Executivo e do Judiciário federais, mas ainda estão sub-representadas em cargos de liderança, respondendo por apenas 30% das funções comissionadas da administração federal.
A mudança desse cenário passa por diversos aprimoramentos jurídicos, como: ampliar a edição de normas prevendo reserva de vagas nos estados (hoje, menos da metade dos estados contam com normas do tipo); promover a diversidade nos cargos de liderança (já existe até lei federal nesse sentido, mas que não é efetivamente aplicada); modernizar a verificação do direito à reserva de vagas (aspecto polêmico, que enseja judicialização); e implementar a reserva de vagas em outros processos de seleção, para além dos concursos públicos (sobre tais pontos, ver pesquisa desenvolvida pela sbdp em apoio ao Movimento Pessoas à Frente).
A proposta do candidato não entra em detalhes quanto à estratégia para aprimoramento da reserva de vagas em concursos públicos. Mas avançar nessa pauta dependerá, em grande medida, da elaboração de respostas específicas aos problemas concretos enfrentados atualmente por essa política de promoção da diversidade no setor público.
3) Respeito à diversidade no serviço público
O candidato Lula propõe, por fim, “aprimorar o Sistema Único de Segurança Pública, modernizando estratégias, instrumentos e mecanismos de governança e gestão”.[3] O programa afirma que a “valorização do profissional de segurança pública será um princípio orientador de todas as políticas públicas da área”, prevendo a implementação de “canais de escuta e diálogo com os profissionais, programas de atenção biopsicossocial, e ações de promoção e garantia do respeito das suas identidades e diversidades”.[4]
Tal proposta, assim como a anterior, enquadra-se no tema da promoção da diversidade no setor público, mas a partir de uma perspectiva diferente: a busca por outros instrumentos de promoção da diversidade, para além da reserva de vagas em processos de seleção de pessoal.
Diante dos números, especialistas têm levantado a possibilidade de que a mera reserva de vagas em concursos públicos não seja suficiente para promover, de modo satisfatório, a diversidade no setor público (ver, por exemplo, artigo de Anna Carolina Migueis). Nesse sentido, faltariam outros mecanismos de promoção da diversidade, ligados à própria permanência de servidores na máquina pública. Alguns exemplos de medidas nesse sentido são: maior acessibilidade ao local de trabalho (para pessoas com deficiência, por exemplo); possibilidade de uso do nome social em âmbito profissional (acompanhada de medidas antidiscriminação); e igualdade de direitos funcionais.
A promoção da diversidade no setor público é pauta desafiadora e que demandará grande atenção nos próximos anos. Além de aprimoramentos na política de reserva de vagas, faz-se necessário também o desenho de outros mecanismos para assegurar o respeito à diversidade no setor público. Para além do compromisso com a pauta, a efetiva promoção da diversidade dependerá da capacidade do governo de desenhar políticas públicas aptas a endereçar, de modo consistente, as questões que resultam em óbices ao acolhimento da pluralidade no interior do serviço público.
O próximo artigo da série, que será publicado nesta quarta (14), analisará as propostas do candidato à reeleição, Jair Bolsonaro.
[1] Item 116 do programa de governo.
[2] Item 39 do programa de governo.
[3] Item 32 do programa de governo.
[4] Item 33 do programa de governo.