Coronavírus

Polícia e pandemia

O que a Covid-19 nos ensina sobre a proteção dos profissionais de segurança pública?

Foto: 28ª CIPM / Ascom

Nas cidades brasileiras, policiais militares abordam pessoas que estão em aglomerações ou estabelecimentos que descumprem as medidas de suspensão das atividades. O fato parece trivial, mas há algo novo: nesses casos, a gestão do espaço público não se faz apenas em nome do controle da criminalidade, mas em razão da necessidade de preservação da saúde pública, que também é bem jurídico protegido pelo direito penal.

O padrões estabelecidos de contenção e isolamento estão em debate aberto no cotidiano, na mídia, nas redes sociais e na política. Em oposição, um discurso de liberdade econômica, insensível às mortes e à magnitude da tragédia anunciada pela ciência, e, de outro, um discurso de restrição e isolamento das atividades sociais que intenta reproduzir o que já se observa com as experiências de outros países e dos padrões científicos.

Em comum, o medo. O primeiro lida desastrosamente com o medo da recessão e do rebaixamento social provocado pela paralisação da atividade econômica, num país em que as garantias trabalhistas foram reduzidas e o número de trabalhadores e micro empreendedores sobrevivem de negócios precários. O segundo articula o medo que incide sobre a segurança pessoal, o medo da doença e da morte. 

Todavia, os Policiais Militares costumam lidar com um certo consenso social, decorrente das políticas punitivistas, sobre a legitimidade de sua ação de repressão às práticas ilegais identificadas no discurso de guerra às drogas e de “combate” à criminalidade. Para a cultura policial essa atribuição no plano sanitário pode ser reinserida nos discursos já conhecidos: descumprimento das determinações das autoridades, desobediência à lei e, de forma ainda mais ampla, como manutenção da ordem.

Porém, a facilidade de transformar a Policia Militar numa peça chave da nova gestão da crise, decorrente do princípio da hierarquia, não resolve tudo. Os comandos militares mais próximos dos administradores locais e do debate científico sobre a pandemia percebem as dimensões das consequências das lacunas na gestão da crise. Lidam com o risco de que a crise na saúde pública se transforme em uma crise “da ordem”. 

Nos países que enfrentaram primeiro a pandemia do Covid19, quem entra em contato direto com as pessoas infectadas quando há contaminação comunitária? O rol de funcionários públicos que irão integrar o fluxo de gestão dos infectados, administrar os conflitos sobre as restrições de quarentena e garantir o isolamento social tem variado por conta da estrutura institucional de cada país, mas o que tem se mostrado mais eficaz é sempre a adoção de medidas preventivas com menor contato físico entre os profissionais e a população. A princípio as tarefas são de orientação e auxílio, mas envolve o atividades mais diretas – interdição de atividades, contenção de infectados que não seguem determinações médicas etc.

As Policias Militares, motivados por demandas corporativas, compuseram uma parte importante do eleitorado do atual Presidente de República, expostos ao fluxo de mensagens pseudocientíficas e à guerra da pós-verdade. 

No Brasil, em comunidades pobres, para o bem e para o mal, o Estado é a Polícia Militar. A chegada da doença em regiões de baixa renda acrescenta um novo ingrediente a esse cenário, recentemente explorado pelo populismo do Presidente da República: como irão reagir as pessoas excluídas de direitos sociais, como as garantias trabalhistas, empurradas para a informalidade que se confunde com a precariedade porque não são alcançadas pelas políticas de financiamento e investimentos públicos? Ficarão entre o medo da fome ou da morte pela doença? E nesse cenário como lidarão com os controles públicos? 

Na crise, o papel de um governo central é oferecer às pessoas mais vulneráveis alternativas de sobrevivência e de cumprimento das determinações de isolamento. A desarticulação e a incapacidade de gestão do governo federal tem sido manchete cotidiana, banalizando o sofrimento e a morte que se anuncia. A mensagem do Presidente parece ser essa: “Eu me importo com você, mas não posso fazer nada. Quem está restringindo suas chances de lutar pela sobrevivência não sou eu, são eles.”

Na linha de frente, já se tem notícia dos impactos da pandemia sobre os policiais. As cidades de Nova York, São Paulo e Rio de Janeiro, mostram como a contaminação está alcançando os trabalhadores da segurança. Entre os casos de contaminação por covid-19 já se contabiliza o caso da Sargento Magali Garcia, de 46 anos, que morreu no dia 30 de março em São Paulo, bem como se registram o afastamento de mais de 300 profissionais de segurança com sintomas de coronavírus no Rio de Janeiro, na mesma proporção do que está ocorrendo com os policiais em Nova York. Policiais Militares no Brasil devem ser incluídos no grupo de risco, um grupo estratégico por seus padrões de ação, circulando em vários ambientes da cidade, e também em ambientes institucionais, como uma convivência coletiva e pessoal com seus pares.

Os padrões de policiamento e de formação de equipes deveriam evitar a disseminação interna e externa. As famílias dos policiais, mesmo daqueles assintomáticos, podem ser profundamente afetadas com a ausência de uma política de testes massivos e pela falta de assistência médica.

O discurso sobre a saúde pública traz novos problemas. Qual a preocupação das instituições e do governo federal com os Policiais Militares? Treinamento e equipamento são palavras chaves. Como lidar com conflitos evitando contato e como entrar em contato, reduzindo os riscos de contaminação? O Ministério da Justiça convocou a Força Nacional para atuar diretamente, por 60 dias, nas ações de prevenção ao Covid-19, porém, não se apresentou um plano de ação e prevenção dos riscos.

Os Policiais Militares têm a obrigação de enfrentar o perigo. Todavia, expô-los a riscos previsíveis, sem instrumentos adequados, demonstra o desprezo dos governos por sua função essencial e, ao mesmo tempo, por uma parte importante de seu eleitorado. Mas esta pandemia também parece redefinir alguns papéis e pode reforçar a ideia de que a função desta tão importante força pública é salvar vidas.