A Petrobras e as distribuidoras de gás natural vêm negociando, desde meados de outubro, os termos para a renovação dos contratos de comercialização de gás que venceriam no fim de 2021. Após sucessivas rodadas de discussão, que incluíram diversos questionamentos junto ao Cade, a Petrobras apresentou como melhor proposta um aumento de 50% no preço da molécula a partir de 2022, mantendo o preço do gás vinculado à variação do petróleo brent.
As negociações ocorrem em um cenário complexo. Há, por um lado, o questionamento do mercado acerca da efetividade do Termo de Compromisso de Cessação de Prática (TCC) firmado em 2019 entre o Cade e a Petrobras, que tem como propósito principal reduzir o poder de mercado da estatal (compromisso formal e basilar para a transição ao novo mercado de gás). Por outro lado, verifica-se que o TCC provocou um movimento inicial e importante, embora tímido, para acelerar a entrada de novos supridores ao mercado, promovendo a competição.
Alguns produtores e comercializadores alternativos conseguiram participar e apresentar propostas vencedoras nas chamadas públicas organizadas pelas distribuidoras, apesar de somarem apenas 10% da demanda das distribuidoras. Ao mesmo tempo, houve aumento nas importações de gás natural liquefeito (GNL) em 2021 para atender a alta demanda do setor elétrico fruto da crise hídrica, em um cenário de estresse para os preços de GNL no mercado spot internacional, causando, supostamente, prejuízos à estatal que é a principal detentora dos terminais de importação de GNL. Contudo, historicamente, os contratos não refletiram condições comerciais mais favoráveis do mercado spot de GNL, situações nas quais o importador, a Petrobras, auferiu lucro.
Neste contexto, diferentes entidades questionaram o peso do reajuste dos preços e se movimentaram para impedir o aumento imposto pela Petrobras. Distribuidoras, Procuradorias ou Assembleias Legislativas de diferentes estados ingressaram em juízo para, em caráter emergencial, manter as condições contratuais até então vigentes entre Petrobras e concessionárias estaduais. Na Justiça, os estados de Santa Catarina, Rio de Janeiro, Ceará, Alagoas, Sergipe e Espírito Santo obtiveram êxito inicial, obtendo liminares que determinam a manutenção dos preços para 2022.
Diante do exposto, há que se considerar os seguintes fatos: 1) a Petrobras, apesar da entrada de novos ofertantes, tem posição dominante, cujo market share será na ordem de 90% em 2022; 2) neste cenário, muitas distribuidoras não têm opção de compra e estão expostas à precificação do gás determinada pela estatal; 3) a exposição da Petrobras ao mercado spot de GNL reflete uma opção comercial da Petrobras e o aumento do despacho termelétrico, fruto da escassez hídrica vivenciada em 2021; e 4) será inaugurado em 2022 o Rota 3, gasoduto de escoamento com potencial de aumentar em 40% a oferta nacional de gás natural.
De fato, a principal argumentação da Petrobras para o aumento do preço reside na necessidade de importação de GNL para suprimento do mercado nacional a preços mais elevados que os observados historicamente. Contudo, falta elementos ao mercado para validar tal argumentação. Em princípio, não está claro se a estatal não repassou o aumento dos custos de importação ao setor elétrico via acréscimo do CVU das termelétricas.
Há também extrema incerteza na quantificação do despacho térmico para 2022. Estamos no meio do período úmido, que vem apresentando afluências acima do esperado. Por fim, não foi informado qual (e quando) será o aumento de oferta de gás nacional quando inaugurado o projeto Rota 3. Fica obscura, desta forma, qual será a efetiva exposição da Petrobras ao mercado spot de GNL e se, realmente, o aumento proposto é justo, considerando todas as condições de contorno.
O cenário exposto insta a Associação dos Grandes Consumidores de Energia e de Consumidores Livres (Abrace) a reconhecer a relevância das liminares concedidas às distribuidoras e reforça a importância de o Cade, concomitantemente, apreciar as variáveis aqui citadas para concluir se há, ou não, abuso de poder econômico por parte da Petrobras.
Ademais, este movimento de judicialização, no início da abertura do mercado, evidencia a necessidade de tomar, de forma célere, medidas necessárias para o cumprimento da agenda regulatória do novo mercado de gás e do efetivo cumprimento do TCC para que a Petrobras e o mercado possam contar com a previsibilidade das ações necessárias, sem a necessidade de assunção de compromissos e riscos por parte da Petrobras, como monopolista, ao mesmo tempo que o mercado poderá observar oportunidades com precificações mais condizentes a um mercado concorrencial de fato.