

Nos momentos finais de 2020, as redes sociais foram tomadas por mensagens de alívio e esperança. Um dos anos mais desafiadores da nossa geração finalmente chegava ao fim. Além da crise de saúde pública associada à pandemia, foi um ano particularmente difícil para os barões da tecnologia do Vale do Silício.
Redes sociais como Facebook e Twitter precisaram lidar com teorias da conspiração sobre o coronavírus – como a narrativa a respeito de torres de 5G serem culpadas pela Covid-19 ou que vacinas seriam usadas para implantar chips de rastreamento –, o assassinato de negros nos EUA pela polícia e o histórico movimento Black Lives Matter, ações antitruste nos EUA e na Europa e, por fim, a campanha de desinformação em torno das eleições presidenciais nos EUA e o ataque frontal de Donald Trump à mais antiga democracia do mundo.
Enquanto muitos esperavam que 2021 seria o ano em que deixaríamos 2020 para trás, a primeira semana de janeiro nos lembrou que estamos presos num “museu de grandes novidades”. Os números da pandemia no Brasil continuam em plena ascensão, as redes sociais ainda estão repletas de teorias da conspiração e desinformação sobre a vacina e o processo eleitoral e, no dia 6 de janeiro, as tentativas de Trump de subverter a democracia estadunidense culminaram na violenta invasão do Capitólio por seus apoiadores e na morte de pelo menos cinco pessoas.
A virada do ano, quando muito, representou apenas o início de um novo capítulo do mesmo livro, ao passo que os eventos dos últimos dias servem como um incômodo lembrete de que ainda precisamos enfrentar os problemas não resolvidos de um ano que insiste em permanecer.
Enquanto a insurreição armada de Trump se desenrolava em Washington – forçando o Senado a suspender a certificação dos votos do colégio eleitoral e, consequentemente, a vitória de Joe Biden –, Jack Dorsey e Mark Zuckerberg decidiam o que fazer a respeito das contas de Trump no Twitter e no Facebook.
Ambos foram lenientes com o presidente ao longo de seu mandato, resistindo às pressões para que suas mensagens incendiárias fossem apagadas ou, ao menos, para que tivessem seu alcance restringido. O Facebook, por exemplo, argumentava que o discurso de figuras políticas como Trump é um conteúdo de interesse público (ou newsworthy em inglês) e que, por isso, a plataforma seria mais flexível em relação ao que pode ou não ser dito.
Todavia, as redes sociais já davam sinais de mudança desde 2020. Quando Trump perdeu as eleições e afirmou sem provas que o pleito havia sido fraudado, suas mensagens foram limitadas e até mesmo apagadas. O limite do interesse público foi, supostamente, ultrapassado.
Assim, enquanto homens vestidos de pele de bisão e bonés “Make America Great Again” protagonizavam cenas lamentáveis no Congresso dos EUA, Jack Dorsey anunciou que o Twitter havia suspendido a conta @realDonaldTrump por doze horas, além de solicitar que o presidente apagasse seus últimos três tweets.
Horas depois, o Facebook dobrou a aposta. Pressionado pelos seus funcionários, Mark Zuckerberg anunciou que Trump estava suspenso da plataforma até o final do seu mandato e que o risco de sua permanência no Facebook era “simplesmente grande demais”.
Foi então que, talvez constrangido por não ter feito tanto quanto a concorrência, o Twitter optou por triplicar a aposta e banir Trump da plataforma por tempo indeterminado. Outras plataformas de menor porte como o Shopify e a Twitch seguiram o exemplo.
Há anos, como um bom autoritário, Trump testava os limites da sua liberdade de expressão nas redes sociais. A cada sinal verde dado pelas plataformas, o presidente aumentava o tom e abusava do seu megafone digital. A lista de exemplos é extensa, mas o caso mais emblemático ocorreu durante os protestos BLM na metade do ano passado.
No dia em que manifestantes se reuniram em Minnesota para protestar contra o assassinato de George Floyd, Trump escreveu no Twitter que “quando começam os saques, começam os tiros”, uma alusão ao fato de que alguns protestantes usaram o movimento BLM como pretexto para saquear comércios da região.
O discurso de Trump inflou uma parcela de seus apoiadores que passaram a frequentar os protestos armados para “proteger” propriedades privadas. Um desses apoiadores, o jovem de 17 anos Kyle Rittenhouse, assassinou duas pessoas em Kenosha a pretexto de defender a cidade de uma “invasão antifa”.
Naquele momento, entretanto, o Twitter e o Facebook decidiram que a mensagem era de interesse público e não poderia ser deletada. Por qual motivo, então, remover as contas de Trump agora e não antes? A resposta mais plausível passa por uma análise do momento político que os EUA vivem agora.
Durante os protestos BLM em 2020, Trump ainda comandava o Senado dos EUA por meio do senador Mitch McConnell e contava com o apoio de diversas lideranças do partido republicano. Ainda, as eleições de novembro eram uma realidade distante e as chances de reeleição do presidente não haviam sido descartadas.
Agora, em 2021, todos já sabem que Trump foi derrotado por Biden e que suas frívolas tentativas de reverter o resultado das eleições não surtiram quaisquer efeitos.
Ainda, no mesmo dia do ataque ao Capitólio, o segundo turno das eleições para o Senado na Geórgia consagrou o comando do legislativo federal pelos democratas.
Ou seja, se em 2020 Trump ainda era uma ameaça política para os barões do Vale do Silício, em 2021 a ameaça já havia sido completamente neutralizada. Em bom português, banir o presidente neste momento é “malhar em ferro frio”. Os acontecimentos de 6 de janeiro são o resultado de anos de retórica incendiária por parte de Trump, que desde antes de assumir a presidência trabalha para dividir os cidadãos, apoiar grupos extremistas e conspiratórios (como, o QAnon e os Proud Boys) e atacar instituições democráticas.
Há anos que Dorsey e Zuckerberg são avisados por especialistas sobre o perigo que isso representa, mas antes, para parafrasear o CEO do Facebook, o risco de banir Trump era “simplesmente grande demais”. As plataformas temiam, especialmente, que o presidente usasse seu poder para reformar a Section 230 do Communications Decency Act, uma norma que imuniza essas empresas da responsabilidade pelo conteúdo postado por terceiros.
O que esse episódio demonstra é que o Facebook e o Twitter, por serem empresas privadas, não encaram a moderação de conteúdo em suas plataformas apenas como um imperativo de manutenção da democracia, mas também como um risco aos seus negócios.
É claro que instigar uma insurreição armada é motivo suficiente para que um usuário tenha suas contas suspensas, mas essa não foi a primeira vez que Trump instigou conflitos violentos entre seus apoiadores e opositores.
Falta, portanto, previsibilidade e coerência na aplicação das regras de moderação das redes sociais. Afinal, qual “precedente” podemos levar dessa série de eventos traumáticos? Que o presidente pode glorificar a violência perpetrada por seus apoiadores durante protestos antirracistas no meio do seu mandato, causando a morte de pelo menos duas pessoas, mas não pode incitar uma insurreição armada na capital do país no final do mandato, causando a morte de outras cinco? Não parece uma decisão lógica, consistente ou até mesmo legítima.
De outra sorte, esse tipo de inconsistência falha em surpreender. Ano passado, Sophie Zhang, uma cientista de dados do Facebook, saiu da empresa e publicou uma carta expressando seu descontentamento. Zhang era responsável por identificar casos de “comportamento coordenado inautêntico” na plataforma, a exemplo da rede de contas falsas associada ao presidente Bolsonaro descoberta pelo Facebook em julho de 2020.
A cientista acusou a empresa de priorizar casos que representam um risco reputacional – como aqueles advindos da Europa e dos EUA –, relegando casos oriundos do Sul Global, a exemplo de duas redes de contas falsas no Azerbaijão e em Honduras.
O Facebook, por sua vez, afirma que sua política de “comportamento coordenado inautêntico” é objetiva e neutra, mas as acusações feitas por Zhang sugerem que considerações subjetivas também estão em jogo. Ou seja, o critério que a empresa parece seguir advém antes de sua estratégia de relações públicas do que do risco que essas redes de contas falsas representam para o discurso democrático.
A suspensão de Trump também suscita um debate sobre os diferentes tratamentos a respeito de conteúdos semelhantes em diferentes países. Como bem lembrou Evelyn Douek, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, e o presidente filipino, Rodrigo Duterte, usam suas redes sociais para, assim como Trump, incentivar atos de violência e polarizar a população.
Entretanto, diferente de Trump, esses líderes continuam empunhando seus megafones digitais sem restrições. Ademais, é de se questionar a eficácia dessas medidas. Descontentes com o que acreditam ser uma censura indevida, grupos de extrema-direita estão migrando para plataformas que se orgulham de “proteger a liberdade de expressão”, como Gab e Parler.
A aceleração dessa tendência apenas consolida a existência de diferentes realidades políticas que não se comunicam entre si, fechando definitivamente os poucos canais de diálogo que ainda existiam entre os opostos do espectro político.
De qualquer forma, os primeiros dias de 2021 demonstraram que ainda é preciso lidar com diversos desafios apresentados em 2020. Ainda, é importante notar que o debate sobre moderação de conteúdo é menos e ao mesmo tempo mais do que uma mera discussão sobre os limites da liberdade de expressão no mundo digital.
É menos porque a liberdade de expressão não se confunde com o acesso ao Facebook ou ao Twitter. Trump continuará tendo voz em outros cantos da Internet. E isso deve nos preocupar porque representa um caminho sem volta para uma polarização política cada vez mais acentuada.
É também mais porque o banimento de Trump expõe as inconsistências envolvidas na criação e aplicação de regras de moderação de conteúdo. A boa notícia é que no próximo 31 de dezembro estaremos novamente aliviados e esperançosos.
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça: