
O tema das fake news tem ocupado um espaço cada vez maior da agenda política. Pudera: notícias falsas repercutem na vida civil e na esfera jurídica de diversos modos: podem arruinar a reputação de indivíduos, frustrar a implementação de políticas públicas e comprometer candidaturas políticas, afetando o funcionamento da democracia. Em uma sociedade de informações crescentemente conectada, em que a opinião pública tem um peso relevante sobre o funcionamento das instituições estatais, a veiculação de informações falsas torna-se um relevante fator de risco, sobretudo quando a desinformação é intencionalmente manipulada por grupos ou indivíduos com objetivos não declarados. Desde as eleições norte-americanas de 2016, as fake news passaram a ser tratadas como um dos principais problemas da nova economia digital e um desafio substancial ao funcionamento das instituições democráticas.
A despeito disso, o enfrentamento do problema das fake news pelas instituições estatais ainda é um tema em aberto, não apenas para formuladores de políticas públicas que buscam desenvolver novas ferramentas de combate às fake news, mas também para pesquisadores que querem entender como elas vêm afetando as instituições e quais respostas vêm sendo adotadas. A produção legislativa a respeito das fake news fornece um bom exemplo: cresce o número de proposições legislativas sobre o tema no Brasil, mas pouco se sabe sobre quais já foram as medidas propostas e como o debate parlamentar vem evoluindo ao longo do tempo.
Com o objetivo de contribuir para preencher essa lacuna, o projeto de pesquisa “Fake News: desafios regulatórios e estratégias de combate” (link para download gratuito do livro resultante), coordenado por um dos autores deste texto no âmbito do programa de pós-graduação stricto sensu da FGV Direito Rio, realizou um levantamento de todas as proposições no Congresso brasileiro que tratam do tema das fake news. Optou-se por incluir nesse universo não apenas projetos de lei, mas todos os tipos de proposição legislativa que envolvam proposta de criação ou alteração de ao menos um dispositivo normativo diretamente relacionado às fake news. Foram encontradas um total de 190 proposições legislativas distintas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, entre 2010 e abril de 2022[1].
O primeiro resultado relevante desse levantamento é o já mencionado fato de que o número de proposições cresceu expressivamente ao longo dos últimos anos. O gráfico a seguir mostra a evolução anual das proposições na base, revelando que desde 2018 a frequência de propostas sobre o tema vem aumentando. O ano de 2018 é um marco relevante pois foi o momento em que debates sobre o impacto das fake news sobre o processo eleitoral chegaram ao Brasil.[2] Isso se deve ao fato de que o impacto da disseminação de notícias falsas sobre o processo eleitoral foi noticiado, à época, pelos principais veículos de notícias.[3]
Evolução anual das proposições sobre as fake news
Outro resultado relevante diz respeito a como o tema das fake news está situado no espectro político direita-esquerda. Utilizando como base estudo de Bolognesi, Ribeiro e Codato sobre o posicionamento ideológico dos partidos brasileiros, identificamos a posição dos autores das proposições em nossa base ao longo do espectro. Foi possível identificar que o tema das fake news mobiliza a atividade legislativa tanto da direita, como na esquerda. Se olhamos, por exemplo, para os deputados que mais vezes aparecem como autores de proposições sobre fake news, encontramos membros tanto de partidos da esquerda política (a exemplo de Bohn Gass e de Reginaldo Lopes, do PT), como da direita (a exemplo de Giovani Cherini, do PL e de Luis Miranda, do Republicanos).
Deputados que mais participaram da autoria de proposições sobre fake news
Deputado | UF | Partido | Número de proposições |
Bohn Gass | RS | PT | 15 |
Giovani Cherini | RS | PL | 15 |
Reginaldo Lopes | MG | PT | 15 |
Danilo Cabral | PE | PSB | 13 |
Renildo Calheiros | PE | PC do B | 13 |
Wolney Queiroz | PE | PDT | 13 |
André Figueiredo | CE | PDT | 12 |
Bira do Pindaré | MA | PSB | 12 |
Luis Miranda | DF | Republicanos | 11 |
Alexandre Frota | SP | PSDB | 10 |
Rui Falcão | SP | PT | 10 |
A análise apenas dos candidatos que mais se engajaram com o tema parece sugerir uma prevalência da esquerda, mas essa conclusão não se sustenta se olhamos de forma mais ampla para todas as proposições sobre fake news da base. No gráfico a seguir, cada círculo representa um partido e os partidos estão posicionados de acordo com sua classificação ideológica, da esquerda política (valores mais próximos de zero) à direita política (valores mais próximos de dez). A área de cada círculo, por sua vez, é proporcional ao número de proposições de autoria de membros de cada partido.
Participação dos partidos políticos em proposições legislativas sobre fake news ao longo do espectro ideológico
O gráfico mostra que há, na realidade, mais partidos à direita do espectro político participando da elaboração de propostas que tratam das fake news. A participação da direita é maior e está mais fragmentada entre diferentes partidos, o que reflete a atual composição da Câmara dos Deputados.
Mas o que chama mesmo a atenção é o número relativamente pequeno de proposições originadas do centro político, o que pode denotar um alto nível de polarização política em torno do tema das fake news. Há atualmente um total de 112 deputados na Câmara filiados a partidos que podemos classificar como “de centro”[4], o que corresponde a cerca de 21,8% das 513 cadeiras existentes. No entanto, se analisamos proposições legislativas sobre fake news em nossa base, verificamos que apenas 7,1% das participações em autoria dessas propostas emanaram do centro político.
O problema das fake news atinge a sociedade como um todo e, portanto, é de se esperar que todas as posições do espectro político participem ativamente desse debate; no entanto o que observamos é uma significativa sub-representação do centro político. Mas esta circunstância é particularmente curiosa se considerarmos que, de acordo com pesquisas recentes[5], fake news tendem a aumentar o nível de polarização política da sociedade e, portanto, tendem a retirar votos de políticos moderados, que ocupam o centro do espectro político. Isso significa que a classe política mais diretamente afetada pelas fake news é também a que vem oferecendo menos propostas para o enfrentamento do problema.
As divergências de posicionamento entre a direita política e a esquerda política, aliada à falta de proposições reconciliatórias originadas de partidos do centro, pode se configurar em um obstáculo substancial ao avanço de medidas efetivas de combate às fake news. O fracasso do debate político sobre fake news, por sua vez, pode levar a democracia brasileira a um nível cada vez maior de polarização política.
[1] O ano de 2010 foi escolhido como data de corte, uma vez que antes dessa data não havia efetivamente um debate parlamentar sobre fake news no Brasil, ao passo que abril de 2022 foi o momento da coleta dos dados.
[2] DOURADO, Tatiana Maria. Fake news na eleição presidencial de 2018 no Brasil. Tese (Doutorado) – Programa de Pós Graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea, UFBA, 2020.
[3] Em notícia intitulada “Fake news sobre candidatos inundam redes sociais em período eleitoral“, publicada em 06/10/2018, a Agência Brasil agrupou diversas notícias e casos que na época foram discutidos pela mídia envolvendo o uso de fake news durante as eleições de 2018.
[4] Para esse cálculo, consideramos como partidos de centro aqueles que haviam recebido notas entre 3 e 7 na classificação proposta por Bolognesi, Ribeiro e Cordato.
[5] Um estudo recente divulgado pelo National Burreau of Economic Research, por exemplo, identificou que “um nível significativo de desinformação e polarização são possíveis mesmo quando apenas 15% dos agentes acreditam em fake news e existem apenas 2 bots, que se tornam progressivamente mais extremos. Mesmo que a maioria dos agentes detecte as fake news e as exclua de seus respectivos conjuntos de informações, suas visões são indiretamente afetadas pelas opiniões de outros amigos na rede” (tradução própria, a partir de AZZIMONTI, M.; FERNANDES, M. Social Media Networks, Fake News, and Polarization. NBER Working Paper Series, National Burreau of Economic Research, W24462, Cambridge, 2021, p. 4).