Estão em curso, no mundo contemporâneo, diversas tentativas de subtração de direitos e garantias relacionadas à diversidade e à igualdade. Uma destas tentativas ganhou repercussão nacional quando, no dia 20 de abril de 2021, a em geral pouco comentada Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) autorizou a votação – ainda pendente – do Projeto de Lei nº 504/2020[1], de autoria da deputada Marta Costa (PSD), que proíbe a diversidade sexual em publicidade infantil, alarmando as entidades de defesa dos direitos LGBTQIA+.[2] O projeto, que veda a utilização em publicidade de “alusão a preferências sexuais [sic] e movimentos sobre diversidade sexual relacionado a crianças” em todo o estado de São Paulo, foi apresentado, segundo a justificativa que o acompanha, como uma forma de frear os “desconfortos emocionais” que a comunicação “indiscriminada” com o uso de famílias homoafetivas como modelo pode gerar, já que as crianças, alvo de ditas propagandas, não teriam a capacidade de avaliar o teor de supostas “questões sexuais” relacionadas a “práticas não adequadas”.
O PL (SP) 504/2020, como alertaram diversas entidades e especialistas na área dos direitos humanos da criança e do adolescente, vai diretamente de encontro ao preconizado na CRFB/88, naquilo que tange à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III), à igualdade e respeito à diferença (art. 5º, caput), e mesmo às competências privativas dos entes da federação (art. 22, XXIX). Independentemente de sua aprovação, ele é robusta manifestação de uma lógica explorada amplamente pelo Legislativo Nacional – seja em sede Estadual, seja em sede Federal – de que a simples existência da comunidade LGBTQIA+ é um “problema” a ser combatido, sendo, por isso mesmo, justificável poupar as crianças de sua existência – tal como se faz com as drogas, a violência e o sexo explícito, para as quais a censura etária ainda é legalmente realizada e indicada em peças audiovisuais.
Olhando apenas para as Representações Federais, não são raros os exemplos de tentativas de limitação ao existir das comunidades LGBTQIA+ e ao reconhecimento de direitos e garantias. Destacamos, nesse sentido, alguns Projetos de Lei: i) PL 620/2015, de Júlia Marinho (PSC-PA), que visa alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente, vetando a adoção conjunta por casal homoafetivo, sob a alegação de que a adoção é um “instituto funcionalizado para alcançar o superior interesse do adotando e não para garantir filhos a quem não os pode gerar”; ii) Projeto de Lei (PL) 925/2019, do Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), que propõe a instituição do Dia Nacional do Orgulho Heterossexual, sob a justificativa de uma suposta ameaça propagada pelas pessoas LGBTQIA+ de apagamento do ser heterossexual; e o iii) Projeto de Decreto de Legislativo (PDC) nº 539/2016, de autoria do deputado Pastor Eurico (PHS-PE), que pretende autorizar a prática da Cura Gay por psicólogos, com o argumento de que a proibição viola a Constituição Federal, desrespeita o direito da livre expressão da atividade intelectual e agride a liberdade do exercício da profissão. Ao lado dos projetos citados, há pelo menos outros 20 visando à redução de direitos para pessoas e famílias LGBTQIA+.
Antes de tudo, precisamos compreender o sentido da estratégia de evocar como justificativa de quaisquer pautas regressivas de costumes a “proteção das crianças e da juventude”. Proteger implica defender algo ou alguém de, contra alguém ou algo. Contra o que ou quem, então, as crianças e adolescentes são defendidas? Nos termos do referido PL (SP) 504/2020, elas são defendidas contra “prática(s) não adequada(s)” e “práticas danosas”. Mas quem é o agente dessas práticas? Ou melhor, quais práticas são essas? A resposta consiste na ligação conduzida entre práticas que dão visibilidade (publicidade) à diversidade, que é o conteúdo a ser reprimido e abrange, assim, as práticas e formas de vida LGBTQIA+. Nesse sentido, toda uma defesa é construída em prol de um corpo tido sob ataque, por meio de instrumentos jurídicos, principalmente aqueles movidos por meio da iniciativa parlamentar.
O funcionamento dessa estratégia bem pode ser descrito, à luz do pensamento de Roberto Esposito, como mecanismo de controle “imunitário”.[3] Valendo-se de uma metáfora que conjuga a imunidade celular àquela diplomática, Esposito constrói um paradigma que visa a tornar inteligíveis os processos jurídicos e políticos pelos quais, da modernidade em diante, a vida se tornou alvo e fim de uma “lógica” que, a partir da relação entre “antígenos” e “anticorpos”, pode conduzir, no seu extremo, à destruição do próprio organismo que se quer proteger, isto é, ao cerceamento de toda a diferença para fins de preservação da homogeneidade integral do sistema protegido. Em consonância com a metáfora, esse seria o caso da resposta autoimune, considerada por Esposito como sendo de particular relevância para a elucidação do presente. Isso está muito longe de afirmar que o “corpo social” não necessita mobilizar um sistema capaz de mantê-lo “vivo” e afirmá-lo – ou, hipótese absurda, que as crianças e jovens, de fato, não necessitam de proteção. Pelo contrário, a superação da extrema vulnerabilidade de crianças e jovens, vítimas das mais diversas formas de violência, exige mais, e não menos, convivência com a diversidade. São os termos segundo os quais a proteção é considerada, portanto, que estão em jogo, o que implica dizer que, retomando Esposito, estamos diante de uma imunização negativa da vida, a qual exclui cada vez mais e, multiplicando barreiras e muros, impede toda forma de contato com o diverso para que se defenda do pretenso “contágio” representado por outras formas de vida, dentre os quais aqueles desenhados pelos gestos e rostos das pessoas LGBTQIA+.[4]
No (tênue) limiar entre o público e o privado, existente nas sociedades contemporâneas, as minorias já habitam (se é que se pode usar tal termo neste contexto) duas zonas de exclusão: uma condizente à esfera privada, da qual o infame “armário” tem sido a imagem; outra, condizente à esfera pública, cujo sinal seria o puro e simples banimento, ou seja, não partição, ausência de voz e da própria presença física, quando muito sujeita a formas estereotipadas. Assim, quando os limites do emparedamento privado são rompidos e se alça a voz e a presença (física) plural no espaço público, dimensão na qual se pode agir e iniciar novos processos, a pronta ofensiva reacionária coloca-se em re–ação com sua antiga estratégia de mobilizar o enquadramento discursivo do modo de vida LGBTQIA+ como “prática danosa”, não adequada”, “não tradicional”, “contra a família” e diversas outras expressões que reafirmam, retoricamente, o discurso anti-diversidade e revelam o que parece ser um pressuposto compartilhado por diversas formas de repressão: o cerceamento e, em última instância, o apagamento da diversidade.
Nesse contexto, a propaganda adquire papel fundamental nas estratégias por visibilidade. Todavia, jamais podemos esquecer o contexto comercial da publicidade, ora em jogo, que diz: “vejam(-se), vocês também podem consumir”.
Há quase 50 anos, entrando na fase mais sombria de sua produção, o brilhante intelectual Pier Paolo Pasolini alertava para a emergência do que então denominava como (falsa) “tolerância do poder consumista”.[5] Ao denunciar, de maneira contumaz, os perigos, principalmente para os grupos marginalizados, decorrentes de um processo de inclusão realizado unicamente por meio de relações de consumo, Pasolini observava que “as minorias – mais ou menos definíveis – estão excluídas da grande, neurótica comilança. Aqueles que são classicamente ‘pobres’, muitas categorias de mulheres, os feios, os doentes e, voltando ao nosso assunto, os homossexuais estão excluídos do exercício da liberdade de uma maioria que, embora tire proveito de uma tolerância ilusória, nunca foi, na realidade, tão intolerante”.[6]
Agora, também confirmando amargamente a leitura de Pasolini, o que está sendo dito com tais iniciativas visando ao cerceamento de uma possibilidade que até mesmo já pertenceria às regras do jogo econômico instituído é algo mais. Estão dizendo: “(não) vejam, suas existências não valem nem para o consumo”.
Nesse sentido, as legislações e iniciativas contra a diversidade impulsionadas por diversos governos contemporâneos, mais ou menos reacionários e fundamentalistas, chegam ao extremo de negar não apenas o preconceito e violência voltados contra a diversidade (a negação da LGBTfobia, por exemplo),[7] mas a negar a existência do diverso enquanto tal, isto é, das pessoas LGTQIA+. Isto é o que ocorre, por exemplo, no caso das “Zonas Livres de LGTB” na Polônia,[8] que se espelham, apesar do ultranacionalismo polonês, nas medidas hiper-restritivas adotadas na Rússia sob Vladimir Putin, além dos pronunciamentos de Alvi Karimov, porta-voz do governo checheno de Ramzan Kadirov, que afirmou (em resposta às denúncias de expurgos, capturas e internamento de homossexuais em “campos de concentração” clandestinos na Chechênia): “Não dá para deter e perseguir pessoas que simplesmente não existem na República (…). Se existissem tais pessoas na Chechênia, os órgãos de aplicação da lei não precisariam ter nada a ver com elas, porque seus parentes as enviariam para um lugar do qual não existe retorno”.[9]
Os mecanismos jurídicos contra a diversidade empregados na Rússia foram impulsionados pela aprovação, em julho de 2013, da legislação federal que realiza o banimento de propaganda com pessoas LGBT, sob a “justificativa” de que o conteúdo banido – a visibilidade LGBTQIA+ – “constitui uma ameaça ao bem-estar intelectual, moral e mental das crianças”.[10]
É fundamental perceber que a legislação federal foi precedida de diversas legislações regionais que, desde 2006, foram sendo aprovadas – todas empregando a mesma justificativa (a proteção de crianças), visando ao mesmo fim (o banimento da “propaganda da homossexualidade”). É essa estrutura e esse processo que têm sido tomados como “modelo” e que chegaram ao Brasil.
Os ecos das práticas extremas do século XX, alertava Hannah Arendt, continuariam a ser ouvidos no futuro – inclusive, aspecto que ela se esforçava para enfatizar e que aqui realçamos, em contextos não totalitários. Quando tal parece ser o caso, temos de entender que existem técnicas, aparatos e mecanismos que, criados ou implementados por determinadas formas de governo, se fazem sentir para muito além da circunscrição que os relega a um fenômeno político do passado, meramente. Nesse sentido, a destruição da personalidade foi isolada por Arendt, dentre tais técnicas mais extremas, como nada menos do que um eixo de sustentação das práticas de destruição da própria pluralidade da existência humana. Tratava-se, segundo Arendt, de um processo muito amplo, que envolvia toda a sociedade e visava à destituição da própria condição de pessoa daquelas que fossem identificadas como “danosas” ou “inimigas” do “corpo social”. A despersonalização era deflagrada precisamente por meio de diversas medidas de retirada de direitos e garantias, até conduzir, no primeiro e mais emergente nível, à destruição da “pessoa jurídica”.[11]
As estratégias de cerceamento da visibilidade (aparecimento) de pessoas LGBTQIA+ fazem parte de um longo processo histórico-político de negação da diversidade. Técnicas mais ou menos novas de cerceamento da diversidade proliferam meios de controle que resultam, com justificativas mais ou menos velhas, nos escombros da discriminação, do preconceito e da violência extrema, não tendo outro alvo senão obstar o longo caminho pelo qual se tenta construir políticas públicas baseadas na participação e diversidade inerentes às pretensões pluralistas de um regime democrático, como também diz ser aquele da Constituição da República de 1988.
Se a pluralidade é a condição da política, como defende Hannah Arendt,[12] toda tentativa de inibi-la, restringi-la ou obstá-la, dificultando-se ou impossibilitando-se a visibilidade e a participação de pessoas ou grupos políticos e sociais, implica a realização de uma prática antipolítica, uma vez que se volta ao sentido mesmo da existência política enquanto liberdade. Nesse sentido, devemos dar o devido nome às práticas antipolíticas que têm sido arregimentadas na enxurrada de violações em que nos encontramos no presente, impulsionada de modo letal com a pandemia do coronavírus. Afinal, não apenas os preceitos maiores do ordenamento jurídico são violados, mas a própria condição que dá vida aos regimes políticos pós-totalitários: “a pluralidade [que] é a lei da Terra”[13] e nos conjuga, como iguais, em nossa distinção.[14]
[1] Disponível para consulta integral em: https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000331594. Acesso em 21 abr 2021.
[2] LGBTQIA+ é a sigla utilizada para representar àquelas pessoas cuja orientação sexual (com qual ou quais gêneros você se relaciona) ou identidade de gênero (forma com que você se identifica socialmente) diferem da orientação heterossexual e das designações tradicionalmente atribuídas aos gêneros masculino e feminino. A sigla traduz, atualmente, as seguintes segmentações: lésbicas, gays, bissexuais, trans e travestis, queers, intersexuais, assexuais e todas as demais existências de gêneros e sexualidades, sendo uma ampliação/adequação de siglas mais antigas como GLS (gays, lésbicas e simpatizantes), de GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e trans) e de LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e trans).
[3] Cf. Esposito, Roberto. Bíos: biopolítica e filosofia. Trad. Wander Melo Miranda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017, p. 57-138. Para uma análise desse tema, na qual se destaca o potencial da ação em contraste com o mecanismo de controle imunitário e identitário, veja-se nosso artigo, em co-autoria com a Prof. Dra. Angela Fonseca, “A fragilidade do direito: as lutas por direitos e o mecanismo imunitário da soberania” (no prelo).
[4] Cf. Esposito, Roberto. Termos da política: comunidade, imunidade, biopolítica. Curitiba: Ed. UFPR, 2017, p. 120-121.
[5] Pasolini, Pier Paolo. Escritos corsários. Trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 246.
[6] Idem, ibidem, p. 239.
[7] Tal parece ser o caso da obstrução parlamentar gerada no Senado italiano com a aprovação, pela Câmara de Deputados, do “DdL (Disegno di Legge) Zan”, Projeto de Lei, de autoria do deputado Alessandro Zan, que visa à alteração do Código Penal italiano “em matéria de violência ou discriminação por motivos de orientação sexual ou identidade de gênero”, consolidando os crimes de ódio contra pessoas LGBTQIA+. Disponível para consulta integral (em italiano) em: https://www.camera.it/leg18/126?tab=2&leg=18&idDocumento=569&sede=&tipo=. Acesso em: 21 abr 2021
[8] Sobre o significado e o contexto dessas medidas, veja-se: https://www.bbc.com/news/stories-54191344. Acesso em: 21 abr 2021.
[9] THE Guardian. “Chechen police ‘have rounded up more than 100 suspected gay men’”. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2017/apr/02/chechen-police-rounded-up-100-gay-men-report-russian-newspaper-chechnya. Acesso em 22 abr. 2021.
[10] HUMANS RIGHTS WATCH, “License to Harm: Violence and Harassment against LGBT People and Activists in Russia”, Disponível (em inglês) em: https://www.hrw.org/report/2014/12/15/license-harm/violence-and-harassment-against-lgbt-people-and-activists-russia. Acesso em: 14 fev 2021.
[11] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. 3. reimpr. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 497 e ss. “A destruição dos direitos de um homem, a morte da sua pessoa jurídica, é a condição primordial para que seja inteiramente dominado” (Idem, ibidem, p. 501). Na leitura de Arendt, a perda da “pessoa jurídica” era a pavimentação do caminho letal que conduzia à completa desproteção jurídica e abria a porta para os campos de concentração e extermínio. À “aniquilação da pessoa jurídica”, seguiam-se a “morte da pessoa moral” e a “destruição da individualidade”, que antecipava a eliminação física da pessoa (Cf. ARENDT, 505).
[12] Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. R. Raposo. Rev. técn. Adriano Correia. 13. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016, p. 9-10.
[13] Arendt, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Trad. Cesar Augusto
-
de Almeida, Antônio Abranches e Helena Franco Martins. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 35.
[14] Os autores agradecem a André de Macedo Duarte e a Luiz Henrique Budant pelas valiosas sugestões.