Dívidas

Apesar da pandemia e inflação alta, inadimplência do setor bancário mantém patamar baixo

Dívidas bancárias representam menos de um terço do volume total de débitos registrados na Serasa

Crédito: Unsplash

As turbulências no cenário econômico brasileiro causadas pela pandemia, inflação alta e desemprego provocam impactos negativos no orçamento e planejamento financeiro das famílias. Em julho deste ano, quatro em dez adultos brasileiros (mais exatamente 41,8%, equivalente a 67,6 milhões de pessoas) estavam com o nome negativado na Serasa. Apesar de expressivo, o grupo de inadimplentes bancários representava, em termos de volume financeiro, menos de um terço do saldo total das operações negativadas. Mais precisamente 28,6%.

Os números constam do estudo “Endividamento e Inadimplência das Famílias – Contexto e Evolução Recente”, elaborado pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban). De acordo com o estudo, em julho de 2022 havia 235,3 milhões de dívidas registradas na Serasa. O saldo total desses débitos era de R$ 287,7 bilhões e o tíquete médio por dívida era de R$ 1.222,80. “A quantidade média de dívidas por adulto negativado é de 3,48, o que corresponde a um valor médio por negativado de R$ 4.253,30, equivalente a 3,5 salários-mínimos por pessoa”, destaca o analista Acilio Marinello, coordenador do MBA Executivo em Digital Banking da Trevisan Escola de Negócios.

Do volume registrado de R$ 287,7 bilhões, 28,6% referem-se a dívidas bancárias/cartões, que somam R$ 82,2 bilhões. O restante – R$ 205,5 bilhões – é composto por dívidas não bancárias, tais como: utilities (débitos referentes a serviços de água, luz e gás, por exemplo), com 22,2% do total; financeiras (13,7%); varejo (12,4%); serviços (10,1%) e telefonia (6,8%), entre outros.

“Quando levamos em consideração a soma total por áreas, verificamos que há muito mais dívidas nos outros setores do que nos bancos”, diz o economista VanDyck Silveira, cofundador da Educpay, fintech voltada à área da educação. O economista destaca áreas como o varejo, que apresentam alto índice de clientes com débitos. Silveira explica que, ao venderem produtos em parcelas com juros incluídos, as grandes redes de comércio atuam, na prática, como bancos. “Porém, o cliente tem mais medo de ir ao banco fazer um empréstimo do que comprar uma geladeira no crediário”, diz Silveira.

O endividamento das famílias com o sistema financeiro atingiu 53,1% da renda anual em julho, o maior da série histórica desde 2005. Se for retirado o crédito imobiliário do indicador, o endividamento cai para 33,6% da renda familiar, segundo o estudo da Febraban, com base em dados do Banco Central.

Por outro lado, o aumento de crédito por meio de linhas mais baratas (como o imobiliário e o consignado), fez com que o aumento do endividamento bancário não implicasse em um aumento proporcional dos níveis de comprometimento de renda das famílias no período anterior à pandemia. Entre junho de 2012 e fevereiro de 2020, o endividamento familiar subiu de 37% para 42%, enquanto o comprometimento da renda ficou praticamente estável, em torno de 25%.

A piora ocorreu recentemente, especialmente a partir de 2021, quando a expansão do crédito destinado para as famílias foi impulsionada principalmente pelo crédito pessoal não consignado e o cartão de crédito, linhas de maior custo. Com isso, o comprometimento de renda (incluindo nesse percentual os financiamentos imobiliários) subiu para 28,6% em julho de 2022.

Luiz Castelli, gerente de assuntos econômicos da Febraban, explica que, embora o endividamento das famílias tenha crescido, em uma comparação internacional, o nosso patamar ainda é muito baixo. Segundo ele, alguns países avançados possuem um nível de crédito/PIB ou dívida/renda das famílias acima de 100% até 200%, em especial quando o mercado imobiliário é desenvolvido.

“O endividamento das famílias ainda tem um espaço grande para crescimento. No entanto, desde que cresça por meio de linhas mais baratas e com elevado prazo de pagamento, como o imobiliário, por exemplo, que implica baixo comprometimento da renda do tomador”, diz Castelli.

Para Silveira, o aumento do endividamento geral da população está ligado a fatores como a inflação, cujo impacto é maior nas camadas de renda mais baixas da população. “Quanto maior a inflação, maior é a inadimplência e a pessoa paga apenas aquilo que é possível no momento”, diz Silveira. No caso das dívidas bancárias, a taxa de inadimplência é considerada mais preocupante no grupo de clientes que ganham até três salários-mínimos mensais: 5,4% em junho de 2022, maior nível desde 2013, segundo dados do Banco Central.

“Esse comportamento pode ser um indicativo do reflexo da alta dos juros e da inflação no período. As pessoas com renda mais baixa têm menor poder de compra, sendo menos resilientes para o aumento dos preços de itens de primeira necessidade, como alimentos, transporte, energia elétrica e gás de cozinha”, diz Marinello. “Com o aumento desses itens, maior é a parcela da renda mensal destacada para adquiri-los, o que compromete a capacidade de honrar dívidas já assumidas, como o rotativo do cartão de crédito, refletindo no aumento da inadimplência”, completa Marinello.

No grupo com renda superior a três salários, a inadimplência bancária cai para 1,95% no mesmo período analisado, contribuindo para o equilíbrio do problema. “Isso explica o motivo da inadimplência agregada da carteira de crédito pessoa física seguir sob relativo controle, inclusive pelo fato de tal grupo (acima de três salários) ter um peso maior (63,7%) na carteira total de crédito pessoa física”, diz trecho do estudo da Febraban.

Para Castelli, a situação da inadimplência bancária preocupa, mas segue sob controle: “Observamos algum aumento, embora em patamar ainda aceitável. A inadimplência da carteira pessoa física total apenas voltou ao nível pré-pandemia (3,7%)”, explica Castelli. “A situação na carteira com recursos livres é um pouco pior, pois já ultrapassou o nível pré-pandemia. Está em 5,7% ante 5,1%. De toda forma, ainda está longe dos piores momentos, como em meados de 2012, quando ultrapassou 7,0%”, completa.

Segundo os especialistas, também é preciso criar mecanismos para auxiliar as pessoas mais pobres a saldarem suas dívidas. Uma forma de o setor bancário atuar para reduzir a inadimplência, em especial nos grupos de menor faixa de renda (até 3 salários-mínimos), é oferecer outras linhas de crédito, com juros mais baixos e maior prazo para o pagamento, reduzindo o impacto no comprometimento da renda mensal dessa parcela da população. “Quanto menor o nível de comprometimento da dívida na renda mensal das pessoas, maior a probabilidade de os pagamentos serem mantidos em dia, reduzindo a inadimplência”, analisa Marinello, da Trevisan.

Em resumo, mesmo em cenário relativamente adverso, por conta dos efeitos finais da pandemia da COVID-19, pressões inflacionárias e desemprego em patamar elevado (ainda que cadente), a inadimplência no setor bancário segue em patamar seguro. Vem em elevação, mas em patamar bastante controlado. Há sim um crescimento maior nos níveis de renda mais baixos, que é um público mais vulnerável, que pode exigir uma atenção especial. A rigor, os bancos já vem fazendo isso, por exemplo via renegociação, mas parte relevante da dívidas em atraso (cerca de 2/3) são dos demais setores, principalmente serviços públicos e varejo. E nesse caso, pode ser que seja necessária alguma atuação.