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Reforma tributária precisa garantir a não cumulatividade de impostos na prática

Objetivo é eliminar cascata de alíquotas, mas modo de uso dos créditos atuais e imprecisões no novo modelo podem comprometer avanços

Foto: Unsplash

Uma das expectativas com a reforma do sistema tributário brasileiro é garantir que não haja cumulatividade dos tributos ao longo das cadeias produtivas. Essa é uma das premissas do modelo de Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) dual, a ser implementado no Brasil com o intuito de simplificar o sistema tributário. 

Para isso, será preciso que, durante a transição para o novo modelo de tributação, haja a garantia de que o montante atual dos chamados créditos tributários, acumulados pelos contribuintes, não se perca. E, no novo modelo, que a utilização desse instrumento de compensação seja realmente previsível, rápida e simples na prática – como prevê, por enquanto em teoria, a reforma tributária. 

Os créditos tributários são uma aplicação do princípio da não cumulatividade, para evitar o efeito cascata dos impostos. Eles estão previstos na PEC 45/2019, aprovada pela Câmara dos Deputados em julho e que passa agora a ser discutida pelo Senado, sob a relatoria de Eduardo Braga (MDB-AM). 

“O sistema de IVA tem uma técnica arrecadatória que permite excluir o ônus tributário em cada elo da cadeia produtiva. A ideia central é a de que um tributo recolhido em uma etapa seja compensado na etapa subsequente, o que pode acontecer por meio de créditos, de modo que apenas o valor adicionado em cada uma das etapas seja onerado tributariamente”, explica Fernanda Lains Higashino, sócia do escritório Bueno & Castro Tax Lawyers.

Com a não cumulatividade funcionando adequadamente, a intenção é assegurar que a tributação no Brasil não seja um inibidor às decisões de agentes econômicos – ao optar ou não por investir no país, por exemplo. 

“Sempre que há cumulatividade, como acontece atualmente, há um aumento de custo. O tributo, em vez de ser devolvido ou gerar crédito, se torna uma despesa que será arcada pela empresa. Isso atinge o próprio preço dos bens e serviços aplicados ao consumidor final”, como aponta Melina Rocha, consultora internacional e especialista em IVA.

O acúmulo de tributos no Brasil 

A cumulatividade ocorre quando o imposto cobrado durante uma etapa de uma atividade não tem abatimento posterior. Assim, ao final, há uma soma de tributos – aumentando a alíquota efetivamente paga por um produto, por exemplo. Essa característica pode ocorrer de duas formas.

O imposto em si pode ser cumulativo, de forma a não permitir o seu creditamento no meio da cadeia. Hoje, no Brasil, isso ocorre nos casos do ISS e do ICMS na modalidade cumulativa, por exemplo. Nesse contexto, uma empresa não pode recuperar o tributo, porque ele não gera créditos, então o imposto entra como um custo da operação, aumentando as despesas do setor produtivo.

Uma segunda forma de cumulatividade acontece nos tributos intitulados como não cumulativos, mas que têm uma restrição ao creditamento. Hoje, mesmo nesses cenários de sistemática considerada não cumulativa, ainda acontece a cascata de tributos, já que a legislação atual proíbe o creditamento de diversos tipos de insumo. 

“O ICMS tem restrições que não permitem o creditamento de bens de uso e consumo, bem como os bens de ativo fixo têm um limite temporal para a recuperação do crédito”, pontua Rocha. Já no IPI e PIS/Cofins não cumulativo, há limitações que permitem apenas o creditamento físico de insumos que se integram ao produto final. 

“Quando os produtos não podem ser totalmente recuperados no meio da cadeia, eles também criam uma cumulatividade, por mais que teoricamente esses atuais tributos sejam considerados não cumulativos”, acrescenta a consultora.

A questão que a reforma tributária enfrenta é como garantir que os créditos, (principalmente de ICMS), acumulados ao longo de décadas, poderão ser integralmente utilizados com o novo sistema. Uma preocupação é que esses valores possam se perder se o modelo de transição não for bem arquitetado e, posteriormente, colocado em prática – portanto, os detalhes precisarão estar claros na lei complementar à PEC aprovada. 

Os créditos na transição 

Nesse cenário, o funcionamento do sistema de créditos é um dos principais desafios para o período de transição para o novo modelo de tributação no Brasil. Essa etapa está prevista para acontecer com mudanças graduais entre 2026 e 2032; a implementação por completo acontecerá em 2033. 

A partir de 2027, a alíquota de teste da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), fixada em 0,9%, será compensada pelo valor arrecadado de PIS/Cofins. O crédito acumulado desses tributos terá compensação com a CBS ou com outros tributos federais, como já ocorre atualmente.

O Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), por sua vez, terá um processo mais gradual, sendo elevado ano após ano, enquanto o ICMS e o ISS serão reduzidos em contrapartida. De acordo com a PEC, o saldo do crédito acumulado do ICMS terá compensação com o IBS, em até 240 parcelas, iguais e sucessivas, com correção monetária a partir de 2033.

“São créditos homologados do ICMS, que assim podem ser compensados com o IBS”, afirma Rocha. Isso significa que contará o saldo de créditos reconhecidos pelos entes federativos, que deverá ser informado pelos estados e pelo Distrito Federal ao Conselho Federativo do IBS para que seja compensado com o novo imposto. Aqui, uma potencial dificuldade pode ser justamente obter a homologação, já que, frequentemente, há divergência entre Fisco e contribuintes sobre o creditamento do ICMS. 

O texto também prevê a possibilidade de transferir esses saldos credores a terceiros, a outras empresas ou até mesmo a devolução por meio do ressarcimento. Esse último caso acontecerá apenas quando não for possível a compensação com o IBS. Contudo, os detalhes sobre como tudo isso será operacionalizado na prática ainda dependem da lei complementar. 

Mesmo com a entrada do IVA dual em pleno vigor, a transição para os créditos, na realidade, ainda continuaria existindo por bem mais tempo. Isso porque haverá um horizonte de até duas décadas para a substituição ou o pagamento parcelado dos créditos atuais, o que pode jogar incertezas para o futuro. 

O modelo não cumulativo

Em contraposição ao esquema atual, o texto aprovado pela Câmara dos Deputados e que agora tramita no Senado Federal prevê o creditamento total do IBS e da CBS no meio da cadeia produtiva. Para especialistas, esse precisa ser um dos pilares da PEC da reforma. 

“A reforma tributária prevê a ‘não cumulatividade plena’, na qual seria garantido ao contribuinte o creditamento do tributo sobre todas as aquisições de bens, materiais ou imateriais, inclusive direitos, e serviços”, esclarece a advogada Higashino. 

Dessa forma, no novo modelo, a cada incidência do imposto, quando for feita uma operação entre contribuintes, haverá o reembolso integral do tributo na forma de crédito – quando um varejista faz uma compra junto ao produtor, por exemplo. Em todos os casos, o contribuinte receberá o crédito correspondente ao imposto pago na etapa anterior para abater na seguinte. 

A ideia é que a empresa pague tributo zero no meio da cadeia por conta desse creditamento pleno; com isso, o pagamento será feito apenas na última ponta, no momento do consumo final. Assim, de modo geral, a empresa irá recolher apenas o imposto referente ao seu produto ou serviço. Todo o tributo pago na aquisição de insumos, máquinas e equipamentos do negócio, além de despesas, como com energia, telefonia e transporte, se tornam créditos. 

O texto aprovado ainda não prevê o prazo para o creditamento no novo modelo nem a forma como ele irá ocorrer, o que deve ser definido no momento da discussão da lei complementar, a ser editada após a reforma. A maior expectativa é que o novo sistema represente um verdadeiro ponto de virada no atual modelo de créditos, permitindo a sua utilização na totalidade, sem complexidades nem prazos extensos.

Algumas simplificações já foram feitas durante a tramitação da reforma. Na versão da PEC anterior ao texto aprovado pela Câmara dos Deputados, havia a possibilidade de creditamento vinculado ao recolhimento do tributo pelo fornecedor – isto é, seria preciso garantir que o imposto foi de fato pago na etapa anterior da cadeia. Esse dispositivo foi retirado do texto. 

Além disso, também era considerada a hipótese do uso da Lei Complementar 87/1996, a Lei Kandir, para limitar o creditamento. Contudo, no relatório da reforma apresentado pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), ficou estabelecido que a lei complementar não poderá criar novas formas de restrição ao crédito. 

O texto substitutivo que está no Senado Federal trouxe outra mudança relevante: ele definiu que, para observar o princípio da neutralidade, o tributo sobre consumo será não cumulativo, e será compensado pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais ele seja adquirente de bem (material ou imaterial) ou serviço. A exceção seria para bens de uso ou consumo pessoal. 

“Houve um avanço imenso em relação ao que temos hoje na nossa Constituição. À lei complementar caberá regular e definir o que são esses bens de uso e consumo pessoal, que deve ser um campo bem restrito e para casos muito específicos”, analisa Rocha. Em relação a esse último ponto, será necessária uma restrição precisa para evitar inseguranças e divergências no futuro. 

Para contemplar alguns cenários específicos, estão previstas ainda algumas sistemáticas diferenciadas. Como o IVA não incidirá sobre as exportações, o exportador poderá manter os créditos relativos às operações de compra do bem ou serviço, por exemplo.

Também é autorizada a concessão de crédito presumido ao contribuinte que adquire bens e serviços de produtor rural com direito ao regime de tributação diferenciada, que poderão ter redução ou isenção de alíquota. 

A PEC também garante créditos ao contribuinte que adquire serviços de transporte realizados por trabalhadores autônomos que não sejam contribuintes do imposto. Ainda haverá creditamento para a empresa que compra materiais destinados à reciclagem ou à reutilização e logística reversa, fornecidos por cooperativas ou outras organizações populares. Além disso, é permitido que a lei complementar preveja a concessão de créditos ao contribuinte que adquire bens usados com o objetivo de revender. 

A PEC também estabelece a possibilidade de a lei complementar criar um regime de  compensação vinculado ao efetivo recolhimento do tributo na etapa anterior da cadeia, mas apenas sob algumas condições. 

No primeiro cenário, o adquirente pode efetuar essa ação diretamente aos cofres públicos. Assim, ele pode pagar o imposto diretamente ao Fisco, em vez de pagá-lo ao fornecedor com o preço da mercadoria. Já a segunda possibilidade implica no “split payment”, ou recolhimento do imposto na liquidação financeira da operação. A instituição bancária, por exemplo, pode enviar o pagamento do preço ao fornecedor e o pagamento do tributo diretamente ao Fisco.

Entretanto, para a advogada Higashino, há ainda pontos na redação do texto da PEC sobre créditos tributários que demandam uma maior assertividade. Como exemplo, indica o uso de expressões como “imposto devido” e “montante cobrado”, que trazem imprecisão sobre a etapa do processo a que se referem. 

Esses refinamentos, para asseverar maior segurança jurídica, poderiam acontecer já durante o debate no Senado. “Existem pontos que se não forem alterados e tiverem uma definição mais precisa poderão não apenas dificultar a implementação da chamada ‘não cumulatividade plena’, como também abrir espaço para o nascimento do contencioso tributário”, avalia. 

Essa é uma das consequências do atual sistema, que além de promover a alta cumulatividade, impõe restrições ao creditamento. Nessa linha, o Brasil enfrenta insegurança jurídica, com disputas na Justiça que se arrastam, em torno do reconhecimento do direito à compensação e da liberação dos créditos. Por isso, a demanda por um modelo mais assertivo tanto na transição quanto no futuro sistema.