Análise

Celso de Mello: primeiro ou último dos decanos?

Uma combinação de características pessoais e conjuntura construiu o Celso decano

Celso de Mello
A ex-presidente do STF, Cármen Lúcia, e os ministros Marco Aurélio e Celso de Mello / Crédito: José Cruz/Agência Brasil

Quais ministros se notabilizaram por exercer o decanato do Supremo Tribunal Federal? Quais entraram para a história da instituição por terem sido decanos em momentos importantes, cumprir uma missão institucional como ministro mais antigo da Corte?

Puxando pela memória ou pela bibliografia, poderíamos cogitar alguns. Mas assumo aqui o risco de dizer que nenhum desses possíveis nomes exerceu a senioridade no Supremo de forma tão emblemática e simbólica quanto Celso de Mello. Por mais importantes que tenham sido para a história do tribunal. Apesar de o decanato de Celso de Mello ter elementos em comum com outros, uma série de circunstâncias o colocaram em posição que parece singular.

O elemento mais evidente é o tempo: Celso de Mello é o ministro que senta à última cadeira do plenário há aproximadamente 13 anos. Mas esta explicação simples, objetiva e contável está incompleta.

José Carlos Moreira Alves foi decano por 14 dos seus quase 28 anos no Supremo, mas ninguém se refere ou se recorda dele especificamente por sua atuação como ministro mais antigo. Moreira Alves era uma referência por si só, assim como outros ministros – por exemplo, Pedro Lessa, Victor Nunes Leal, Oswaldo Trigueiro e Sepúlveda Pertence – foram ou são referências para o tribunal independentemente de antiguidade.

Ao longo do decanato de Moreira Alves, Pertence foi uma referência na Corte. Era também um ponto de convergência. O ministro Octavio Gallotti, que compunha o tribunal naquela época, diz que a tarefa como juiz era facilitada quando Pertence e Moreira Alves votavam juntos: era sinal de que aquela era a decisão mais correta a se adotar.

Voltando um pouco mais no tempo.

O ministro Luiz Gallotti, pai de Octavio Gallotti, em delicado momento histórico, esteve na liderança da Corte por ser o mais antigo. Mas foi algo pontual, criado pelas circunstâncias. Quando a ditadura militar cassou três ministros do Supremo, outros dois pediram aposentadoria: o presidente, Gonçalves de Oliveira, e o então ministro mais antigo Lafayete de Andrada.

Luiz Gallotti passava, naquele instante, a ser o decano. E coube a ele presidir a sessão de reabertura do Supremo e a eleição do novo presidente. Este fato emblemático, histórico e dramático obviamente está ligado à senioridade de Gallotti, mas não a uma liderança que se funda justamente em como essa antiguidade é exercida. A razão era meramente regimental. Ou seja, o decano era um papel protocolar, meramente cerimonial. Uma condição, não uma função. Esta constatação em nada diminui a importância do fato ou da personagem para a história do tribunal.

Moreira Alves não precisou exercer um decanato para ser influente. Sua liderança vinha de muito antes. Como diz o ministro Pertence, todo julgamento naquela época começava com 4 a 0: Moreira Alves geralmente carregava consigo o apoio de três colegas considerados mais conservadores.

Djaci Falcão, que foi decano do STF antes de Moreira Alves, ficou por 12 anos no tribunal como o mais antigo. Mas os ministros daquela época não o mencionam como referência em razão da sua antiguidade. A despeito inclusive de algumas posições simbólicas e institucionalmente relevantes tomadas por Falcão, como quando, em 1976, foi o único ministro do STF a comparecer ao enterro do ex-presidente Juscelino Kubitschek.

Barros Barreto, na década de 50, ficou nove anos nesta posição de decano, mas estava longe de ser uma liderança. Ao contrário, enfrentava severas resistências internas por ter presidido o Tribunal de Segurança Nacional.

O que aqui se argumenta, portanto, é que Celso deu contornos mais claros, evidenciou funções, sedimentou e institucionalizou a, digamos assim, função de decano. Se antes era algo simbólico e protocolar, com Celso de Mello o posto ganhou substância.

Por seus méritos e suas qualidades? Sim, sem dúvida. Mas também, talvez com igual peso, por circunstâncias suas e do tribunal, especialmente nos últimos anos.

Primeiro, as qualidades.

Nos dois primeiros webinares promovidos por JOTA e Insper, com o apoio do Pinheiro Neto Advogados, para debater criticamente o legado de Celso de Mello, Joaquim Falcão, Rogério Arantes, Diego Werneck, Juliana Cesario Alvim e o ministro Alexandre de Moraes traçaram o perfil jurisprudencial do decano.

Diego Werneck, por exemplo, mostrou que Celso de Mello ao longo das suas mais de três décadas de Supremo foi uma espécie de vocalizador do poder do Supremo, mas sem necessariamente exercê-lo. Ou seja, a frequência e a intensidade do discurso não necessariamente combinavam com o peso das decisões em cada caso.

Joaquim Falcão fez uma distinção entre o ministro de conjuntura e o ministro institucional. Celso de Mello sendo um ministro institucional, e não um juiz que atua conforme os fatos e forças políticas.

Juliana Alvim e o ministro Alexandre de Moraes mostraram ampla gama de decisões do ministro Celso que marcam sua biografia jurisprudencial e as estratégias para consolidar sua jurisprudência biográfica (para usar os termos mencionados pelo Rogério Arantes).

Ou seja, aqui estamos falando de algo inerente ao ministro Celso. Ao longo dos anos de cobertura de Supremo, das entrevistas com seus colegas, das conversas com quem pesquisa e vive o STF, algumas dessas características do ministro Celso se sobressaem e lhe permitem exercer essa liderança.

O ministro Celso de Mello sempre se pautou pela discrição e pela autocontenção fora dos autos. Essa é uma característica dele: não vai a reuniões com parlamentares, não se manifesta sobre conflitos da seara política, não verbalizava suas ideias fora dos autos.

Além disso, internamente, é um ministro sem arestas, pelo comportamento cordato e por seu temperamento e discrição. A despeito do individualismo evidente que marca sua atuação decisória, e talvez também por isso, não o vimos entrar em embates no plenário, não o vimos como ponto de discórdia, mas como ponto de fator de pacificação de conflitos internos, de temperança, de preservação da institucionalidade nas interações entre os ministros. 

Não para menos, o ministro Celso consome a história do Supremo. É certamente o ministro que mais estuda, preserva, cita, zela e usa o passado do STF no dia a dia do tribunal. Ciente dos limites litúrgicos, consciente do valor de certas tradições, que se evidenciam nas homenagens que comumente lidera, Celso se tornou uma referência interna.

Não por outra razão, nas paredes do tribunal está a placa com o texto proposto por Celso e aprovado em sessão administrativa com a íntegra da missão institucional do STF: “Incumbe, ao Supremo Tribunal Federal, no desempenho de suas altas funções institucionais e como garantidor da intangibilidade da ordem constitucional, o grave compromisso – que lhe foi soberanamente delegado pela Assembleia Nacional Constituinte – de velar pela integridade dos direitos fundamentais, de repelir condutas governamentais abusivas, de conferir prevalência à essencial dignidade da pessoa humana, de fazer cumprir os pactos internacionais que protegem os grupos vulneráveis expostos a injustas perseguições e a práticas discriminatórias, de neutralizar qualquer ensaio de opressão estatal e de nulificar os excessos do Poder e os comportamentos desviantes de seus agentes e autoridades, que tanto deformam o significado democrático da própria Lei Fundamental da República.”

Em momentos sensíveis, como na prisão do senador Delcídio do Amaral, foi a Celso de Mello que o ministro Teori Zavascki acorreu para preparar o Supremo para uma decisão institucionalmente sensível.

Quando em jogo a prisão em segunda instância e a situação jurídica do ex-presidente Lula, foi Celso de Mello o intermediário de uma solução. Foi ele quem conversou com a presidente Cármen Lúcia para buscar uma saída para um entrave que dividiu a Corte e poderia colocar em questão a autoridade da ministra como presidente. Afinal, ministros cogitaram uma questão de ordem para atropelar sua decisão de não pautar o julgamento das ações que levariam – como levaram – à reversão da jurisprudência que permitia a execução da pena após condenação por órgão colegiado.

Em um tribunal composto por onze ilhas, na expressão de Sepúlveda Pertence, o gabinete de Celso foi em diversos momentos uma espécie de Organização das Nações Unidas, com contatos e conversas, inclusive, mais frequentes do que se imagina, especialmente quando ele, o ministro, se engajava na solução de algum conflito, como no caso da criminalização da homofobia e da execução da pena após condenação em segunda instância.

Por outro lado, existem as circunstâncias. E aqui lembro as palavras de Rogério Arantes sobre o legado de Celso de Mello. Ele mencionou que o ministro Celso se beneficiou da combinação da sua forma de agir com as circunstâncias, a conjuntura.

Um ministro do Supremo, falando em caráter reservado, mencionou certa vez que ex-presidentes do tribunal que retornam à bancada têm mais liberdade para se manifestar internamente sobre questões institucionais, administrativas. Não foi a expressão exata deste ministro, mas ex-presidentes teriam mais legitimidade para criticar o próprio tribunal do que ministros que ainda assumirão o comando do Supremo.

Isso valeria ainda mais para o decano. Além de já ter sido presidente, é o mais antigo dos mais antigos. Como lembrou Rogério Arantes, Celso de Mello foi presidente há mais de duas décadas. Eventuais problemas administrativos e conflitos com os demais Poderes, quando ele estava no comando do STF, já ficaram no passado.

Portanto, vamos pensar as circunstâncias. Além do transcorrer do tempo, o que mais beneficiou o decanato de Celso de Mello?

Vamos lembrar três momentos. E, em todos, passaremos pela característica que marcou o ministro Celso desde então: a ênfase nas palavras, o uso de termos duros (acima do tom, na opinião de alguns colegas), o peso de suas manifestações públicas.  

Palavras proferidas pelo decano que podem, internamente, funcionar como apaziguadora, pacificadora, numa função de coesão. Palavras que, para fora do tribunal, podem apor um escudo protetor à Corte contra ataques indevidos ou podem fazer o tribunal avançar sobre aqueles que avançam contra o STF.

1 – Mensalão. Já quando o ministro Ayres Britto assumiu o comando do tribunal, e já prometendo colocar em julgamento a ação penal do mensalão, Celso de Mello aproveitou o discurso em homenagem ao colega para pontuar uma posição político-institucional em relação ao escândalo de corrupção.

“O que se mostra imperioso proclamar, Senhor Presidente, é que nenhum Poder da República tem legitimidade para desrespeitar a Constituição ou para ferir direitos públicos e privados de quaisquer pessoas, eis que, na fórmula política do regime democrático, nenhum dos Poderes da República é imune ao império das leis e à força hierárquica da Constituição”.

E durante o julgamento, foram as suas expressões em relação aos crimes cometidos e às autoridades públicas que os praticaram que ganharam as manchetes e o sintonizaram com o discurso de uma maioria da sociedade que, legitimamente, esperava a condenação penal e moral dos envolvidos.

A imprensa tratava seu voto como histórico. Mas o que ali havia de histórico, para boa parte da imprensa, era o discurso, a contundência das palavras, e não necessariamente a riqueza da tese jurídica, a avaliação das provas.

“Este processo revela um dos episódios mais vergonhosos da história política de nosso país, pois os elementos probatórios que foram produzidos pelo Ministério Público expõem aos olhos de uma Nação estarrecida, perplexa e envergonhada um grupo de delinquentes que degradou a atividade política, transformando-a em plataforma de ações criminosas”.

Enquanto relator – Joaquim Barbosa – e revisor – Ricardo Lewandowski – se digladiavam, Celso de Mello dava o tom. Era o poder pela palavra, não pelo argumento jurídico, não pela decisão em si.

E aqui, um parêntese. O ministro Celso se tornou decano em 2007. O julgamento da ação penal do mensalão, um ponto de virada para o tribunal, se iniciou em 2012. Portanto, três anos antes de atingir a idade da aposentadoria compulsória que, naquele momento, era de 70 anos de idade. Ou seja, o mensalão era um dos mais importantes processos da história do STF e poderia ser um dos últimos grandes julgamentos do Supremo com Celso de Mello.

Neste momento, Celso de Mello de fato inicia seu decanato. A condenação pública do esquema do mensalão, naquelas palavras, dava outra dimensão ao ministro, também ao julgamento e reforçava o papel institucional do tribunal.

“Formou-se, na cúpula do poder, à margem da lei e do Direito e ao arrepio dos bons costumes administrativos, um estranho e pernicioso sodalício constituído de altos dirigentes governamentais e partidários, unidos por um perverso e comum desígnio, por um vínculo associativo estável que buscava conferir operacionalidade, exequibilidade e eficácia ao objetivo espúrio por eles estabelecido: cometer crimes, qualquer crime, agindo, nos subterrâneos do poder, como conspiradores à sombra do Estado, para, em assim procedendo, vulnerar, transgredir e lesionar a paz pública, que representa, em sua dimensão concreta, enquanto expressão da tranquilidade da ordem e da segurança geral e coletiva, o bem jurídico posto sob a égide e a proteção das leis e da autoridade do Estado.”

2 – Presidência da ministra Cármen Lúcia. Durante a presidência da ministra Cármen Lúcia, é possível mencionar um segundo episódio. E aqui, recorro às palavras do próprio ministro Celso de Mello, em auxílio.

Quando o Supremo, depois dos entrechoques internos e diante da impossibilidade de julgar as ações de controle concentrado sobre a execução provisória da pena, em razão da resistência da ministra Cármen Lúcia à nova alteração jurisprudencial em tão curto espaço de tempo, coube ao ministro articular a saída institucional para viabilizar o julgamento do habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Lula.

Na véspera desse julgamento, o general Villas Bôas foi ao Twitter e publicou a seguinte mensagem: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”.

E, numa segunda postagem, escreveu: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.

Iniciada a sessão de julgamento, a presidente Cármen Lúcia ressaltou que o Supremo é o responsável pela guarda da Constituição e que atua de forma independente e soberana. “Toda decisão judicial é importante. Entretanto, algumas têm eventualmente maior impacto que outras, mas todas são tratadas pelos juízes com igual rigor e responsabilidade por este e por qualquer tribunal”. E acrescentou que o papel do Supremo é insubstituível na democracia.

Em situações como estas, de ataques, ameaças institucionais ao Supremo, quem fala pelo tribunal é o presidente ou a presidente do STF. Portanto, Cármen Lucia, iniciada a sessão, estaria cumprindo esse papel de representar a instituição no diálogo com os demais Poderes. Correto?

Celso de Mello não entendia assim. E digo que conto com suas palavras em socorro porque pude ouvi-lo, naquele momento, sobre este episódio. Já avançada a noite, depois de 22 horas, quando chegou sua vez de votar, Celso de Mello falou o que considera que Cármen Lúcia deveria ter falado. A seu ver, a presidente do Supremo foi tímida na resposta a um ataque que ele considerava grave.

E foi assim que Celso iniciou seu voto: Alguns pronunciamentos manifestados no dia de ontem (03/04/2018), especialmente declarações impregnadas de insólito conteúdo admonitório claramente infringentes do princípio da separação de Poderes, impõem que se façam breves considerações a respeito desse fato, até mesmo em função da altíssima e digníssima fonte de que emanaram”.

Depois, comparou a manifestação de Villas Bôas com a ameaça perpetrada contra o Supremo pelo presidente Floriano Peixoto, em 1892, antes do julgamento do habeas corpus 300. E mencionou algo que nos ajuda a compreender o comportamento de Celso de Mello no governo do presidente Jair Bolsonaro.

Antes de responder diretamente a Villas Bôas – o ministro não cita seu nome, como nunca cita nomes quando rebate ataques ao tribunal –, Celso de Mello ressalvou que “em um contexto de grave crise que afeta e compromete, de um lado, os próprios fundamentos ético-jurídicos que dão sustentação ao exercício legítimo do poder político e que expõe, de outro, o comportamento anômalo de protagonistas relevantes situados nos diversos escalões do aparelho de Estado, torna-se perceptível a justa, intensa e profunda indignação da sociedade civil perante esse quadro deplorável de desoladora e aviltante perversão da ética do poder e do direito!”.

Disse que para o cidadão honesto era intolerável assistir aos escândalos de “corrupção governamental”. Mas ressaltava que em momento dessa gravidade “costumam insinuar-se pronunciamentos ou registrar-se movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e lesivas) à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir, qualquer que seja a modalidade que assuma: pretorianismo oligárquico, pretorianismo radical ou pretorianismo de massa”. Só então respondeu a Villas Bôas. 

Ou seja, o Celso de Mello de 2018 já pronunciava o mesmo discurso que verbalizou com Bolsonaro no comando do Executivo quando diz que as “intervenções pretorianas no domínio político-institucional têm representado momentos de grave inflexão no processo de desenvolvimento e de consolidação das liberdades fundamentais” e que a intervenção de militares na cena política, quando há ruptura, “tendem, na lógica do regime supressor das liberdades que se lhes segue, a diminuir (quando não a eliminar) o espaço institucional reservado ao dissenso, limitando, desse modo, com danos irreversíveis ao sistema democrático, a possibilidade de livre expansão da atividade política e do exercício pleno da cidadania”.

A citação inteira.

“É preciso ressaltar que a experiência concreta a que se submeteu o Brasil no período de vigência do regime de exceção (1964/1985) constitui, para esta e para as próximas gerações, marcante advertência que não pode ser ignorada: as intervenções pretorianas no domínio político-institucional têm representado momentos de grave inflexão no processo de desenvolvimento e de consolidação das liberdades fundamentais. Intervenções castrenses, quando efetivadas e tornadas vitoriosas, tendem, na lógica do regime supressor das liberdades que se lhes segue, a diminuir (quando não a eliminar) o espaço institucional reservado ao dissenso, limitando, desse modo, com danos irreversíveis ao sistema democrático, a possibilidade de livre expansão da atividade política e do exercício pleno da cidadania”.

E ele encerra esse pronunciamento inicial, antes de passar ao voto, dizendo:

“Tudo isso é inaceitável, senhora presidente, porque o respeito indeclinável à Constituição e às leis da República representa limite inultrapassável a que se devem submeter os agentes do Estado.”

Celso de Mello, como decano, aguardou sua vez de votar. E falou pela instituição.

3 – A Presidência de Dias Toffoli – Este é outro momento que conspira a favor da consolidação de Celso de Mello como decano. Desde antes de iniciada sua presidência, o ministro Dias Toffoli já indicava que sua presidência seria de concertação. E isso foi ficando mais e mais evidente.

Por exemplo, quando Toffoli se referiu ao “golpe de 64” como “movimento de 64” em palestra na USP no dia 1 de outubro de 2018, a seis dias do primeiro turno das eleições. E mais claro ainda quando levou para dentro do Supremo um general da ativa para compor seu gabinete. Quando propôs, aí já com Bolsonaro eleito, um pacto entre os Três Poderes em torno de uma agenda de propostas amorfa.

Portanto, o tom e a expectativa já eram de conciliação. Em seu discurso de posse, Toffoli confirma esse norte para sua gestão: “Hora de valorizar o entendimento e o diálogo!”.

Entre o primeiro e o segundo turno das eleições, um militar da reserva gravou um vídeo e o divulgou nas redes sociais com ofensas à presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Rosa Weber, e também a Toffoli, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski.

Enquanto ministros do Supremo já se encaminhavam para resolver a questão sem alarde, Celso de Mello foi para a sessão da Segunda Turma e fez um discurso em defesa de Weber e dos demais colegas. Classificou o discurso do militar como “imundo, sórdido e repugnante”. O militar já estava sendo investigado e, na articulação feita nos bastidores, foi alvo de uma operação policial e de medidas restritivas.

Ainda durante a campanha eleitoral, o filho do então candidato Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, participou de uma aula um curso preparatório para a polícia. Afirmou ali que o Supremo poderia ser fechado se houvesse tentativa de impugnar a candidatura do pai. Bastaria “um soldado e um cabo”.

Toffoli, como resposta, divulgou uma nota curta à imprensa: “O país conta com instituições sólidas e todas as autoridades devem respeitar a Constituição. Atacar o Poder Judiciário é atacar a democracia”.

A escolha de palavras e o tom fazem pensar que, para Toffoli, naquele momento, havia mais ruído e retórica de campanha do que verdadeiramente ameaça para a instituição. Ou ainda que, para o novo presidente do Supremo, não seria o caso de elevar o tom antes mesmo de iniciado o governo.

Este cenário permite traçar três distinções possíveis entre Toffoli e Celso.

1 – Toffoli representa o tribunal e considera que precisa manter pontes permanentes com os demais Poderes. Além disso, tem o desafio de manter sua liderança interna. Celso de Mello não precisa de pontes. Nem nunca as quis construir. Pôde permanecer encastelado no seu próprio gabinete, que acaba sendo seu próprio Supremo. E sua legitimidade como decano é inquestionável.  

2 – Toffoli tem ainda a questão da temporalidade contra ele. São apenas dois anos de mandato e depois o retorno à bancada para mais um longo período como juiz. Celso de Mello está cuidando de fechar o seu legado, concluir sua obra no STF.

3 – Celso de Mello, ao contrário de Toffoli, enxerga, desde a campanha eleitoral, o governo Bolsonaro como potencial ameaça às instituições. Com sua observação mais à distância, o decano não via como parte normal do jogo o que Toffoli podia compreender como algo corriqueiro na política. Ou seja, enquanto Toffoli agia para baixar a temperatura, Celso de Mello ia a público bradar contra os ataques ao Supremo.

E há nessa ambivalência também um complemento. Afinal, quando o presidente não quer ou não pode falar, o decano pode agir. Terão Toffoli e Celso de Mello se complementado?

O tempo acabou mostrando que Celso de Mello tinha razão em pensar que os ataques não eram apenas ameaças vazias. Tanto que Toffoli instaurou o inquérito contra o esquema de fake news para fazer frente aos ataques ao Supremo. Mas Toffoli poderá argumentar que tinha suas razões para agir dessa maneira no início e que tentou, como presidente do Supremo, encontrar a saída para os conflitos entre os dois Poderes no diálogo, como enfatizou no seu discurso.

De volta ao ponto inicial. Foi essa combinação de qualidades pessoais e circunstâncias históricas que erigiu a figura de Celso de Mello como decano. No Supremo do passado, em que as individualidades eram repelidas pelo regimento e pelos integrantes da Corte, em que as competências eram mais restritas, em que o tribunal ainda não figurava nas disputas políticas essenciais para o país, a figura do decano não fazia sequer sentido. Mas muita coisa mudou. Mesmo o presidente do Supremo do passado não se compararia ao presidente do STF dos nossos tempos.

Essa constatação, esse diagnóstico, não retira do ministro Celso a autoria, no vazio de alguns momentos, dessa nova instituição: a do decano. Muito provavelmente, uma combinação de circunstâncias políticas, judiciais e de equilíbrio de forças do colegiado que não se repetirão. Portanto, Celso de Mello pode ter sido o primeiro e único ministro a exercer a função de decano – ao menos da maneira como entendemos esse papel hoje, após o decanato de Celso de Mello. Terá sido o último?