Consultas públicas são instrumentos previstos na legislação para conferir legitimidade e transparência a decisões administrativas. Seu uso representa uma importante ferramenta de diálogo com a sociedade, tendo sido um avanço na busca de accountability vertical (i.e. controle social) das agências reguladoras, bem como de órgãos da administração pública centralizada.
No entanto, apesar dos evidentes aspectos positivos, as consultas públicas estão sujeitas à instrumentalização em favor de interesses específicos. No contexto atual, é fundamental entender como mecanismos criados para garantir maior abertura a discussões públicas podem ser distorcidos para simplesmente atrasar processos decisórios importantes, mesmo aqueles baseados em dados científicos.
É o caso da Consulta Pública SECovid/MS nº 01/2021, que tem por objetivo “informar e conhecer as dúvidas da população acerca da vacinação de crianças de cinco a 11 anos, com a finalidade de obter subsídios e informações da sociedade para o processo de tomada de decisões”, relativa à Covid-19. Aparentemente o propósito é legítimo: ouvir a população acerca da uma política pública relevante e de inequívoco interesse coletivo.
Contudo, uma análise mais detida mostra uma realidade bem diferente. Essa consulta pública, de fato, é similar à campanha “Não olhe para cima” do filme homônimo lançado recentemente pela Netflix. Na ficção, o governo dos Estados Unidos tenta postergar e limitar a tomada de atitudes para evitar que um meteoro atinja a Terra em uma guerra de narrativas que simplesmente nega dados científicos, procurando convencer a população a ignorar a realidade.
No caso brasileiro, ao submeter uma discussão científica a uma jornada de comentários desnecessários e puramente protelatórios, o governo mais uma vez despreza a ciência, atrasa a adoção de medidas eficazes de controle da pandemia e sujeita as crianças – e toda a sociedade – a mais riscos. É importante compreender o contexto que aproxima a ficção da triste realidade brasileira.
Cabe lembrar que a Anvisa aprovou a aplicação de doses de uma determinada vacina para as crianças após a apreciação dos estudos apresentados pela companhia farmacêutica que desenvolveu a vacina, em termos muito similares ao ocorrido com a vacinação de pessoas acima de 18 anos e depois entre 12 e 18 anos.
Após a análise dos estudos científicos, o órgão regulador, competente para a aprovação da comercialização e uso de medicamentos no país, decidiu por ampliar a faixa etária elegível à vacinação para as crianças entre 5 e 12 anos, em caráter emergencial. A medida é relevante em um cenário de volta às aulas e maior exposição das crianças à Covid-19 – justamente o público não vacinado –, que já experimenta um crescimento desproporcional no número de casos em relação a outras faixas etárias.
Trata-se de vacina com registro definitivo já concedido pela agência e a única com aplicação autorizada para menores de 18 anos. Vale frisar que se trata de uma vacina que conta com aprovação definitiva não apenas no Brasil, mas em vários outros países – dentre eles os Estados Unidos, país de origem de uma das empresas produtoras. Lá, inclusive, a vacinação infantil já foi iniciada. Aqui, cabe ao Ministério da Saúde decidir pela inclusão da vacina no Plano Nacional de Imunização (PNI).
Tanto o presidente da República quanto o ministro da Saúde se manifestaram contrariamente à decisão, fundamentalmente afirmando que “não vêm morrendo crianças que justifiquem uma vacina”. O primeiro, inclusive, buscou intimidar publicamente os servidores da agência, requerendo “extraoficialmente o nome das pessoas” responsáveis pela decisão administrativa – como se esse já não fosse um dado público, considerando que decisões administrativas não são documentos apócrifos. Foi instaurado um inquérito para apurar as ameaças que se seguiram.
Dado o posicionamento do governo federal, o Ministério da Saúde foi obrigado, por decisão proferida pelo STF, a se manifestar sobre um cronograma para o início e término da vacinação infantil. Emparedado pelo Supremo, o Ministério da Saúde então decidiu pela abertura da consulta pública, justificando sua adoção pela prática adotada em outros Poderes. Do ponto de vista estritamente formal, o apontamento está correto, mas não deve ser essa a lente de análise a ser adotada no caso. O contexto aqui exposto, por si só, já demonstra que a consulta pública é meramente pro forma, e a análise das questões, bem como da documentação de suporte, corrobora essa afirmação. Vejamos.
Inicialmente, a primeira pergunta é formulada de forma dúbia, ao permitir como resposta apenas “sim” ou “não”: “Você concorda com a vacinação em crianças de 5 a 11 anos de forma não compulsória conforme propõe o Ministério da Saúde?”.
Como deveria responder alguém que entende que a vacinação deveria ser compulsória – em decorrência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre vacinação infantil? Ou por alguém que discorda da vacinação em qualquer hipótese? A tendência é que esses dois grupos, que possuem entendimentos absolutamente contrapostos, tenham sua resposta computada conjuntamente de forma negativa – e interpretada, posteriormente, de acordo com a conveniência do analista da pesquisa.
Da mesma forma, uma resposta positiva, ou seja, concordância com a vacinação infantil, já demanda a aceitação de outra premissa: a de que a vacinação não deve ser compulsória. Ou seja, a pergunta tem muito pouco a esclarecer e muito a contribuir para a guerra de narrativas proposta pelo presidente da República. Nesse contexto, a finalidade da consulta pública parece ser unicamente criar um ambiente polarizado em torno da extensão da vacinação ao público infantil, em vez de buscar a coleta de subsídios técnicos (o que, de todo modo, já foi realizado pelo órgão competente) ou mesmo conscientizar a população da importância da vacinação. Aliás, o efeito pretendido parece ser exatamente o contrário, criar dúvida e receio na população para limitar a cobertura vacinal infantil.
Sobre a exigência de receita médica e termo de responsabilidade/consentimento dos pais, o próprio ministro já havia se antecipado indicando que elas seriam impostas – evidenciando o caráter pro forma da consulta pública. Houve a reação de vários estados indicando que não seria implementada tal exigência, bem como novo pedido de informações por parte do STF acerca da afirmação. Uma vez que o órgão técnico considerou a vacina segura, essa exigência apenas contribuiria para desestimular os responsáveis a buscar a vacinação das crianças, com impacto desproporcional sobre camadas mais carentes da população, com acesso mais limitado a médicos.
Isso nos remete à documentação de suporte da consulta pública, que contraria o discurso adotado pelo presidente da República quanto à existência de riscos sérios à saúde das crianças por conta da vacinação, como casos graves de miocardite. Quanto a esse ponto, os dados do mundo real trazidos no próprio estudo disponibilizado pelo Ministério da Saúde falam por si só: foram identificados oito casos de miocardite em mais de 7 milhões de doses aplicadas – o que significa precisamente 0,0112% de efeitos adversos por essa cardiopatia. Mais do que isso, todos os oito casos foram classificados como de “evolução clínica favorável”. Por fim, o estudo do Ministério da Saúde conclui que o risco decorrente da aplicação das vacinas é menor para crianças em relação à miocardite do que para adolescentes e adultos jovens. Nenhuma informação sobre casos graves de miocardite provocados pela vacinação é apresentada.
Em manifestação ao STF, inclusive, o Ministério da Saúde, por meio de sua Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, contraria frontalmente as falas do presidente da República. Ali são reiteradas as mesmas conclusões da documentação de suporte à consulta pública, no sentido da segurança da vacina e excepcionalidade dos efeitos adversos (inclusive quanto à miocardite).
Portanto, não há controvérsia científica sobre a segurança da vacina aprovada para aplicação ao público infantil, sequer no âmbito do Ministério da Saúde – ao contrário do que apontou o próprio ministro. A ponderação de risco-benefício já foi feita pela Anvisa e não caberia ao Ministério da Saúde rediscutir o risco apenas para atender a interesses políticos do presidente da República ou de qualquer outro agente público ou privado. Se há discordância quanto à decisão adotada pela Anvisa, que os meios jurídicos cabíveis sejam acionados para o questionamento da decisão, com fundamentação científica e técnica robusta e confiável, algo que simplesmente não foi apresentado.
Nesse contexto, a realização da consulta pública representa um desvio de finalidade clássico, voltado apenas e tão somente a protelar tanto os efeitos decorrentes da adoção de uma decisão técnica por parte da agência reguladora, como também a prestação de informações junto ao STF. O foco das perguntas não é coletar subsídios técnicos para uma decisão informada – o que já foi feito pelo órgão competente para avaliar a segurança da vacina, a Anvisa –, mas para servir de meio de manifestação pública desinformada, estimulando uma guerra de narrativas puramente ideológica, em verdadeiro desserviço à sociedade e à saúde pública.
De fato, o palco foi montado para que surjam informações e “estudos” que se pautam por uma análise enviesada de dados ou pior, pelo uso de dados simplesmente errados ou coletados junto a fontes sem qualquer tipo de credibilidade. Aqui há nova aproximação com o filme “Não olhe para cima”: ciência se faz com estudos sérios, segundo métodos claros, contando com dados fidedignos (ou seja, com fontes identificáveis e confiáveis) e com análise por pares – e não pela coleta tendenciosa de dados para confirmar uma ideia ou narrativa pré-concebida ou simplesmente para gerar confusão e protelação.
O tipo de discussão a ser travado sobre a vacinação infantil é incompatível com uma espécie de “pesquisa de opinião”. A verdadeira finalidade, assim, parece ser a de incitar o questionamento atécnico de uma decisão que deveria ser técnica, contribuindo para a disseminação de desinformação e incertezas em lugar da segurança que o governo federal deveria transmitir à sociedade, dentro de um contexto de pandemia.
Corrobora, ainda, a visão de desvio de finalidade no caso concreto o fato de que não foram feitos procedimentos de consulta pública antes de outros atos similares. Citamos, como exemplos, o início da vacinação da população adulta, inclusive com vacinas com aprovação emergencial, bem como de adolescentes entre 12 e 18 anos. Vale mencionar ainda a distribuição do controverso “kit Covid”, que contou com a mobilização de recursos públicos e até mesmo um aplicativo patrocinado pelo governo federal.
No Brasil, é possível que o meteoro nos atinja antes de olharmos para cima. Vamos olhar para as crianças e evitar que a pandemia as atinja enquanto é tempo. Que a perspectiva de disponibilidade da vacina para o público infantil logo em janeiro se confirme e que o resultado da consulta pública não sirva aos propósitos distorcidos de um governo que não quer ouvir.