Um dos temas mais candentes no cotidiano forense envolvendo a defesa de pessoas vulneráveis refere-se à aplicação das chamadas medidas protetivas de urgência.
Discute-se, atualmente, se essas formas específicas de tutela teriam natureza cível ou criminal, se seriam modalidades de tutelas cautelares acessórias ou ações autônomas, se seriam aplicadas exclusivamente em favor de mulheres em situação de violência ou também em favor de outros grupos vulneráveis.
Há, ainda, vasta divergência doutrinária e jurisprudencial relacionada a aspectos procedimentais das medidas protetivas de urgência, tais como competência, capacidade postulatória, meios de comunicação processual e, principalmente, sobre a recorribilidade das decisões que resolvem os pleitos protetivos.
De saída, é preciso deixar claro que as medidas protetivas de urgência consubstanciam genuínas ações autônomas de conhecimento, que ostentam natureza cível e não criminal, tendo por escopo prevenir violações a direitos humanos e garantir a proteção de indivíduos em situação de vulnerabilidade.
Para muito além de meras tutelas acessórias, as medidas protetivas ligam-se à pronta necessidade de salvaguarda do patrimônio mínimo da pessoa humana. Constituem, em função disso, expressão de uma tutela jurisdicional humanista, a qual se volta precipuamente à tutela das pessoas e não somente dos direitos.
Na legislação, é possível colher diversos exemplos de medidas protetivas, destacando-se as previsões do Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 98 a 102), do Estatuto do Idoso (arts. 43 a 45), da Lei Maria da Penha (arts. 18 a 23), da Lei Brasileira de Inclusão (art. 10, par. ún.) e da Lei de Migração (art. 4º, inc. IV).
Sempre, portanto, que estiverem em situação de risco pessoal, quaisquer destes grupos vulneráveis podem fazer uso de medidas protetivas de urgência para a sua proteção.
Doravante, importante deixar claro que as medidas protetivas de urgência não são uma exclusividade da tutela jurisdicional prestada às mulheres em situação de violência doméstica ou familiar. E nem poderiam ser, considerando que todo e qualquer cidadão pode pleitear uma tutela preventiva diante de uma situação concreta de risco social, corolário da cláusula constitucional de inafastabilidade de jurisdição (art. 5º, inc. XXXV, CF/88).
Nem mesmo a possibilidade de prisão preventiva como garantia de execução das medidas protetivas de urgência pode mais ser atribuída exclusivamente à tutela das mulheres, considerando que a nova redação do artigo 313, inciso III, do CPP, prevê a possibilidade de decretação da prisão preventiva diante de crime envolvendo “violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”.
Mas é preciso cautela, pois, com o que há de realmente específico nas medidas protetivas de urgência em favor das mulheres em situação de violência. Para além da regulamentação particular estabelecida nos artigos 18 a 24 da Lei nº 11.340/2006 e das disposições referentes à competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, é somente nesse âmbito que se materializa o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência (art. 24-A), tipo penal específico que só alcança a tutela protetiva prestada às mulheres.
Ademais, é possível delinear as principais características das medidas protetivas de urgência, a saber:
- tem por escopo precípuo a proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade sociocultural;
- independem da efetiva ocorrência do dano, voltando-se a prevenir o risco ou a ameaça de lesão a direitos fundamentais;
- admitem exceção à exigência do pressuposto processual da capacidade postulatória, autorizando que a própria pessoa, independentemente do patrocínio por profissional jurídico, postule sua proteção em juízo;
- caracterizam-se pela fungibilidade, substitutividade e atipicidade (ou não-taxatividade);
- demandam a intervenção do Ministério Público na qualidade de “custos iuris”;
- admitem o “fórum shopping” e a flexibilização das regras de competência territorial em favor da parte vulnerável;
- excepcionam a regra geral de comunicação epistolar em favor da intimação pessoal;
- desafiam o recurso de agravo de instrumento em caso de indeferimento;
- admitem tutelas específicas e medidas executivas atípicas para sua implementação e observância.
A respeito de sua natureza jurídica, importante convocar a atenção para um ponto específico: embora as medidas protetivas de urgência possam veicular tutelas provisórias tipicamente cautelares (ex: prestação de caução provisória pelo agressor; manutenção do vínculo trabalhista pelo empregador por até 6 meses diante da necessidade de afastamento etc.), tais modalidades não definem ou esgotam a natureza jurídica das medidas protetivas de urgência, tampouco condicionam seu procedimento às regras do processo cautelar.
Ao invés, vige em relação às medidas protetivas o princípio da atipicidade ou não-taxatividade, permitindo-se a vinculação de variadas espécies de tutelas protetivas, conjunta ou separadamente, as quais são implementadas à luz das necessidades concretas apresentadas pela parte vulnerável postulante.
Daí inclusive a independência procedimental reconhecida pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no tocante às medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha, as quais podem subsistir à margem de boletins de ocorrência, inquéritos policiais ou processos criminais. Não ostentam, portanto, a nota característica da acessoriedade, independendo seu desfecho da sorte ou do resultado útil de qualquer outro processo.
Nesse sentido, esclarece o aresto: “as medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor”.
O mesmo entendimento foi adotado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo: “o fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. E só. Elas não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial”.
Como recorda Maria Berenice Dias, o escopo das medidas protetivas de urgência é a proteção de direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. Não seriam, portanto, necessariamente preparatórias de qualquer outra demanda judicial, afinal “não visam processos, mas pessoas”.
Justamente por pretender prevenir situações de violações a direitos humanos, tais medidas independem da caracterização do dano para sua concessão, bastando que a parte demonstre a potencial prática de um ilícito ou de um abuso de direito caracterizador de um risco que justifique a proteção encetada.
A propósito, a partir das medidas protetivas de urgência fica clara a distinção entre vulnerabilidade e vitimização. Como visto em colunas anteriores, a vulnerabilidade está ligada à ideia de predisposição de um sujeito ou grupo a uma situação de risco ou posição de fragilidade, o que não necessariamente dialoga com uma noção de dano prévio. Já a vitimização pressupõe um prejuízo material, moral, estético ou existencial à pessoa, tornando a caracterização do dano imprescindível para sua ocorrência.
Como ensina Heloisa Helena Barboza: “a vítima já sofreu um prejuízo material ou moral, enquanto a pessoa vulnerável está exposta a um risco; o vulnerável é suscetível de ser atingido, a vítima já o foi”.
Perfeitamente possível, portanto, que as medidas protetivas de urgência veiculem a concessão de tutelas inibitórias, desde que presente a “probabilidade do ilícito” e o “risco justificado”.
Assim, basta à parte vulnerável apresentar elementos que evidenciem a probabilidade da ocorrência de um ato contrário ao direito (uma ameaça de agressão ou de abandono material, por. ex.), permitindo ao magistrado, por meio de cognição sumária, a formação de um juízo provisório sobre a veracidade das alegações e sobre a situação de risco aos direitos fundamentais protegidos, ainda que à mercê de prova inequívoca.
Outra questão processual envolvendo a concessão de medidas protetivas de urgência envolve a necessidade de pronta comunicação dos atos processuais, tanto à pessoa vulnerável que solicita a tutela (requerente), quanto ao sujeito que coloca em risco seus direitos fundamentais (requerido).
Neste passo, o uso da tecnologia pode representar um importante fator de facilitação ao acesso tempestivo à justiça de partes vulneráveis, especialmente no tocante à comunicação digital entre partes e juiz.
Cite-se como exemplo à possibilidade de comunicação eletrônica de réus em decisões que fixam medidas protetivas de urgência em favor de mulheres em situação de violência, os quais, muito embora não encontrados por oficial de justiça, seguem ameaçando às vítimas via aplicativos eletrônicos (ex: email, aplicativo WhatsApp, rede social Instagram ou Facebook etc.).
Sobre o mote, registre-se que a Lei nº 14.022/2020, voltada à adaptação de procedimentos envolvendo grupos vulneráveis durante o período de calamidade sanitária decorrente da pandemia (SARS/Covid-19), expressamente admitiu a comunicação eletrônica da vítima e do agressor nos casos de concessão de medidas protetivas de urgência.
Segundo dispôs o parágrafo 3º do artigo 4º: “na hipótese em que as circunstâncias do fato justifiquem a medida prevista neste artigo, a autoridade competente poderá conceder qualquer uma das medidas protetivas de urgência previstas nos arts. 12-B, 12-C, 22, 23 e 24 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), de forma eletrônica, e poderá considerar provas coletadas eletronicamente ou por audiovisual, em momento anterior à lavratura do boletim de ocorrência e a colheita de provas que exija a presença física da ofendida, facultado ao Poder Judiciário intimar a ofendida e o ofensor da decisão judicial por meio eletrônico”.
Frise-se a importância da comunicação processual eletrônica nestes casos, seja como forma de fazer cessar a violência contra a pessoa vulnerável, seja como forma de impor o marco temporal caracterizador de eventual descumprimento das medidas protetivas de urgência, cujas consequências, no âmbito da tutela das mulheres, podem até mesmo conduzir à prisão em flagrante delito do agressor (art. 24-A da Lei 11.340/2006).
Tentou-se até aqui delinear algumas das questões mais relevantes envolvendo as medidas protetivas e a tutela de grupos vulneráveis. Faltou enfrentar a questão da recorribilidade das decisões que resolvem os pedidos de medidas protetivas de urgência. O problema é que esse tópico atrai muito “pano pra manga”, motivando sua abordagem em uma coluna própria.
Nos vemos em breve!