O departamento jurídico mudou. Ou melhor, está em constante mudança. Essa é a tese defendida pela vice-presidente jurídica e de compliance da Ambev, Letícia Kina. Em entrevista ao JOTA, Kina explica que aquela visão de que o jurídico servia para dizer “o que pode e o que não pode” já não existe mais.
Para ela, o jurídico hoje, além de estar alinhado aos princípios de sustentabilidade – que não se relacionam apenas ao meio ambiente, mas também à diversidade cultural –, precisa estar em constante processo de aprendizado e anda lado a lado com a inovação. “Em um cenário de inovação, o jurídico precisa ter a percepção de que o regulatório está sempre atrasado em relação ao que acontece. A norma dificilmente antevê o futuro. Por isso, a gente acaba tendo um papel, com base em princípios, no que seria o razoável, no que é a intenção que tem nas normas anteriores, de pensar em qual a forma de se comportar”, diz.
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Ela cita como exemplo a falta de regulação para dar segurança ao lançamento de novos produtos, como foi o caso da Stella Artois sem glúten. “Não tínhamos no Brasil o balizador do limite para considerar algo sem glúten. Foi aí que tivemos o cuidado de não afirmar de imediato que era sem glúten. Optamos por dizer que era baixo em glúten e explicar o que isso significa”, resume.
Quanto ao uso de ferramentas de inteligência artificial externas, Kina destaca a preocupação com a confidencialidade das informações da empresa. “Temos o cuidado de avaliar qual é o filtro para o que vai para o ambiente público. No fim, os princípios são mais ou menos os mesmos: aquilo que você levaria para o ambiente público, você pode levar para o ambiente de inteligência artificial”, afirma.
Outro desafio para o setor é o contencioso tributário. Nesse ponto, Kina tem esperança de que a reforma tributária simplifique o sistema e estimule um ambiente de negócios que favoreça a criação de emprego e renda.
No entanto, a vice-presidente Jurídica e de Compliance da Ambev também enxerga no Brasil um ambiente rico e favorável à promoção de novos produtos. “O Brasil é muito rico em pessoas com histórias diferentes, que vivem em ambientes climáticos diversos. Como é que você lida com pessoas que têm necessidades associadas ao ambiente em que estão, e a riqueza de informação que tiramos de tudo isso é muito rica; é uma maravilha.”
Leia trechos da entrevista:
Hoje, quais são os principais desafios da área jurídica da Ambev?
A gente tem o desafio de comunicar para além do que é a lei, para além do que é a regulação. Temos que comunicar quais são os princípios, os valores que norteiam a companhia e quem a gente é. Em um cenário de inovação, o jurídico precisa ter a percepção de que o regulatório está sempre atrasado em relação ao que acontece. A norma dificilmente antevê o futuro. Por isso, a gente acaba tendo um papel, com base em princípios, no que seria o razoável, no que é a intenção que tem nas normas anteriores, de pensar em qual a forma de se comportar. Temos que pensar no que nos norteia quando estamos inovando. O que é melhor para o consumidor? O que é melhor para o cliente? O que vai me tornar uma escolha deles?
E sabemos que, pelo tamanho da Ambev, como nos comportamos influencia o que vai acontecer no meio regulatório. A gente tem a responsabilidade de ser líder.
Para nós, como jurídico, também há o desafio de traduzir no nosso processo decisório a influência que a gente tem sobre uma liderança mais diversa, não só dos aspectos mais claros, como gênero, raça, orientação sexual, mas também sobre personalidades, perspectivas, bagagens de vida.
Temos também o papel de garantir transparência e clareza na comunicação, além do desafio de trabalhar no Brasil, em que o contencioso, em especial o tributário, é bastante relevante. Esse é um ponto que precisa evoluir para termos um melhor ambiente de negócios. Sentimos a responsabilidade de debater essa questão.
Em que consiste esse atraso na regulação? Ele fica perceptível em quais momentos?
É tanto na definição de diretrizes quanto na definição de balizadores. Normalmente, as pessoas enxergam o jurídico como um direcionamento do que pode ser feito. Mas temos o desafio de ser um jurídico que aprende.
Um exemplo de regulamentação de produto é a Stella Artois sem glúten. Não tínhamos no Brasil o balizador do limite para considerar algo sem glúten. Foi aí que tivemos o cuidado de não afirmar de imediato que era sem glúten. Optamos por dizer que era baixo em glúten e explicar o que isso significa.
A mobilização que fizemos foi maior, com nutricionistas explicando os diferentes níveis de intolerância ao glúten e qual era a quantidade presente em nosso produto. Isso não estava estabelecido na regulamentação; foi um trabalho nosso pensar na melhor forma de apresentar o produto.
Quando a companhia fala em diversidade, como funciona e como se aplica ao conselho?
A Ambev tem um conselho de administração que vai fazer 25 anos no próximo ano. Esse conselho se formou no início por pessoas que tinham conhecimento do setor e de finanças.
Nos últimos anos, conseguimos evoluir bastante e trouxemos uma matriz de habilidades, com pessoas com muita experiência, representatividade cultural, muito conhecimento do setor e conhecimento financeiro. Fomos buscar pessoas que tinham conhecimento de empreendedorismo e agilidade, conhecimento de sustentabilidade, visão de governança, controles, clareza de informações ao mercado.
Buscamos pessoas novas, chegando no mercado, mas mantemos quem tem experiência. A gente faz essa composição, que é a pessoa experiente no setor, que sabe o que já deu errado mil vezes e pode fazer o contraponto.
A senhora mencionou o contencioso tributário como um desafio. O quão otimista a companhia está com a reforma tributária?
Acreditamos que a reforma tributária representa um momento histórico e decisivo para a economia do país, principalmente para simplificar o sistema tributário brasileiro, trazer mais clareza e segurança jurídica e ajudar os negócios a se desenvolverem.
Uma reforma que reduza burocracias e distorções, permitirá que as empresas foquem seus esforços no que realmente importa, ou seja, na geração de empregos e renda para a população. Somos uma das empresas que mais paga impostos no país e vamos continuar trabalhando em prol do desenvolvimento do Brasil e dos brasileiros e brasileiras.
A Ambev é reconhecida pelo processo de resolução de conflitos a fim de evitar a judicialização. Como essa plataforma funciona? É um mecanismo próprio?
Estamos mais atentos à forma como a gente lida com eventuais divergências. Um exemplo são as reclamações trabalhistas, que não são muitas comparadas ao tamanho da companhia. Se a pessoa traz algo que achamos que faltou, já pagamos e fazemos um acordo.
Acho que a gente tem sido mais consciente nas decisões e temos tido uma posição de, sim, procurar resolver o problema e também usado tecnologia, usado algoritmo para, por exemplo, indicar se faz sentido fazer acordo se for dentro de determinado range. Também usamos data analytics e predição para decisões de acordo e até para facilitar a governança.
Ainda sobre tecnologia, como a Ambev tem usado a inteligência artificial em seus processos?
A gente não tem uma regra restritiva, binária, do tipo que ninguém pode acessar uma determinada plataforma, porém existe a regra de sempre preservar a confidencialidade das informações da companhia.
Temos o cuidado de avaliar qual é o filtro para o que vai para o ambiente público. No fim, os princípios são mais ou menos os mesmos: aquilo que você levaria para o ambiente público, você pode levar para o ambiente de inteligência artificial.
Dentro do jurídico, é usada alguma dessas ferramentas?
Não usamos o ChatGPT ou essas ferramentas mais amplas de mercado, mas utilizamos uma ferramenta interna que desenvolvemos. Optamos por um caminho menos voltado para produtos de prateleira e mais na direção do que poderíamos ter nesse sentido, desenvolvido com a minha equipe e a área de tecnologia, pois sem eles não faríamos a arquitetura disso.
Acredito que devemos trabalhar dessa forma para facilitar as respostas para as perguntas mais recorrentes em uma linguagem comum à companhia.
Qual é a sua visão sobre as vantagens competitivas e desafios que o Brasil oferece para uma empresa em termos de sustentabilidade e governança?
Para mim, ao mesmo tempo, oportunidade e desafio é a diversidade que o país tem. Tem diversidade de origem de população, tem diversidade também no aspecto dos biomas, é um país continental. Isso traz por definição muitas oportunidades e muitos desafios. A linguagem, por exemplo, quando eu vou comunicar diretrizes para o aspecto da governança, tenho que levar em consideração toda essa diversidade. Por outro lado, ela também me nutre com muita informação com uma riqueza de base para inovação.
A governança entra em como a gente se comporta e lida com a nossa comunidade. Ser uma companhia grande e livre traz como corolário uma responsabilidade.
Vou dar um exemplo de inovação. Estamos trazendo uma bebida que a gente viu que na África foi um sucesso. Tínhamos consumidores que buscavam uma bebida que fosse um pouco mais adocicada e com um apelo estético mais bonito e a gente trouxe.
Acho que o Brasil é muito rico nisso, em pessoas com histórias diferentes que vivem em ambientes com climas diferentes. Como é que você lida com pessoas que têm necessidades associadas ao ambiente em que elas estão e a riqueza de informação que a gente tira de tudo isso é muito rica, é uma maravilha.