Infra

Coronavírus e a geração solar fotovoltaica

Sem poder contar com fornecimento da China, restam poucas alternativas economicamente viáveis para importadores brasileiros

Micrografia eletrônica de transmissão de partículas do vírus SARS-CoV-2, isoladas de um paciente. Imagem capturada e aprimorada de cores no NIAID Integrated Research Facility (IRF) em Fort Detrick, Maryland. Crédito: NIAID

O presente artigo tem por objetivo trazer algumas considerações sobre a contextualização da situação causada pelo vírus denominado COVID-19 (“coronavírus”) e seus impactos nos negócios, sobretudo no setor de geração solar fotovoltaica brasileiro.

Descoberto em dezembro de 2019 na China, mais especificamente na cidade de Wuhan, o Coronavírus tem causado uma grande preocupação em todo o mundo, principalmente em decorrência da sua rápida disseminação. O Coronavírus pode ser transmitido pelo ar ou pelo contato com secreções contaminadas, e ataca diretamente o sistema respiratório daqueles que o contraem, podendo causar febre, dor no peito, dificuldade para respirar, tosse e diarreia. Mais de 4.000 mortes pelo Coronavírus já foram reportadas pela Organização Mundial de Saúde (“OMS”).

Não obstante sua relevância na área da saúde, outra área amplamente atingida pelo Coronavírus, ainda que de forma indireta, foi a econômica. A China, como maior país exportador do mundo, observou, no primeiro bimestre de 2020, uma queda de 17%[1] nas suas exportações em comparação ao mesmo período de 2019, em decorrência das medidas tomadas pelo país e pelo mercado internacional para contenção da disseminação do Coronavírus.

Nesse contexto, a paralisação das operações de empresas chinesas atuantes no mercado de fabricação de peças para geração de energia solar resultou em uma grande preocupação para os agentes do setor, tendo em vista que a China é considerada o maior fabricante de módulos fotovoltaicos do mundo.

Sem poder contar com o fornecimento da China, restam poucas alternativas economicamente viáveis para os importadores brasileiros, principalmente quando considerada a forte desvalorização da moeda do país nos últimos meses.

Apesar de ser muito cedo para prever por quanto tempo esta pandemia irá durar, é possível verificar, de forma inequívoca, o relevante impacto econômico do Coronavírus diante das 4 paralisações temporárias da bolsa de valores do país (“B3”) em uma mesma semana. Chamado pelos especialistas de Circuit Breaker, esse mecanismo somente é ativado quando a queda do Ibovespa, principal índice acionário do país, supera 10%, interrompendo todas as negociações na B3 por 30 minutos.

A primeira paralisação deste ano, realizada no dia 9 de março, foi motivada pelo avanço do Coronavírus no mundo, juntamente com disputas de preços no mercado internacional de petróleo. Dois dias depois, em 11 de março de 2020, a B3 acionou novamente esse mecanismo de paralisação, minutos após a OMS classificar o Coronavírus como uma pandemia. A terceira e a quarta paralisação foram realizadas no dia 12 de março, um dia após o anúncio da OMS e do discurso do presidente dos Estados Unidos sobre o assunto, impactando ainda mais o comércio global. Antes disso, a última vez que tal mecanismo havia sido ativado foi em 2017, após denúncias de corrupção envolvendo membros do Poder Executivo do país, e, antes disso, em 2008, no âmbito de uma das principais crises financeiras internacionais.

No âmbito jurídico, diversas discussões têm surgido com relação à possibilidade de enquadramento do Coronavírus como um evento de força maior, de modo a impossibilitar a aplicação de multas decorrentes de atraso ou inadimplemento no cumprimento de obrigações contratuais. Para o setor solar fotovoltaico, que tem como principal fornecedor a China, essa questão se potencializa.

Na China, o governo estabeleceu a paralisação de exportações de mercadorias visando à contenção da disseminação do Coronavírus e passou a emitir, em fevereiro de 2020, Certificados de Força Maior (“Certificados de Força Maior”), de modo a impedir a aplicação de multas contratuais envolvendo empresas chinesas.

Já no Brasil, vivencia-se um momento em que os agentes do setor de geração solar demonstram grande preocupação na elaboração dos contratos que irão lastrear suas novas operações comerciais, sobretudo nos casos de geração distribuída em que o tempo de entrega dos projetos aos clientes é pequeno.

Com relação aos contratos já existentes, nos quais o conceito de “força maior” não foi bem detalhado, discute-se a possibilidade de enquadramento do Coronavírus como forma de excludente de responsabilidade. A situação não é de simples solução, dado existirem efetivas restrições e impactos ao cumprimento de determinadas obrigações, que não podem ser efetivamente controlados pelas partes.

O atual cenário do Conoravírus assemelha-se ao causado pela síndrome respiratória aguda grave (“SARS”), em 2002, que também resultou em diversas discussões acerca possibilidade da não aplicação de penalidades contratuais por configuração de força maior. As consequências variaram caso a caso, a depender das disposições contratuais.

Sob o ponto de vista da geração solar fotovoltaica, a análise de como a questão foi e está sendo tratada na China é relevante dado que o fornecimento de equipamentos relevantes para novos projetos é proveniente de tal país.

À época, a Suprema Corte Popular da China estabeleceu que, caso a manutenção de uma relação contratual pudesse trazer impactos negativos relevantes para qualquer das partes, em decorrência da SARS, os tribunais designados para decidir sobre eventuais disputas decorrentes de tais impactos, deveriam analisar os casos individualmente, sempre considerando o princípio da boa-fé. Além disso, caso o cumprimento de contratos fosse prejudicado por medidas tomadas por autoridades governamentais para prevenção da SARS, os tribunais competentes deveriam observar as disposições sobre força maior estabelecidas na lei de contratos da China.

Ainda que tal orientação do governo chinês tenha sido extinguida em 2013, diante da similaridade da SARS com o Coronavírus, imagina-se que em breve haverá uma comunicação oficial do governo para que as premissas acima mencionadas sejam também observadas nos casos de disputas decorrentes de inadimplemento contratual, desde que comprovadamente resultantes do Coronavírus. Tal premissa possivelmente será aplicada nas disputas envolvendo Certificados de Força Maior. Assim, é esperado que alguns fornecedores localizados na China que sejam afetados pela pandemia do Coronavírus venham a alegar força maior para justificar atrasos e descumprimentos de obrigações contratuais.

De qualquer forma, é necessário que as disposições contratuais sejam analisadas caso a caso, sobretudo a alocação de risco e procedimentos e impactos acordados para uma situação de força maior.

Se o contrato for silente sobre as disposições de força maior, aplicam-se as disposições gerais sobre o assunto previstas no Art. 393 e seu parágrafo único do Código Civil, que dispõem que: (i) o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior se expressamente não se houver por eles responsabilizado e (ii) o caso fortuito ou força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Eventuais disputas que surgirem deverão ser tratadas de forma a observar os princípios que norteiam as relações contratuais regidas pelo direito brasileiro, principalmente os princípios da probidade e da boa-fé, estabelecidos nos Art. 113 e 422 do Código Civil. Dentro de tais princípios, é esperado que as partes apresentem um comportamento correto, ético, honesto e leal entre si, com transparência e comunicação entre si.

Assim, é esperado que as partes adotem uma postura cooperativa, transparente e amigável, no intuito de se buscar uma solução para o evento e seus impactos. Este tipo de postura deveria ser adotado em relação a todos os elos e partes da cadeia, dado que eventuais atrasos em um contrato poderão gerar atrasos nos demais contratos da cadeia.

Caso a disputa seja levada ao Judiciário, é importante ter em mente, ainda, que, além do já disposto acima, conforme previsto no Art. 113 do Código Civil, a interpretação da questão deverá lhe atribuir o sentido que: (i) for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; (ii) corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; (iii) corresponder à boa-fé; (iv) for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e (v) corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.

Além disso, eventual revisão de disposições contratuais pelo Judiciário deverá ser fundada em elementos concretos que justifiquem o afastamento da presunção de que os contratos são paritários e simétricos, conforme dispõe o Art. 421-A do Código Civil. Neste caso, a revisão deverá garantir que a alocação de riscos definida pelas partes deverá ser respeitada e observada e a revisão dos termos e condições acordados pelas partes somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.

 


[1] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/03/07/exportacao-da-china-no-1o-bimestre-despenca-importacao-perde-ritmo-por-coronavirus.ghtml