Controle Público

Imprescritibilidade no TCE-SP

Postura contraria jurisprudência do STF e destoa da do TCU

03/05/2023|13:30
TCE-SP
Fachada do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Crédito: Divulgação/TCE-SP

Em 2022, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo editou a seguinte deliberação: “[n]o âmbito do controle externo, o TCE-SP continuará atuando de acordo com o regime constitucional e legal vigente, que não estabelece prazos prescricionais para o exercício da pretensão punitiva e ressarcitória”. A norma contrasta com a postura do Tribunal de Contas da União (TCU), que editou a Resolução 344, de 2022, para regulamentar a prescrição das pretensões punitiva e ressarcitória.

Em texto publicado no JOTA, conselheiro do TCE-SP explica a deliberação da Corte de Contas estadual e sustenta que não caberia a tribunais de contas subnacionais “prever, jurisprudencialmente ou em ato infralegal”, prazo de prescrição “para limitar o exercício de suas atividades institucionais”. O raciocínio confere sobrevida à tese da imprescritibilidade no controle de contas. Estaria ele correto?

O artigo reconhece que o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou o entendimento de que a prescrição da pretensão punitiva do TCU é regulada integralmente pela lei 9.873, de 1999, “seja em razão da interpretação correta e da aplicação direta desta lei, seja por analogia”. Afirma, contudo, que a “real eficácia” das decisões do Supremo (boa parte tomada em mandados de segurança) se operaria “somente entre as partes nas estreitas balizas dos casos concretos definidos no processo”, de modo que não se poderia “estender, automaticamente, a jurisprudência do STF sobre a prescrição no âmbito do TCU aos demais Tribunais de Contas da Federação”.

É evidente que decisão tomada em MS produz efeito automático apenas em relação à autoridade coatora — no caso, o TCU. Mas decisão judicial, a despeito da classe processual, não se limita ao que está em seu dispositivo, pois também importam os respectivos fundamentos, a análise judicial dos fatos e do Direito (art. 489, II, do CPC).

No MS 32.201[1], citado pelo artigo, o STF considerou que “a aplicação de multas pelo TCU se insere evidentemente no exercício da competência sancionatória da Administração Pública”, de modo que “o exercício da competência sancionatória do TCU é temporalmente limitado” em função do “princípio geral da segurança das relações jurídicas”, do que decorre “a regra da prescritibilidade”. Essa é a ratio decidendi do julgado — isto é, os argumentos que correspondem aos fundamentos definitivos para decidir, à norma que pode ser aplicada a casos futuros.[2]

Qual fator distintivo justificaria que a ratio decidendi desse MS não fosse aplicável a TCEs e TCMs? Nenhum, pois TCEs e TCMs são instituições dotadas de função e competências praticamente idênticas às do TCU (art. 75 da Constituição).

O artigo sugere, ainda, que, para além de as decisões do STF estarem circunscritas ao TCU, haveria “ressalvas quanto à aplicação analógica da lei 9.873/1999 ao âmbito do controle externo dos estados e municípios”. “Óbices de índole processual” e “falta de identidade da Lei 9.873/1999 com o controle das contas públicas” justificariam a não incidência do diploma em âmbito subnacional. Ademais, o STJ teria dito que a extensão da lei 9.873, de 1999, a estados e municípios seria “prejudicial ao pacto federativo”.

Se os tais “óbices processuais” existissem e realmente fossem intransponíveis — a incompatibilidade do processo derivado da lei com o processo de contas; a ausência, na lei, de hipóteses adequadas de suspensão da prescrição; e o risco de a lei acabar inviabilizando a recomposição de dano em função de atos dolosos de improbidade — eles impediriam a aplicação analógica do diploma a tribunais de contas em geral, e não apenas a TCEs e TCMs.

A conclusão peremptória que o artigo extraiu da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tampouco parece precisa. O STJ apenas disse que a lei 9.873, de 1999, não se aplicaria a estados e municípios “em razão da limitação do âmbito espacial da lei ao plano federal”[3] — o óbvio. Nenhuma palavra foi dita sobre violação ao pacto federativo.

Não parece adequado, por fim, o recurso ao direito comparado para reforçar uma tese (a do suposto “aspecto negativo da adoção irrefletida da lei 9.873, de 1999”) cujo efeito imediato é dar sobrevida à imprescritibilidade no controle de contas — cenário repudiado pelo ordenamento estrangeiro invocado pelo artigo.

Na Itália, além de haver prescrição quinquenal no controle de contas, há prazos comuns de duração razoável do processo para as justiças civil, penal e administrativa (a qual compreende a Corte de Contas). De acordo com a lei 89, de 2001, conhecida como Legge Pinto, o prazo razoável é de três anos em primeiro grau; em segundo grau (havendo recurso), é de dois anos (art. 2°, 2-bis). Superados esses prazos, a lei prevê o direito a indenização por duração irrazoável do processo.

Hoje, no TCE-SP, processos autuados há mais de cinco anos podem ser arquivados “mediante despacho do Relator”, que poderá determinar a retomada da sua instrução “por provocação ou por ato de ofício” (Resolução TCESP 3/2020, arts. 1º e 2º). Se a aplicação analógica de regras gerais de prescrição é ruim (porque supostamente impediria o órgão de controle de cumprir sua missão), pior é a autoconcessão de um poder de arbítrio (o arquivamento a exclusivo critério do relator, sem justificativa).

Eventual mudança de postura do TCE-SP — para incorporar a incidência de regras gerais de prescrição a seus processos — seria importante para sintonizá-lo na frequência do Supremo, que tem se empenhado na construção jurisdicional de um regime o mais universal possível de extinção temporal por inércia ou demora administrativa[4], e para dar cumprimento ao art. 30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo o qual as “autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas”.

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Os seguintes pesquisadores do Observatório do TCU da FGV Direito SP + Sociedade Brasileira de Direito Público – sbdp subscrevem este texto: André de Castro O.P. Braga, André Rosilho, Conrado Tristão, Diogo Uehbe, Eduardo Jordão, Gabriela Duque, Gustavo Leonardo Maia Pereira, Juliana Bonacorsi de Palma, Mariana Vilella, Pedro A. Azevedo Lustosa, Ricardo Alberto Kanayama, Rodrigo Luís Kanayama e Yasser Gabriel.


[1] STF. MS 32.201/DF, 1ª. Turma, rel. Roberto Barroso, maioria, j. 21.3.2017.

[2] Cf. Conrado Hübner Mendes. “Lendo uma decisão: obiter dictum e ratio decidendi. Racionalidade e retórica na decisão”. Sociedade Brasileira de Direito Público, p. 2. Disponível para consulta em: https://www.yumpu.com/pt/document/read/12709082/lendo-uma-decisao-obiter-dictum-e-ratio-decidendi-sbdp.

[3] REsp 1.811.053/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, segunda turma, 10.09.2019, referido no AgInt no REsp. 1409267/PR, rel. Min. Gurgel de Faria, primeira turma, 10.8.21

[4] Cf. Carlos Ari Sundfeld. “O direito administrativo de punir o tempo leva”, em Celebração aos 10 anos de judicatura de Luis Roberto Barroso no Supremo Tribunal Federal, no prelo.logo-jota