Economia

Novas perspectivas para a regulação jurídica dos mercados – Parte X

O que ainda temos a aprender com o livro Arguing with Zombies de Paul Krugman

Crédito: Andrea Hanks/Fotos Públicas

Dando continuidade à exploração da obra de Krugman, é interessante notar que o autor organiza os tópicos do livro em torno de grandes discussões que acabam sendo impregnadas, em maior ou menor grau, de zombie ideas, ou seja, ideias que já deveriam estar mortas e enterradas mas que permanecem “vivas” diante da desonestidade intelectual daqueles que as sustentam. Daí a sua crítica a muitos dos argumentos utilizados para as tentativas de privatização da seguridade social e para os ataques ao Obamacare nos Estados Unidos, o que é tratado nos capítulos 1 e 2 da obra.

Diante da diversidade dos assuntos e da riqueza com que o livro trata de cada um eles, seria impossível falar de todos eles. Daí se enfatizar, neste artigo, as questões mais gerais e estruturantes do pensamento do autor e que apresentam conexões mais diretas com a realidade brasileira, especialmente em tempos de pandemia.

Sob essa perspectiva, o capítulo 5 (Crisis Management) é interessantíssimo para a reflexão do que se espera dos governos diante de sérias crises. Segundo Krugman, a macroeconomia mostra que tudo muda quando uma economia passa por uma profunda depressão, de forma que mesmo o corte das taxas de juros para níveis próximos de zero não é suficiente para restaurar o pleno emprego.

Daí por que, somente em tempos normais, o trabalho para lutar contra recessões pode ser deixado nas mãos dos bancos centrais, que podem imprimir mais dinheiro, diminuir taxas de juros a fim de estimular mais empréstimos privados e gastos. Em tempos de depressão, como bem resume o título de um de seus artigos, a virtude se transforma em risco, a precaução é arriscada e a prudência é loucura (“Virtue becomes vice, caution is risky, and prudence is folly”).[1]

E prossegue Krugman, sobre as soluções viáveis diante de crises, mostrando a importância do gasto governamental mesmo que às custas do déficit: “Budget deficits are helpful, not harmful; they don’t even drive up interest rates. Doing too little is a much bigger risk than doing too much. And doing what seem like responsible things – holding government spending down in the face of big deficits, refraining from printing what looks like an awful lot of money – end up being ways to make the depression worse.” [2]

Segundo Krugman, tais resultados foram confirmados na crise de 2008: “Events after 2008 spectacularly confirmed the predictions of the depression-economics framework. Massive budget deficits didn’t drive up interest rates, money-printing on an enormous scale wasn’t inflationary, and governments that tried to be prudent by cutting spending suffered much worse slumps as a result.”[3]

Outro capítulo interessante, especialmente em tempos de pandemia, é o 7 (Austerity), em que Krugman mostra os efeitos perversos de sacrificar pessoas em nome da austeridade, o que atrasou a retomada dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, direcionou muitos países da Europa para a recessão e ainda pavimentou o caminho para desastres políticos, como o Brexit e a eleição de Trump.

No famoso artigo “Myths of Austerity”, Krugman desconstrói a ideia de que a austeridade é boa por aumentar a confiança por parte do setor privado. Para o autor, trata-se de um “conto da confiança”, pois basta olhar para as evidências para se concluir que a austeridade fracassou, embora os policymakers continuem presos a ela, muito mais por preconceitos do que propriamente por análises confiáveis. Daí a conclusão central de que a confiança na austeridade em momento em que as maiores economias estão em profunda depressão não faz sentido.

Já em outro instigante artigo (“Jobs and skills and zombies”), Krugman refuta a teoria de que o desemprego é causado pela ausência de habilidades dos empregados, conclusão que é totalmente contrária às evidências: “Moreover, by blaming workers for their own plight, the skills myth shifts attention away from the spectacle of soaring profits and bonuses even as employment and wages stagnate. Of course, that may be another reason corporate executives like the myth so much.” So we need to kill this zombie, if we can, and stop making excuses for an economy that punishes workers.”[4]

No capítulo 10 (Tax Cuts), Krugman dedica-se a um dos maiores zombies. No artigo “The ultimate zombie”, mostra que, até hoje, a recuperação da economia norte-americana nos dois anos seguintes ao corte de tributos feito por Reagan em agosto de 1981 é utilizada como prova do mágico poder do corte de tributos para as classes ricas.

Entretanto, adverte para o fato de que tal conclusão é equivocada, pois a recessão do início da década de 80 foi uma deliberada criação do Federal Reserve, que aumentou drasticamente as taxas de juros em uma tentativa de diminuir a alta taxa de inflação, de forma que a causa do boom de 1982-1984 foi a diminuição da taxa de juros em 1982 e não o corte de tributos.

Segundo Krugman, a doutrina de que o corte tributário leva ao crescimento foi testada várias vezes posteriormente e nunca funcionou: “In short, few economic doctrines have been as throughly tested, and throughly refuted, as the claim that low taxes on the rich accomplish great things for everyone. Yet the doctrine persists. In fact, it has tightened its grip on the Republican Party, to the point to where almost nobody in the party dares to express skepticism.” O último teste foi com Trump, que adotou outro grande corte de tributos em 2017, na promessa de um milagre econômico que não ocorreu[5].

Daí a necessidade imediata de se enterrar esse zombie: “Well, belief in the magic of tax cuts for the rich is the ultimate zombie. And the truth is that it’s not hard to see why it has proved impossible to kill. After all, think about who benefits from the persistence of the belief that low taxes on the rich are a great thing. All it takes are a few billionaires willing to spend a small fraction of their wealth supporting politicians, think tanks – or actually ‘think’ tanks – and partisan media willing to spread the tax-cut virus. That’s easily enough to keep the zombies lurching along.”[6]

Outro capítulo imperdível é o 12 (Inequality), oportunidade em que Krugman mostra todas as premissas erradas que vêm norteando o tema, incluindo os argumentos equivocados de que a desigualdade decorreria da distância entre trabalhadores altamente educados e os não educados (“Graduates versus oligarchs”), do declínio dos valores dos trabalhadores (“Money and Morals”) ou mesmo da tecnologia.

No artigo “The rich, the right, and the facts”, Krugman procura mostrar como os críticos lidam com o problema da desigualdade: (i) negando os fatos com base em uma mistura de argumentos estatísticos confusos, (ii) entendendo que o crescimento recorde nos anos Reagan compensaria ou negaria o aparente crescimento da desigualdade e (iii) defendendo que o sistema ainda possibilita a mobilidade.

Krugman mostra o equívoco de cada um deles, especialmente no que diz respeito à questão da mobilidade.

Daí a sua conclusão de que ninguém pode negar o crescente crescimento da desigualdade nos EUA desde os anos 1970, sem que haja qualquer justificativa legítima para tal.

Daí a sua conclusão de que o tema precisa ser enfrentado com toda seriedade: “There are substantive issues about income distribution. Nobody really knows all the reasons why incomes at the top have soared while those at the bottom have plunged. Still less is there a consensus about what kinds of policies might limit or reverse the trend. But it seems that many conservatives not only don’t want to discuss substance: they prefer not to face reality, and to live in a fantasy world in which the 1980s turned out the way they were supposed to, no the way they did.” [7]

No já mencionado “Graduates versus Oligarchs”, Krugman deixa claro que a desigualdade tem muito mais a ver com relações de poder do que com forças do mercado: “It’s time to face up to the fact that rising inequality is driven by the giant income gains of a tiny elite, not the modest gains of college graduates.” [8]

Nem mesmo a tecnologia pode ser considerada a principal causa da desigualdade. No artigo “Don’t blame robots for low wages”, Krugman expressa que as evidências mostram que a tecnologia tem menos a ver com isso do que as relações de poder.

Ao constar que o salário mínimo federal caiu para um terço ao longo da última metade do século enquanto a produtividade subiu 150%, Krugman mostra que as razões para isso são políticas, relacionadas igualmente ao declínio dos sindicatos. Daí a sua advertência: “And progressives, above all, shouldn’t fall for this facile fatalism. American workers can and should be getting a much better deal than they are. And to the extent that they aren’t, the fault lies not in our robots, but in our political leaders.” [9]

Já que as questões econômicas fundamentais têm sido decididas com base em opções políticas, o capítulo 13 (Conservatives) insiste no fato de que a polarização é bastante assimétrica, já que a direita está baseada no poder do dinheiro e na influência sobre a mídia e think tanks.

Daí afastar por completo o argumento de que os excessos da direita são também encontrados na esquerda – o chamado bothsidesism: “There are, of course, leftist radicals in America, but they don’t control the Democratic Party. Rightist radicals basically are the Republican Party.” [10]

Outro capítulo fundamental é o 14 (Eek! Socialism!), em que Krugman procura combater o mito de que os livres mercados sempre levam a liberdade das pessoas.

Especialmente no artigo “Capitalism, socialism and unfreedom”, Krugman mostra, com base em Corey Robin, que os livres mercados não estão levando liberdade para ninguém: “In fact, the daily experience of tens of millions of Americans – especially but not only who don’t make a lot of money – is one of constant dependence on the good will of employers and other more powerful economic players.” [11]

Isso mostra claramente o quanto é ingênua a proposta de desregulação do mercado de trabalho, por ignorar a óbvia assimetria entre as partes, o que se torna ainda mais evidente diante da concentração de mercado: “It’s increasingly clear, for example, that monopsony power is depressing wages, but that’s not all it does. Concentration of hiring among a few firms, plus things like noncompete clauses and tacit collusion that reinforce their market power, don’t just reduce your wage if you’re hired. They also reduce or eliminate your options if you’re mistreated: quit because you have an abusive boss or have problems with company policy, and you may have real trouble getting a new job.” [12]

Outro ponto importante, explorado neste artigo, é a defesa de programas e redes de segurança social, que fazem mais do que reduzir a miséria: asseguram a liberdade efetiva dos cidadãos. Como exemplo, o autor aponta que muitas pessoas não desistem de trabalhos dos quais não gostam simplesmente em razão do medo de perder o plano de saúde.

No capítulo 15 (Climate), Krugman evidencia a centralidade do debate a respeito do clima. Em artigo cujo título já é bem sugestivo (“The most important thing”), ele assim inicia: “To be honest, sometimes I wonder whether I’m wasting my time talking about any issue other than climate change. I mean, civilization faces an existential threat; if we don’t take action to limit emissions of greenhouse gases, in the long run nothing else – not health reform, not income inequality, not even financial crisis – will matter.” [13]

O capítulo 16 (Trump) é especialmente interessante por mostrar os impactos da crescente desigualdade econômica e política nas democracias, o que nos move para governos liderados pelos menos capazes e mais inescrupulosos: “Beyond that, our trend toward oligarchy – rule by the few – is also looking more and more like kakistocracy – rule by the worst, or at least the most unscrupulous. The corruption isn’t subtle: on the contrary, it’s cruder than almost anyone imagined. It also runs deep, and it has infected our politics, quite literally up to its highest levels.” [14]

Ainda merece registro o capítulo 17 (On the Media), no qual o autor explora como os vieses da mídia e as fake news favoreceram e favorecem Trump. Um dos pontos fundamentais é o problema da falsa equivalência, que é dar aos dois lados da disputa tratamento equitativo mesmo quando um claramente está contando mentiras.

Por fim, vale ressaltar o capítulo 18 (Economic Thoughts), em que Krugman, especialmente no artigo “How I work” faz várias propostas que envolvem a humildade metodológica, a abertura para novas ideias e os questionamentos constantes.

Como se pode observar, é inequívoca a conexão entre esses pontos e os que já foram abordados pelos autores anteriores dessa série. A obra de Krugman mostra como muitas posturas econômicas relacionadas à tributação, ao papel do Estado na economia, ao gasto público e às metas de austeridade, à desregulação do mercado de trabalho, à desproteção do meio ambiente e ao aumento da desigualdade decorrem de teorias econômicas que são inadequadas para compreender e solucionar tais problemas, tamanha é a cegueira conceitual que decorre da crença inabalável na estabilidade e no bom funcionamento dos livres mercados.

Mais do que um problema de inadequação ou insuficiência teórica, Krugman mostra que o real problema, em muitas questões, é o fato de que a teoria econômica prevalecente, adotada em muitas políticas públicas, é embasada em zombie ideas, que apenas persistem em razão da má-fé e da mentira financiadas por bilionários da extrema direita pelas mais diferentes formas, que vão desde à participação ativa de think tanks até a própria utilização da mídia, inclusive por meio de fake news. Trata-se, portanto, de corrupção do conhecimento, feito de forma obscura e inescrupulosa.

Assim como muitos dos autores anteriores, Krugman mostra a importância não apenas de se superar as teorias equivocadas ou as zombie ideas com base nas evidências, mas sobretudo de se abrir o discurso econômico para o endereçamento da liberdade econômica em um sentido substancial – daí a preocupação com o empoderamento dos empregados em uma relação naturalmente assimétrica e para a redução da desigualdade.

Por fim, Krugman ainda aponta para a necessidade não somente de um maior arejamento metodológico, mas sobretudo pela consideração das necessárias implicações políticas e democráticas das escolhas econômicas, aspecto comum a todos os autores que foram abordados na presente série e que certamente abrem inúmeros caminhos para a regulação jurídica dos mercados.

 


[1] Arguing with zombies. Economics, Politics, and the Fight for a Better Future, New York: W.W. Norton & Company, 2020, p. 106.

[2] Op.cit., p. 104.

[3] Op.cit., p. 105.

[4] Op.cit., p. 216.

[5] Sobre o tema, no artigo “The Trump tax cut: even worse than you’ve heard”, Krugman mostra que pelo menos 90% dos americanos ficarão mais pobres com essa redução.

[6] Idem.

[7] Op.cit., p. 281.

[8] Op.cit., p. 284.

[9] Op.cit., p. 290.

[10] Op.cit., p. 298.

[11] Op.cit., p. 315.

[12] Op.cit., p. 316.

[13] Op.cit., p. 327.

[14] Op.cit., p. 350.