
A Controladoria-Geral da União (CGU) está analisando o segredo imposto ao cartão de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro para verificar sua constitucionalidade e legalidade. O assunto é de evidente interesse público, por vários motivos, sobretudo devido à politização irresponsável que o ex-mandatário fez da pandemia da Covid-19 e da vacinação contra o coronavírus, induzindo boa parte da população a não se vacinar, prejudicando a campanha de vacinação para a obtenção da imunidade de rebanho e, assim, colocando a sociedade brasileira como um todo em risco de morte desnecessário.
Sobram argumentos para justificar a publicização do teor do documento. A fim de contribuir para o debate, destaco os mais relevantes.
Ao longo da pandemia, por inúmeras vezes, o ex-presidente veio a público para falar mal das vacinas e se vangloriar do fato de que ele mesmo não se vacinou. Como presidente da República, induziu a população brasileira a não se vacinar; agora, como ex-presidente, continua influenciando grande parte da população a não se vacinar, oferecendo-se como exemplo de que a vacina é desnecessária.
Vale a pena relembrar algumas das falas sobre vacinas proferidas por Bolsonaro nos últimos anos:
“Como sempre, eu nunca fugi da verdade, eu te digo: eu não vou tomar vacina. E ponto final. Se alguém acha que a minha vida está em risco, o problema é meu. E ponto final.” – 15/12/2020
“Se você virar um jacaré, problema seu. Se você virar super-homem, se nascer barba em alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles não vão ter nada a ver com isso. O que é pior: mexer no sistema imunológico das pessoas. Como é que você pode obrigar alguém a tomar uma vacina que não se completou a 3ª fase ainda, que está na experimental?” – 17/12/2020
“Por parte do governo federal tem que ter a autorização dos pais. Tem que ter uma receita médica.” – 19/12/2021
“Vacina para criança: primeiro, só autorizado pelo pai. Se algum prefeito, governador, ditador aí quiserem impor é outra história.” – 19/12/2021
“A questão da vacina para crianças é uma coisa muito incipiente, o mundo ainda tem dúvidas, e não vêm morrendo crianças que justifique uma vacina emergencial.” – 27/12/2021
“A vacina será de forma não obrigatória. Então, ninguém é obrigado a vacinar o teu filho. Se é não obrigatória, nenhum prefeito ou governador –existe alguns aí com essa ideia – poderá impedir o garoto ou a garota de se matricular nas escolas por falta de vacina.” – 6/1/2022
Não há sigilo a ser preservado. O dado sensível a ser protegido, aqui, é se Bolsonaro se vacinou ou não. Ocorre que ele mesmo já tornou pública a informação. O próprio interessado já falou e repetiu publicamente que não tomou a vacina contra a Covid-19. Ao publicizar o dado e usá-lo politicamente, como agente político, induzindo pessoas a não se vacinarem, Bolsonaro abdicou do seu direito de proteção desta informação pessoal sensível. Ao tornar pública a informação e usá-la politicamente no campo do debate público, o dado sensível constante do cartão de vacinação deixa de ser sensível.
O §4º do artigo 7º da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) dispensa o consentimento para o tratamento de dados tornados manifestamente públicos pelo titular. E o artigo 11, II, ‘e’, prevê que é dispensado o consentimento do titular para o tratamento de dados pessoais sensíveis na hipótese de proteção da vida ou da incolumidade física do titular do dado ou de terceiro. Ainda mais quando a publicização do dado feita pelo titular tem consequências diretas para a saúde pública no Brasil, colocando em risco a vida de muitos cidadãos.
A publicização verbal do dado pessoal sensível pelo próprio interessado e o uso político desta informação tiveram consequências para o número de mortos na pandemia. O fato de o ex-presidente ter ou não se vacinado reveste-se de grande interesse público ainda agora, passado o seu mandato, tendo em vista que há investigações em curso para verificar a legalidade dos atos do seu governo ao longo da pandemia, em especial no que se refere às vacinas. A Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado comprovou que o ex-presidente retardou a compra de vacinas do Instituto Butantan, ao desautorizar publicamente o então ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, de firmar contrato com o instituto para compra da Coronavac (“um manda e o outro obedece”).
As falas de Bolsonaro também induziram o Ministério da Saúde a não responder às ofertas de vacina feitas sucessivas vezes pela Pfizer, atrasando ainda mais o calendário vacinal nacional, com consequências em vidas e sofrimento aos brasileiros. As falas antivacina de Bolsonaro e o fato de que o mesmo não se vacinou modularam a política pública de imunização contra o coronavírus do governo federal, que se equilibrou em discurso dúbio sobre a vacinação obrigatória no Brasil, passando à sociedade a impressão de que a vacinação obrigatória não era obrigatória, reduzindo a capacidade nacional de atingir a imunidade coletiva e com isso reduzir o número de contágios e mortes.
Vale lembrar que a vacinação obrigatória é política de Estado no Brasil desde a década de 1970, tendo em vista que a vacinação é a melhor estratégia cientificamente reconhecida para se alcançar a imunidade de rebanho e proteger a população como um todo de doenças transmissíveis. Trata-se de ato de solidariedade, de dever de cidadania e de respeito ao próximo. E, quando se é a mais alta autoridade pública nacional, trata-se de dever legal e funcional. Ou seja, o Brasil precisa saber a verdade sobre a vacinação do então presidente em época de pandemia.
A publicidade é um dos princípios da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), sendo que o sigilo deve ser tratado como exceção. Também são princípios da LAI aplicáveis ao caso a divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações, e o controle social da administração pública. Ou seja, a informação, ainda que pessoal, sobre um dado de saúde do ex-presidente da República, por ele já divulgado, possui evidente interesse público e se insere no princípio geral da publicidade.
Sobre a divulgação de informações pessoais de autoridades e servidores públicos, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou posição na qual analisa a situação à luz da hermenêutica constitucional que orienta a solução de conflitos entre dois ou mais princípios constitucionais. De um lado, o direito de acesso à informação de interesse público de que o Estado é detentor e o princípio da publicidade; de outro lado, a privacidade, intimidade e segurança de servidor público.
Em síntese, o STF entendeu que, quando não há violação à privacidade, intimidade e segurança de servidor público, o sigilo de informação de interesse público não se justifica. Portanto, importante insistir: não há mais sigilo a ser preservado. O titular da informação já a tornou pública. O que se discute é simplesmente ter acesso ao documento público que comprova (ou não) a informação divulgada publicamente pelo titular.
O presidente da República, agente político ocupante do mais alto cargo público da nação, tem o dever de transparência e publicidade de assuntos de interesse público, incluindo aí informações sobre o seu estado de saúde. É o preço que se paga pela opção por uma carreira política em uma República. E isso vale também para ex-presidentes, quando a informação se reveste de inegável interesse público, relacionado aos direitos à vida e à saúde dos brasileiros. O fato do ex-presidente divulgar a informação de que não se vacinaria e colocar em dúvida as vacinas teve consequências graves para a população brasileira, tristemente traduzidas nos quase 700 mil mortos durante a pandemia. Não há mais sigilo a ser preservado. Saber se a informação divulgada pelo ex-presidente é verdadeira ou não tem, sim, interesse público, mesmo após o fim do mandato.
Se a informação já foi publicizada pelo próprio interessado de forma ampla, qual a razão de manter em sigilo o documento que atesta (ou não) a veracidade do que já foi tornado público? Há evidente interesse público nessa informação, e já não se verifica mais a presença de dado pessoal sensível a ser preservado, já que o próprio titular do dado abriu mão deste sigilo. Assim, o cartão de vacinação de Bolsonaro possui, ainda, relevância pública enorme, com consequências para as investigações sobre a gestão do governo federal durante a pandemia, para o bom andamento do Programa Nacional de Imunização e para a melhoria das taxas de cobertura vacinal no país.
Por todas essas razões, a CGU agirá acertadamente se de fato decidir pela quebra do sigilo e pela publicização da informação.